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Bruna Gonçalves: A graça de fazer Justiça
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Bruna Gonçalves: A graça de fazer Justiça

Mulher, negra e magistrada no Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) desde 2016, Bruna transformou sua vivência em um instrumento de mudança, atuando por uma Justiça mais inclusiva e acessível
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A juíza do Tribunal de Justiça do Ceará, Bruna Gonçalves, que receberá o prêmio Bertha Lutz (Foto: Alex Costa/ Ascom TJCE)
Foto: Alex Costa/ Ascom TJCE A juíza do Tribunal de Justiça do Ceará, Bruna Gonçalves, que receberá o prêmio Bertha Lutz

Era Carnaval quando Bruna Rodrigues recebeu uma ligação inesperada: ela estava entre as 19 mulheres escolhidas para receber o Diploma Bertha Lutz, premiação do Senado para quem se destaca na luta pelos direitos das mulheres.

Mulher, negra e magistrada no Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) desde 2016, Bruna transformou sua vivência em um instrumento de mudança, atuando por uma Justiça mais inclusiva e acessível. Mas o caminho até aqui não foi fácil.

Ser mulher no Judiciário já é um desafio; ser uma mulher negra, então, é um ato de resistência diária. No mês da mulher, esse compromisso ganha reconhecimento nacional ao lado de nomes como Fernanda Montenegro. Nesta entrevista para O POVO, ela compartilha sua trajetória, os obstáculos que precisou superar e a emoção de receber essa homenagem.

O POVO - A senhora começou carreira no TJCE em 2016 e já atuou em diferentes comarcas e funções. O que mais te marcou nessa trajetória?

Bruna Gonçalves - Quando cheguei ao Ceará, minha primeira comarca foi Graça (a 305,46 km de Fortaleza, na microrregião de Sobral). Sempre brinco dizendo que Graça é a minha graça, minha “gracinha”, porque foi um lugar onde fui extremamente abençoada, aprendi muito e me conectei com uma nova visão de vida.

Foi ali que me transformei, porque pude ver de perto diversas realidades — desde quem tem muito até quem tem pouquíssimo. O que para alguns é banal, para outros é uma necessidade básica. Esse contraste da vida, que vi em Graça e ao viajar pelo sertão, moldou minha forma de julgar e de ser magistrada.
Acredito que a magistratura é um sacerdócio. Não basta apenas aplicar a lei em um país tão desigual. A Justiça precisa ser plural, incluir, representar, enxergar as diferenças. Julgar com essa consciência significa incorporar perspectivas de gênero e raciais para combater as mazelas do machismo, do racismo e de tantas outras desigualdades.

Esse olhar vem das minhas experiências. Como diz Conceição Evaristo Conceição Evaristo é uma grande linguista e escritora afro-brasileira : “Estou falando de mim mesma, do que vejo, do que sinto e do que passo.” São realidades sociais que não podem ser negadas. Precisamos de um Judiciário que tenha olhos bem abertos para essas questões.

OP - Atualmente integra o Comitê Multissetorial para Promoção de Políticas Públicas Judiciais de Atenção às Pessoas em Situação de Rua (PopRuaJud), que promove políticas públicas para pessoas em situação de rua. Como esse trabalho se conecta com sua visão de Justiça?

Bruna - Tudo isso se conecta diretamente com o PopRuaJud, porque lidamos com pessoas em situação de rua, e sabemos quem são essas pessoas: majoritariamente marginalizadas. Meu objetivo é contribuir para essa causa, formando uma rede de atuação com outros tribunais, órgãos da justiça e a sociedade civil.
Buscamos dar visibilidade a essa população e garantir a dignidade e os direitos de cidadania que toda pessoa deve ter. Justiça não pode ser um privilégio de poucos.

OP - A senhora já enfrentou desafios por ser mulher e negra no Judiciário. Como essas experiências moldaram sua atuação como magistrada?

Bruna - Um dos momentos mais marcantes da minha trajetória foi me reconhecer não apenas como magistrada, mas como uma mulher negra dentro do sistema judiciário.

No começo da carreira, eu achava que, ao me tornar juíza, não passaria mais por situações de racismo. Pensava que isso era um problema atrelado à condição social e econômica, não à cor da pele. Mas, na prática, percebi o contrário.

Essa realidade mudou minha perspectiva. Foi como se uma chave virasse e eu passasse a enxergar, em retrospectiva, tudo o que já havia acontecido e o que poderia fazer para evitar que isso continuasse — tanto para mim quanto para outras pessoas, principalmente crianças e jovens negros.

OP - No seu dia a dia, quais são os maiores desafios para garantir que a Justiça alcance realmente as mulheres e grupos vulneráveis?

Bruna - O maior desafio é garantir que a Justiça não seja apenas um conceito abstrato, mas uma realidade acessível para todas.

Para isso, é preciso um olhar atento às desigualdades estruturais. Não basta tratar todos da mesma forma se o ponto de partida não é o mesmo para todos. Quando falamos de mulheres, especialmente mulheres negras e periféricas, estamos lidando com uma série de barreiras históricas que dificultam o acesso à Justiça e a garantia de direitos.

A aplicação da lei precisa levar isso em consideração, seja no combate à violência de gênero, na promoção de políticas públicas ou no próprio funcionamento do sistema judiciário, que ainda tem pouca representatividade feminina e racial em cargos de decisão.

OP - Mesmo em um cargo de prestígio, a senhora já relatou episódios de racismo. Como lida com isso e como enxerga a luta por igualdade dentro do próprio sistema judicial?

Bruna - Infelizmente, o racismo não desaparece com um cargo ou um título. Ele está presente em pequenas e grandes situações, na forma como sou tratada, na surpresa de algumas pessoas ao verem uma juíza negra, na desconfiança que às vezes surge antes do respeito.

Lidar com isso exige resiliência, mas também ação. Eu me recuso a naturalizar essas situações. Sempre que possível, transformo essas experiências em debates, reflexões e iniciativas que possam mudar essa realidade.

A luta por igualdade dentro do sistema judicial passa por reconhecer que ele ainda é majoritariamente branco e masculino. Precisamos de mais representatividade, mais mulheres, mais negros e mais diversidade nas instâncias de poder. Só assim poderemos construir um Judiciário verdadeiramente plural e comprometido com a justiça para todos.

OP - Agora, ao receber o Diploma Bertha Lutz, qual o significado desta homenagem para si e para a luta coletiva das mulheres no Brasil?

Bruna - Mais do que um prêmio, esse reconhecimento é uma celebração de todas as pessoas que vieram antes de mim e abriram caminho para que eu pudesse estar aqui hoje.

Sou filha de um colocador de papel de parede e de uma professora da rede pública. Estudei em escola pública, enfrentei muitos desafios antes de ingressar na magistratura. Esse prêmio não é só sobre mim, mas sobre todas as "Brunas" que vieram antes e as que ainda virão.

Ele simboliza o trabalho de uma mulher em favor de outras mulheres — e não apenas delas, mas da sociedade como um todo. Não se trata de uma competição entre gêneros, mas de buscar uma sociedade justa, em que mulheres não sejam subjugadas, em que sua existência não seja medida por estereótipos.

Ainda temos muito a avançar. Os números de feminicídios seguem altos, a participação feminina no Judiciário ainda está aquém do necessário. Mas acredito que estamos trilhando o caminho certo. A luta continua, e essa homenagem me dá ainda mais energia para seguir transformando a justiça em um espaço mais inclusivo e acessível para todos.

OP - Olhando para o futuro, quais são seus principais sonhos e objetivos dentro e fora do Judiciário?

Bruna - Meu maior objetivo é continuar estudando e atuando para que o Judiciário seja cada vez mais inclusivo e representativo. Quero ver mais mulheres, mais negros, mais diversidade nos espaços de poder.

Sonho com um futuro onde essas discussões sejam apenas história — algo que meus filhos, daqui a 10 ou 15 anos, olhem para trás e digam: "Nossa, isso acontecia mesmo?" Como fazemos hoje ao lembrar que um dia as mulheres não podiam votar.

Acredito que estamos avançando, mas ainda há muito a ser feito. Quero contribuir para que essa mudança aconteça e para que, um dia, possamos viver em uma sociedade verdadeiramente igualitária, onde a cor da pele ou o gênero não definam o destino de ninguém.

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