Receber a tarefa de montar um quebra-cabeça sem conhecer a imagem final é um desafio considerável. Você pode juntar algumas peças pelas bordas ou por aquelas que parecem se encaixar, mas sem a orientação da imagem completa, a tarefa se torna especialmente difícil. Essa falta de referência é semelhante ao que enfrentam os homens que cresceram sem pai e hoje se tornaram um.
A ausência de uma figura paterna ao longo do crescimento infantojuvenil pode resultar em diversos prejuízos que uma criança carregará por toda a vida. Homens que cresceram sem a presença do pai relatam como o abandono parental influenciou suas trajetórias. Eles também compartilham suas estratégias para reverter esse ciclo, tornando-se a referência que não tiveram quando crianças.
A ciência comprova que os prejuízos são variados e impactam diversos aspectos da vida: emocional, comportamental, acadêmico, social, econômico e de saúde mental. Em suma, os desafios são muitos diante de um problema social que só recentemente começou a ser debatido de maneira mais ampla.
Com o debate aquecido, uma nova geração de pais está se formando para compartilhar não apenas sua presença e o famigerado "sustento familiar". Eles também dão o apoio, carinho, orientação e o amor incondicional que não receberam.
Refletir sobre a importância da presença paterna é crucial, principalmente em uma sociedade onde milhares de lares brasileiros testemunham o oposto. Em um contexto social predominantemente heteronormativo, não é surpreendente que muitas famílias vejam um apagamento significativo da figura masculina dentro de casa. Deste modo, as responsabilidades financeiras, os cuidados e a criação dos filhos, que deveriam ser compartilhadas a dois, acabam recaindo apenas sobre os ombros femininos.
De acordo com uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2022, mais de 11 milhões de mulheres no Brasil estavam criando seus filhos sozinhas. Esse estudo, baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc), foi conduzido pela pesquisadora Janaína Feijó, doutora em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela destaca o aumento do número de mães que chefiavam suas famílias sozinhas.
A pesquisadora Tuany Abreu de Moura destaca que existe também um fenômeno silencioso que emergiu nas últimas décadas: a paternidade ativa. Esta nova abordagem reconfigura o papel do pai na sociedade, respondendo aos antigos modelos de masculinidade e se enraizando firmemente na estrutura familiar contemporânea.
Homens buscam novos ciclos familiares
Crescer sem a presença física, ativa e saudável de um pai é uma realidade marcada na biografia de muitos brasileiros. Histórias de crianças criadas apenas por "mães solteiras" - agora conhecidas como "mães solo" - não são raras pelo País. Mas em vez de continuar reproduzindo as mesmas práticas que lhe traumatizaram, muitas dessas crianças que já cresceram estão formando suas próprias famílias em bases completamente diferentes daquelas que moldaram sua juventude.
Apesar de terem enfrentado a ausência e a falta de referência paterna, alguns desses pais compartilham um desejo comum: proporcionar uma vida melhor para seus filhos. Frases como "dar aquilo que não tive" e "evitar os traumas que passei" são frequentes em seus discursos, quase como um mantra. Na prática, estão buscando ser agentes de transformação positiva, oferecendo aos seus filhos o cuidado e o apoio que lhes faltaram.
Quem está nessa caminhada é o produtor cultural Jefferson Ferreira, que carrega consigo uma história de resiliência e superação. Nascido em Natal, no Rio Grande do Norte, ele tem 28 anos e é orgulhosamente pai da pequena Josiane Vitória, de nove meses, a quem se dedica a oferecer "tudo que uma criança precisa para ter uma vida saudável".
Também conhecido como Jeff Lobo de Wakanda, devido à sua atuação de militância e promoção da negritude nos ambientes geeks, ele se esforça para romper um ciclo de abandono e violência que marcou sua própria vida. Em contraste com o presente feliz e amoroso compartilhado com a esposa Geiziane, a história de Jeff é sublinhada por uma infância dolorosa vivida em um lar tumultuado.
Desde cedo, Jeff enfrentou o terror da violência doméstica. Seu pai, um usuário de drogas, e sua mãe, uma diarista, travavam frequentes batalhas que deixaram marcas profundas na vida dos filhos. Em 1999, quando tinha apenas quatro anos, Jefferson presenciou um episódio que se tornou um divisor de águas em sua trajetória. Depois de uma noite de bebedeira, seu pai retornou para casa, onde foi confrontado pela mãe sobre uma traição.
A discussão rapidamente escalou para agressões físicas do pai contra a mãe. Com um martelo de brinquedo do Chapolin Colorado, Jefferson tentou intervir, mas foi agressivamente chutado pelo pai, batendo a cabeça na parede. Em um ato desesperado, a mãe pegou um revólver e atirou três vezes contra o pai, que conseguiu fugir.
Depois disso, a mãe de Jefferson se mudou para Fortaleza na tentativa de recomeçar, deixando ele e o irmão aos cuidados da avó. Durante os oito anos em que viveu com a avó, Jefferson vivenciou momentos de paz, mas o fantasma da violência logo voltaria a lhe assombrar. Aos 12 anos, voltou a morar com a mãe, apenas para enfrentar novos abusos. Toda vez que ela bebia, as agressões recomeçavam, agravadas pelo fato de Jeff "ser a cara do pai".
Aos 19 anos, Jefferson e o irmão foram abandonados pela mãe. Enquanto irmão mais velho, Jeff tomou a difícil decisão de enviar o mais novo de volta para Natal, enquanto ele próprio passou a viver nas ruas de Fortaleza. A extrema vulnerabilidade lhe apresentou desafios inimagináveis, também moldando sua determinação e força de vontade. Hoje Jeff luta diariamente para construir um lar cheio de amor e segurança, sentimentos que ajudam a afastar as sombras do passado.
"Nove anos depois de tudo o que passei, tenho uma família linda em que o respeito, o amor, a lealdade e o afeto são os pilares e a pedra angular da nossa vida. Se meu pai fosse o cara que eu sou hoje, certamente minha família estaria completa e eu não teria a triste sensação de que eu não tenho a quem recorrer em momentos de angústia", afirma, incentivando que outros homens também abracem a ideia de uma paternidade comprometida: "Sejam os pais que vocês queriam ter."
O despertar para uma paternidade mais responsável
Douglas Santos, de Tianguá, na Serra da Ibiapaba, no Ceará, assumiu a responsabilidade de se tornar verdadeiramente um pai e não apenas um genitor. Aos 14 anos, ele descobriu que seria pai e, aos 16, se tornou pai solo. Hoje, aos 20, Douglas é pai de Erick Dylan, de seis anos, além de uma figura influente nas redes sociais, onde compartilha sua jornada de paternidade e arranca sorrisos com sua típica gaiatice cearense.
A responsabilidade na vida de Douglas veio logo cedo, e o universo não demorou para testar sua força. Menos de três anos depois do nascimento do filho, o jovem enfrentou uma perda devastadora: sua ex-namorada e mãe de Dylan, Ester Cristina, faleceu vítima de dengue hemorrágica. A notícia abalou completamente as estruturas de Douglas, que agora precisava equilibrar a responsabilidade de criar o filho, além de concluir o ensino médio.
"Eu estava no último ano do ensino médio, as coisas estavam andando, a lojinha virtual de roupas que eu tinha estava crescendo e eu já estava trabalhando para mim mesmo. Só que o impacto foi muito forte para mim. Eu larguei tudo e fui morar com meus avós. Foi um período muito difícil, mas eu sabia que precisava focar no meu filho e na minha educação", relembra.
Apesar de seus esforços, a estadia na casa dos avós não deu certo. Três meses depois, mudou-se para a casa de sua mãe, mas lá ficou apenas por dois meses. A falta de espaço para ele e o filho pequeno o fez buscar novamente sua independência. Ele conseguiu concluir o ensino médio e voltou a trabalhar, com uma grande virada de rumos acontecendo em 5 de dezembro de 2021.
Naquele dia, o jovem gravou um vídeo desabafando sobre a saudade de Ester e compartilhando sua rotina de criação de Erick Dylan. Inicialmente, a ideia era usar o vídeo como uma forma de motivação para seguir em frente. De maneira despretensiosa, porém, ele publicou no TikTok.
Em menos de 24 horas, o vídeo viralizou, acumulando milhões de visualizações. Nos meses seguintes, ele foi abraçado por um público solidário que o ajudou a levantar fundos para reabrir seu negócio virtual. Em 2023, o influenciador começou a namorar Raila Sousa, com quem se casou em março deste ano, trazendo uma nova figura materna para Dylan.
Douglas sabe da importância da presença do pai na vida de uma criança; como também das mudanças na sociedade, e dos novos papéis de homens e mulheres na família .