Elas trabalham com dor, sofrem microagressões e perdas de direitos, estão constantemente preocupadas com a segurança e ainda são as principais cuidadoras. Embora a participação feminina esteja cada vez mais forte no mercado de trabalho do Brasil, a luta por direitos iguais — que vai desde a remuneração até a divisão equitativa de tarefas — ainda é permeada por angústias.
Metade das profissionais brasileiras dizem vivenciar, hoje, níveis maiores de estresse do que há um ano, enquanto a jornada não termina com o fim do expediente e os estigmas relacionados à saúde menstrual e menopausa persistem.
E se as questões de saúde mental, longas horas de trabalho e disparidades de gênero continuam a impactar negativamente a vida profissional das mulheres no País, as que conciliam emprego com maternidade enfrentam pressão e cargas adicionais. No malabarismo para equilibrar tantos papéis, elas não abrem mão da profissão — mas se questionam: o que ser mãe significa para a carreira de uma mulher?
Essas são algumas das conclusões da pesquisa global Woman @ Work 2024, realizada pela consultoria Deloitte para entender as condições de trabalho do público feminino e suas preocupações no ambiente profissional.
O estudo, que ouviu 5 mil mulheres de dez países, das quais 500 são do Brasil, também relevou uma estagnação no avanço das condições para mulheres dentro e fora do mercado nos últimos anos.
Uma a cada quatro mulheres (24%) diz ter sofrido assédio durante o atendimento a clientes ou consumidores, enquanto outras 13% relataram assédio de colegas de trabalho, e mais 13% descreveram assédios em viagens a trabalho.
O assédio também foi relatado por 40% das brasileiras, e mais da metade desse grupo (60%) afirmou não ter reportado o ocorrido.
O levantamento mapeou, ainda, quais aspectos prejudicam a progressão desse público: 24% das mulheres que deixaram voluntariamente o emprego no último ano citaram remuneração inadequada, 18% alegaram falta de equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, e 18% apontaram falta de oportunidade de aprendizado e desenvolvimento.
Já outros 27% não querem progredir para uma posição de liderança sênior dentro de sua organização por não gostarem da cultura da empresa (20%), por não terem planos de continuar na organização (19%) ou por acharem que não possuem oportunidades (19%). Confira o que mais disseram as trabalhadoras brasileiras:
Segundo o levantamento, as principais microagressões que as mulheres sofrem no trabalho são bropropriating, gaslighting, mansplaining, manterrupting e micromachismo. Entenda cada um dos conceitos no quadro a seguir:
2024 é o quarto ano em que a empresa elabora esse estudo e, em entrevista ao O POVO, representantes da Deloitte elencaram as principais diferenças observadas entre os levantamentos feitos durante a pandemia de Covid-19 e os mais atuais.
“Os relatórios de 2021 e 2022 foram dominados pelos impactos negativos da pandemia e pelos resultantes desafios à medida em que emergimos dela. Os dados revelaram um mundo de trabalho onde as mulheres enfrentavam esgotamento, experiência de exclusão à medida em que as organizações mudaram para o trabalho híbrido e encontros com comportamentos não inclusivos”, diz Ana Letícia Godoy, líder de estratégia de Diversidade e Inclusão (D&I).
“Em 2023, vimos alguns sinais de melhoria nestas áreas, mas elevados níveis de estresse, carga domésticas pesadas, falta de apoio no local de trabalho para desafios de saúde física e mental e as preocupações com o trabalho flexível continuaram”, ressalta.
Godoy acrescenta que “as descobertas da pesquisa são instigantes e fornecem informações para que empregadores em todo o mundo saibam o que precisa progredir para ajudar a criar locais de trabalho onde as mulheres possam prosperar”.
É o que também acredita Aline Vieira, líder do programa Delas, pilar de gênero da estratégia D&I da Deloitte: “Os resultados da pesquisa indicam que ainda há muito a ser feito e trazem sugestões do que as organizações podem fazer para apoiar o sucesso das mulheres”.
Dentre as recomendações trazidas pelo estudo e citadas por Vieira, estão “garantir que as políticas organizacionais reflitam a importância da saúde das mulheres e criem uma cultura onde elas possam falar abertamente sobre sua saúde física e mental e, se necessário, obter uma folga no trabalho por causa disso”.
Outro apontamento feito é a necessidade de “compreender e abordar as preocupações das mulheres sobre sua segurança no local de trabalho; incorporar políticas e benefícios adequados para a família e concentrar-se em permitir o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal”.
Além disso, a pesquisa indica a importância de se “compreender o impacto das políticas de retorno ao trabalho presencial sobre as mulheres e, em seguida, tomar medidas para identificar e enfrentar os desafios; e abordar comportamentos não inclusivos – apoiando o direito das mulheres de reportar”.
Apesar da estagnação no avanço de condições para mulheres dentro e fora do ambiente de trabalho nos últimos anos, a emergência da defesa aos direitos femininos tem trazido consigo uma abordagem que desafia as fronteiras tradicionais da análise econômica: é a economia do cuidado "Entende-se por “economia do cuidado” o trabalho invisibilizado, e não remunerado exercido majoritariamente por mulheres. Isso envolve desde tarefas para manutenção do lar até o zelo com crianças, idosos, pessoas doentes ou com necessidades especiais, entre outros." , um termo que lança luz sobre o trabalho de cuidado não remunerado que majoritariamente é relegado às mulheres.
Não à toa, o tema foi levado à discussão no fim do ano passado, quando quase 3 milhões de estudantes tiveram de refletir e escrever sobre os “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” por meio da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2023.
A economista Silvana Parente, doutora em economia e membro da Academia Cearense de Economia, atribui esse cenário à carga excessiva de responsabilidades da economia do cuidado que culturalmente recai sobre a mulher — e que se reflete nas disparidades de gênero no mercado de trabalho.
“A maioria de nós, mulheres, é responsável por desempenhar esse trabalho de cuidado não remunerado: seja por cuidar de filhos, de idosos, da família inteira, do trabalho doméstico. Porque a sociedade, culturalmente, coloca essa carga em cima da mulher”, avalia.
“Essa responsabilidade é um problema sério, é uma das causas das diferenças de gênero no mercado de trabalho e tem consequências. A mulher não tem tempo para estudar, para progredir, muitas vezes deixa de sonhar em obter cargos mais elevados dentro da empresa. Você tem peculiaridades a mais que elevam problemas de estresse, saúde mental, dificuldade de equilibrar vida pessoal com vida profissional. Tudo é afetado devido a esse excesso de carga”, observa.