Você já deve ter escutado que “Tudo que vai volta”, um ditado popularmente conhecido que quando aplicado a saúde se torna ainda mais verídico. Os microplásticos são a prova disso, aliais, eles já voltaram para a gente, e as consequências disso? Ao que tudo indica, não é das melhores.
O apelo pela redução no consumo e na produção de plástico não é novidade. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), nas últimas duas décadas o mundo viu a produção de plástico dobrar, alcançando a marca dos 460 milhões de toneladas produzidas só em 2019.
Atualmente, a poluição plástica é classificada pela Organização das Nações Unidas como um dos maiores problemas ambientais do planeta. Todos os objetos de plástico se decompõem fisicamente com o tempo, quebrando-se em fragmentos cada vez menores, chamados de microplásticos (MPs).
Os microplásticos são partículas plásticas sólidas, não solúveis em água, com tamanho que pode variar entre 0,001 a até 5 milímetros, conforme a definição do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). As partículas com menos de 0,001 milímetro são classificadas como nanoplásticos.
O termo “microplásticos” foi usado pela primeira vez pelo biólogo marinho, Richard Thompson, no artigo Lost at Sea: Where is All the Plastic?, publicado na revista Science em 2004. Desde então, mais de 200.000 artigos científicos foram publicados sobre este grave problema ambiental.
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Um dos mais recentes, liderado por cientistas do Instituto Oceanográfico (IO), da Universidade de São Paulo (USP), mostrou que animais marinhos estão ingerindo microplásticos nas profundezas da Antártida há pelo menos quatro décadas. O mais antigo é de 1986, encontrada nas vísceras de um misidáceo.
Segundo Michael Barbosa, professor, pesquisador e doutor em Engenharia Sanitária do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), os microplásticos podem ser primários, aqueles já fabricados em tamanhos pequenos, e secundários, resultantes da degradação de plásticos maiores.
“Eles vêm pelas indústrias, consumo de produtos, descarte inadequado de resíduos plásticos e entre outros. A fragmentação ocorre por diversos fatores ambientais, como desgaste e/ou degradação química, mecânica, biológica ou a ação de radiação ultravioleta e intemperismo físico-químico” afirma.
Fibras sintéticas, produtos de higiene e beleza, glitter, garrafas PET, sacolas plásticas, embalagens descartáveis, isopor, redes de pesca, pneus, tintas e até bitucas de cigarros são exemplos das diversas fontes de microplásticos encontrados nos oceanos, rios e animais marinhos.
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Por mais assustador que pareca, os microplásticos estão em todos os lugares, no ar que respiramos, na água que bebemos e na nossa alimentação. Esses detritos plásticos — grandes ou pequenos — não são biodegradáveis e permanecem por séculos no ambiente, podendo liberar substâncias tóxicas.
Uma pesquisa recente da Agência FAPESP — Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), encontrou partículas de microplástico no cérebro de oito pessoas que viveram ao menos cinco anos na cidade de São Paulo.
Diversos outros estudos já identificaram esses fragmentos nos testículos e no pênis, no sangue, nos tecidos dos pulmões e do fígado, na urina e fezes, no leite materno e na placenta. O doutor em oceanografia e professor do Labomar, Paulo Sousa, explica como ocorre esse processo.
“O plástico, quando está exposto e fragmentado, ficam distribuídos na natureza, podendo ser transportados de diversas formas. No oceano, alguns animais podem ingerir essas partículas e ir para a cadeia alimentar. O topo da cadeia é os seres humanos, e a gente não enxerga essas partículas”, afirma.
Alguma função que mostre esse processo da cadeia alimentar
O pesquisador comenta que em uma de suas pesquisas, de 2023, 86% dos resíduos nas praias de Fortaleza eram plásticos. “Existe o processo de bioacumulação, onde os organismos absorvem substâncias — ou compostos químicos — e entram no processo da cadeia alimentar”, esclarece.
O estudo realizado no Laboratório de Ecologia Costeira Aplicada da Universidade Estadual de Portland (PSU), mostrou que os microplásticos e outras partículas de origem humana estão em quase todos os frutos-do-mar que comemos, podendo prejudicar a nossa saúde.
As fibras sintéticas das roupas representaram 82% das partículas encontradas, 17% eram fragmentos de microplásticos e 0,7% vieram de filmes. O especialista Paulo Sousa lembra que a questão do plástico é bem mais complexa e abrange várias formas de impactos nos ecossistemas marinhos e costeiros.
“Ao ingerir esses microplásticos os animais se sentem saciado, então ele não vai se alimentar e isso afeta desde as questões hormonais até o seu tempo de vida. Existe também a morte por inanição, fruto da não locomoção, uns se prende nas redes de pescas, outros têm os focinhos presos nos plásticos”, comenta.
O pesquisador do Labomar, Michael Barbosa, orientou uma tese de doutorado, da Ravena Santiago, na qual estudou a influência do ciclo das marés na dinâmica de microplásticos no Rio Cocô, em Fortaleza. A pesquisa mostrou que fibras e filmes foram de maiores predominâncias encontradas.
Esgoto doméstico e industrial, resíduos plásticos urbanos, desgaste de pneus, e atividades pesqueiras estão como fontes potenciais. Outras pesquisas mostraram MPs em dois compartimentos, água e sedimento - o fundo marinho - além da influência da água das chuvas nesse processo.
“Analisamos não só a quantidade desses microplásticos, mas as cores, os formatos e o tipo de plástico. Esses fragmentos têm condições de absorver agrotóxico, fármacos, hormônio e até metais pesados. Esses poluentes vão ser absorvidos pelo organismo do animal, chegando na gente”, diz.
O especialista afirma que a depender da quantidade que a gente ingere de alimento contaminado, com bisfenol, por exemplo, podemos desenvolver diversos problemas. “Tudo isso desregulam o nosso sistema hormonal, tem pesquisas que sugerem até problema de fertilidade”, conclui.
O pescador Roniele Suira, liderança da comunidade tradicional da Boca da Barra, que vive na Praia da Sabiaguaba, em Fortaleza, relata que existe uma quantidade assustadora de plástico no oceano e no litoral do Ceará, e que as pessoas não têm dimensão dessa realidade.
“É difícil olhar o nosso rio e mar se deparando com a quantidade de resíduo descartado lá. Como pescador, eu me pergunto se as pessoas sabem disso. Costumo dizer que é um lixo invisível, um câncer invisível. Você não consegue ver, mas está lá”, reflete.
Em seus mergulhos, Roniele já se deparou com muitos descartáveis em cima das pedras, lajeiros e corais, e que sua vivência como pescador lhe dá uma perspectiva maior desse cenário. “A gente precisa de políticas públicas, nosso litoral tá extremamente infestado de plástico”, desabafa.
Ele confirma o fato de estarmos sendo afetados diretamente e indiretamante pelos microplásticos, presente na nossa alimentação. Além disso, ele pontua a importância do diálogo mais próximo com mergulhadores e pescadores, indo para além da academia, já que vivênciam isso todo dia.
“A humanidade tem que se sentir pertencente à terra, ao mar, às florestas e aos rios. Não adianta a gente criar uma ideia de conscientização ambiental se as pessoas não estão conectadas a isso. É preciso aproximar as pessoas com quem mora nesses territórios. Não existe diferença entre o homem e a natureza”, diz
Tommaso Giarrizzo, doutor em Biologia Marinha e professor do Labomar, confirma que os microplásticos podem se acumular em áreas costeiras, na coluna d’água, nos sedimentos de fundo e até no gelo marinho, sendo transportados por rios e correntes oceânicas.
“No projeto Detetives do Plástico registramos eles até em lagoas temporárias, formadas nos campos de dunas do Parque Nacional de Jericoacoara e do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. As lagoas mais remotas apresentaram maior concentração daquelas mais acessíveis ao público”, revela.
O especialista mostrou um resultado de outro estudo onde mais de 1.400 espécies de organismos — de invertebrados a grandes mamíferos — foram contaminados por MPs, que podem ser transferidos de presas para predadores, causando impacto em todos os níveis tróficos.
“Os microplásticos são onipresentes em locais remotos, como o topo do Monte Everest, e cruzam fronteiras políticas devido à sua dispersão global. As praias do Ceará recebem grandes quantidades de plásticos vindos de outros países, como nações africanas”, explica.
Os efeitos dos microplásticos para a humanidade ainda não são totalmente conhecidos, mas, segundo um alerta do Fórum Econômico Mundial, existe uma possível relação entre essa exposição e o aumento do risco de ataques cardíacos, derrames e até mesmo morte.
Já um estudo publicado na revista científica PLOS ONE, mostrou que a exposição ao aditivo plástico bisfenol A, conhecida como BPA, pode influenciar o desenvolvimento de Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Maria Augusta, professora, pesquisadora e coordenadora do Centro de Estudos em Toxicologia (CETOX-UFC), um projeto de extensão do curso de Farmácia, explica que quando os microplásticos entram no nosso organismo, se acumulando continuamente, pode deteriorar a nossa saúde ao longo do tempo.
“Avaliar esses riscos é uma tarefa hercúlea. Existe uma quantidade quase infinita de combinações de tipos de polímeros, com diferentes formas e tamanhos. Os seus efeitos tóxicos já compromete a saúde dos peixes, algas, roedores e os observados por ensaios in vitro de células humanas”, afirma.
A farmacêutica e mestre em análises toxicológicas lembra que uma avaliação concreta exige dados relativos a essa exposição, medidos internamente no organismo, os quais devem ser coletados. Sem esses dados, nenhum modelo de absorção pode ser validado e nenhuma declaração pode ser feita.
“Ainda não se sabe sobre essa bioacumulação após o ingresso no corpo humano, e como o complexo ambiente interior do corpo pode alterar as características dessas partículas. Não existem limites estabelecidos para a exposição de seres humanos aos MPs e NPs”, pontua.
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Pesquisadores e cientistas de todo o mundo estão em investigação sobre os riscos dessas partículas no nosso corpo. O CETOX, projeto que Maria Augusta coordena, é um desses investigadores. Atualmente, eles estão elaborando uma revisão sistemática sobre os impactos a nossa saúde.
O pesquisador Tommaso Giarrizzo ressalta que melhorias nos métodos de detecção, maior transparência na composição dos plásticos e o desenvolvimento de padronizações globais são essenciais para preencher essas lacunas e mitigar os riscos associados a essas substâncias.
“É fundamental que nossos governos compreendam a gravidade da poluição por plásticos. Esse problema impacta não apenas os ecossistemas e a biodiversidade, mas também a saúde pública e a economia. Implementação de políticas eficazes e investimento em ciência e tecnologia são essenciais”, diz.
O tema segue como uma das pautas principais no Labomar, que tem um projeto submetido ao Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) do CNPq, liderada pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). O estudo contará com a participação de diversos pesquisadores nacionais.
A pesquisa pretende estimar os riscos associados à exposição humana a microplásticos presentes em alimentos, e definir quais são os limites seguros. Além disso, será considerado as diferenças regionais do Brasil, ampliando a relevância e a aplicabilidade dos resultados.
Como visto até aqui, diversos projetos e pesquisas em nossa região foi, e estão, sendo realizados acerca do assunto. O pesquisador e professor do Labomar, Rivelino Cavalcante, atualmente está em campo coordenando um estudo dos impactos dos resíduos sólidos e líquidos na região do Nordeste.
Tem fotos da pesquisa nas midias
A pesquisa abrange desde a foz do Rio São Francisco, em Alagoa, ao Delta do Rio Parnaiba, em Piauí. “Estamos passando por vários lugares investigando a saúde dos organismos e a correlação com essas substâncias. O tecido, o sangue, o sedimento da água, tudo isso está sendo avaliado”, comenta.
O foco deles é descobrir algum tipo de anomalia e algum indicador de alteração na saúde. Para além, vai ser avaliado a influência do lixo, esgoto, agricultura e pecuária nesse processo. “Não existe um gerenciamento eficaz dos resíduos sólidos. Vamos mostra as consequências dessa ausência”, conclui.
O Labomar também tem uma parceria com o I-Plastic, um consórcio multidisciplinar de especialistas europeus e brasileiros dedicado a estudar o transporte desses microplásticos. Pesquisas em campo já foram realizadas na Espanha, Portugal e Brasil.
A bióloga e colaboradora técnica do Labomar, Tatiane Garcia, explica que aqui o estudo focou no estuário do Rio Cocó, onde cada pesquisador abordou um aspecto específico do projeto, cujos dados continuam sendo analisados.
“Estamos realizando diversas pesquisas, eu mesmo sou integrante do projeto VITA, que combina a prática da canoa havaiana com a ciência. Em 2024, monitoramos o aporte de microplásticos nas águas costeiras da enseada do Mucuripe, em Fortaleza, e no Parque Nacional de Jericoacoara”, revela.
Outro programa em atuação é o MicroMar, maior projeto de avaliação padronizada sobre poluição por MPs nos ecossistemas costeiros do Atlântico Sudoeste. São reunidos mais de 20 instituições brasileiras e internacionais.
A contribuição do Labomar é mapear e estabelecer níveis de referência de poluição por microplásticos em praias brasileiras, cobrindo mais de 7.500 km de litoral em 17 estados. Além disso, é investigado fatores humanos e ambientais que influenciam os padrões de poluição, como densidade populacional.
Para o especialista Tommaso Giarrizzo, ações como essas são de imensa importância em diversos segmentos. “O Tratado Global do Plástico é uma das nossas maiores esperanças, precisamos de regulamentações rígidas para a produção de plásticos e de microplásticos intencionais”, reflete.
Recurso sobre o tratado
Para ele, a sociedade precisa ser engajada ativamente e está informada sobre os riscos dos microplásticos, tanto para o meio ambiente, quanto para a nossa saúde, mobilizando ações concretas. O pesquisador afirma que os plásticos têm que ser projetados para serem reutilizados ou reciclados.
“Pequenas mudanças de comportamento podem gerar um impacto positivo e ainda provocar políticas públicas mais sustentáveis. É muito triste perceber que o nosso estado do Ceará ainda consume muito plásticos, encontrados em todas as praias”, finaliza.