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Corpo velho numa vida livre
Ciência e Saúde

Corpo velho numa vida livre

"A velhice carece de descanso, mas é nesse descanso que o pensamento se acalma e ganha novas formas"
Edição Impressa
Tipo Notícia
. (Foto: MICROSOFT GERADO POR IA)
Foto: MICROSOFT GERADO POR IA .

Minha amiga Rita e eu, entre um gole de café e outro, dias atrás, voltamos a conversar sobre a velhice: suas possibilidades e entraves. Eu dizia que ela é viável e livre, mesmo com o corpo entremeado de limitações extremas. Rita, percebendo meu corpo envelhecido, pediu-me explicações. Acessei minha vida com intensidade e comecei falando de quando parei de clinicar, aos 79 anos. Sentia-me cansada e queria mais tempo para ler e trabalhar com as palavras. Havia me aposentado do serviço público, assim como Riobaldo em Grande Sertão: Veredas quando diz: "Vivi puxando difícil de difícil. Agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede, me inventei nesse gosto de especular ideia".

Expliquei também que "A velhice carece de descanso, mas é nesse descanso que o pensamento se acalma e ganha novas formas" como ele falou. Foi o que fiz, mesmo com a velhice aos 82 anos, marcada por cinco doenças crônicas controladas e, há um ano, por um câncer de elevada malignidade.

Com essas marcas físicas e emocionais, observei a vivência de personagens de livros clássicos e encarei-me com atenção ao deparar-me com a finitude. Segui o exemplo de Riobaldo: mergulhei nas águas profundas do pensamento consciente, fiz breves pausas para um respiro às percepções e emoções que os feitos da minha vida até então me trouxeram. Em cada respiro, analisei o que construí: vidas salvas, família sustentada pelo trabalho árduo. Vi também os erros e sombras que me acompanharam — amizades desfeitas, comportamentos que feriram relações familiares e profissionais, e vícios que embotaram as emoções e traumas do passado.

Enfrentei essa travessia e emergi com um novo entendimento. Ao me deparar com esse desvelar senescente e um corpo minado, conheci minha essência e, com isso, conquistei uma liberdade plena — quase absoluta. Meu ser-em-si e ser-para-si, como diria Sartre, foi atualizado para a velhice. Percebi que um corpo velho e doente pode, sim, ser livre: para o que desejarmos fazer: do amar ao cuidar-se, ao divertir-se e emocionar-se, ao viver pleno. Ele impõe limites, mas dentro deles há liberdades absolutas.

"Como?", questiona Rita. Citei-lhe um exemplo de Simone de Beauvoir em Cerimônia do Adeus, posição 698 no Kindle, quando Sartre passou anos recusando uma dentadura por causa de gengivas abcedadas. Ele dizia que uma dentadura inviabilizaria sua fala. Considerava a velhice inviável, mas quando falar se tornou impossível, ele a aceitou. Dois dias depois, comentou sobre o ajuste: "Foi maçante, mas eu só pensava nos meus dentes, e estava tão contente!" Beauvoir acrescenta: "Havia nele um cabedal de saúde física e moral que resistiu a todos os golpes, até as últimas horas." Assim, cai por terra a inviabilidade da velhice que ele tanto apregoava. Tilintamos nossa xícaras ao final.

 

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