Esporte aquático que mescla características do surfe ao uso de uma pipa movida pelo vento, o kitesurfe tem quebrado fronteiras para além da diversão no Ceará, o qual conta com características naturais favoráveis. A modalidade vem se consolidando como um vetor econômico no Estado, vinculado ao desenvolvimento de diversos litorais.
No último ano, de um total de 226 mil turistas de aventuras que visitaram a região, 60% vieram pela prática do kite, em sua maioria de outros países. O gasto médio diário desses atletas foi estimado em R$ 7.312, com um tempo de permanência por volta dos 12 dias, de acordo com dados divulgados pela Secretaria do Turismo do Ceará (Setur-CE).
A secretária da Setur-CE, Yrwana Albuquerque, vê que o local está se tornando um destino mundial do kitesurfe e que, em divulgações a outros países, as pessoas já estão associando o esporte ao Estado. Para ela, isso fomenta uma cadeia produtiva, pois muitos desses esportistas se tornam investidores, além do incremento no turismo.
A geração de emprego e de renda, a construção de novos negócios e a valorização imobiliária são alguns dos pontos fortalecidos nas regiões que, comumente, recebem turistas do kite no Estado. “É uma cadeia muito diversa e, sem dúvida, a atividade turística no Ceará traz um retorno muito maior do que qualquer outra atividade econômica”, conforme Yrwana.
Além disso, como o período de ventos é extenso no Ceará – ocupando todo o segundo semestre –, abre-se uma margem grande para a visita de turistas do kite. Márcia Pinheiro, presidente da Associação Brasileira de Agências de Viagens do Ceará (Abav-CE), analisou que um diferencial deste público é o alto poder aquisitivo, já que o esporte é caro.
“As famílias também vêm juntas, e as crianças estão frequentando escolinhas de kitesurfe, que estão bem procuradas. Vemos também pessoas famosas buscando o Ceará para praticar kitesurfe. (...) Não são apenas as pousadas que se beneficiam, mas também restaurantes, lojas, todo o comércio ganha com esse incremento do turismo”, pontuou Márcia.
Pequenas vilas de pescadores já foram transformadas pelo kite, como a Praia do Preá – ao lado de Jericoacoara, a 282 quilômetros (km) de Fortaleza –, reunindo investimentos milionários em grandes empreendimentos nos últimos anos. Outros locais mais próximos à Capital também são polos da prática, como Cumbuco, Taíba, Itarema e Trairi.
O gerente do hotel Casa na Lagoa, o qual dispõe de uma escola de kitesurfe no município de Paracuru – a 90 km de Fortaleza –, Solemel Godoy, explicou que já viu momentos mais fortes e outros mais fracos do turismo na região, mas que, nos últimos anos, muitos kitesurfistas estão aproveitando a temporada dos ventos por lá, elevando o faturamento do negócio.
Algo notório, também, para a secretária do Turismo e da Cultura de Caucaia – onde está localizada a Praia do Cumbuco –, Lívia Holanda, que cita dois “Cumbucos” distintos: um antes do kitesurfe e um pós-kitesurfe. “Isso é evidente na alta taxa de ocupação dos hoteis, assim como no aumento de investimentos que estamos vendo na região.”
O impacto é tamanho que a gestão municipal de Caucaia está planejando promover a ‘Lei do Kitesurfe’, a fim de padronizar cerca de 50 escolas de kite na região. Segundo Lívia, isso deve ser planejado após o período eleitoral, que finda em outubro. Já, no Ceará, a Lei Nº 16.586/2018 determinou o Dia do Kitesurfe e do Kitesurfista em 1º de agosto.
Fortaleza tem até ficado de escanteio com o grande movimento de kitesurfistas em outros municípios, porque eles vão, frequentemente, direto para os locais de maior fomento à prática esportiva em vez de ficar na Capital, o que a presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hoteis do Ceará (ABIH-CE), Ivana Bezerra, vê como um desafio a ser superado.
“Estamos tentando fazer um trabalho para mostrar a cidade de Fortaleza para que esse público conheça também a nossa Capital. Estamos tentando que eles venham para cá antes ou depois da prática do esporte”, disse Ivana, cujo objetivo é, inclusive, interiorizar a ABIH pelo Estado, pois a maioria dos estabelecimentos associados ao órgão é de Fortaleza.
Prática esportiva aquece também o mercado de trabalho
Com o crescente número de turistas e adeptos do kitesurfe no Ceará, cada vez mais escolas e instrutores têm surgido em diversos litorais. Grande parte desses profissionais deixam outras áreas para se dedicar a esses novos empreendimentos esportivos em busca de qualidade de vida, tanto pelo contato com a natureza quanto pelo financeiro.
Foi assim com Fernando Júnior, de 40 anos, dono da escola Kitepoeira, na Praia do Cumbuco, em Caucaia, ao lado de Fortaleza. Nos início dos anos 2000, o kitesurfista trabalhava como garçom e, por falar outros idiomas, foi convidado por um estrangeiro a aprender sobre o esporte e se tornar um instrutor em uma outra escola local.
Algo que ele não imaginava que se tornaria o primeiro passo para a abertura do seu próprio negócio familiar depois de alguns anos. “Quando aprendi, a ideia era realmente dar aulas para poder ganhar mais”, relembrou. Questionado sobre quanto um instrutor de kite ganha, Júnior disse que isso varia muito a depender do profissional.
Enquanto o dono da escola Soulkite Brazil, na Ilha do Guajiru, em Itarema – a 211 km da Capital –, Tomaz André, 40, viu o esporte como uma via para deixar o mundo corporativo. Ele trabalhava na construção de parques eólicos, como técnico em mecatrônica, e fez um planejamento para mudar de profissão, juntando dinheiro e fazendo cursos.
“Embora exista segurança no mundo corporativo, tenho observado que as pessoas buscam cada vez mais atividades que proporcionem prazer. Já tive na minha escola profissionais que migraram de outras profissões, como engenheiros ambientais, administradores, advogados, fisioterapeutas e até jogadores de futebol”, citou Tomaz.
Tomaz ganhava entre R$ 6 mil e R$ 8 mil no setor eólico e, atualmente, consegue fazer até dez vezes mais em um mês movimentado para o esporte, como outubro.
Já Alexandre Ribeiro, conhecido como Mosquito, 56, dono da escola Rancho do Kite, na Praia do Preá – a 282 quilômetros (km) de Fortaleza, ao lado de Jericoacoara –, trabalhava na área de alimentação, no Rio de Janeiro, antes de mudar para o litoral cearense no início dos anos 2000 e migrar para o kitesurfe, onde viu uma oportunidade promissora.
Hoje, o Rancho do Kite tem parceria com o condomínio de luxo Vila Carnaúba – que reúne investimentos de R$ 270 milhões e centenas de empregos diretos – e, antes, atuava com o hotel Rancho do Peixe, cujas diárias podem superar R$ 2 mil. Para Mosquito, “o kitesurfe trouxe desenvolvimento econômico e social para a região”.
“Nos últimos dez anos, o Preá ganhou uma projeção muito boa, e nos últimos cinco anos, realmente se tornou um destino nacional e internacional do kite. (...) Muitos empreendimentos começaram a surgir também. O carro-chefe aqui é o vento e o kitesurfe. Ele trouxe mudanças significativas no trabalho e na vida das pessoas”, acrescentou.
Com escolas tanto no Preá quanto em Trairi – a 126 km de Fortaleza –, o instrutor Jailson Sena, 41, dono do Guajiru Kite Center, possuía uma barraca de praia antes de montar um negócio voltado ao kitesurfe. Ele relatou que a decisão impactou completamente a sua vida, tanto na área pessoal quanto na parte financeira.
“Acredito que isso acontece com várias pessoas em toda a costa do Ceará. (O kite) mudou a vida delas, pelo menos entre meus amigos. Quando estamos em um período que não é de temporada de ventos, isso é perceptível. É uma cadeia de negócios, e hoje consigo oferecer mais emprego”, pontuou Jailson.
Todavia, os custos para a prática do kitesurfe não são baixos. As aulas custam R$ 350 em média, mas é recomendado que os iniciantes façam, no mínimo, dez aulas para começar a aprender de fato. Esses pacotes variam entre R$ 2 mil a R$ 3 mil no Ceará, onde já se inclui o uso dos equipamentos e a orientação constante dos instrutores.
Os valores dos equipamentos para a prática do kitesurfe também são caros. O aluguel diário do kite fica em torno de R$ 500 a R$ 600 no litoral cearense. Aos que preferem comprar, é preciso desembolsar entre R$ 8 mil a R$ 20 mil, às vezes até mais, a depender da marca e da condição de uso, isto é, se é novo ou usado, por exemplo.
Ceará se consagra como destino de competições mundiais do kitesurfe
O Ceará se consagrou como um destino mundial de competições do kitesurfe devido às suas condições de vento favoráveis, movimentando a economia local. Nesta semana, inclusive, o maior rally de kitesurfe do mundo, conhecido como Sertões Kitesurf, passa pelos municípios de Fortim, Aquiraz, Trairi, Itarema e Cruz, entre 23 e 26 de outubro.
A presidente-executiva (CEO, em inglês) do Sertões Kitesurf, Leonora Guedes, explicou que esta é a quarta edição da competição, e é a segunda vez que o Ceará sedia todo o trajeto. Na sua visão, o Estado é o berço desse esporte, com características que vão além do vento, a exemplo da receptividade local e da boa infraestrutura.
A ideia de Leonora é que o evento seja um diferencial, também, para a economia cearense, pois o Sertões ocorre geralmente em outubro e favorece a rede hoteleira fora do período de férias. “Conseguimos trazer uma ocupação que, talvez, não se teria nesse período, com um público diversificado e qualificado”, detalhou.
Nesta edição, há expectativa de participação de 80 atletas, incluindo pessoas de diversos estados brasileiros e até de outras nacionalidades, como Argentina, Portugal, Inglaterra e Suíça, além da presença do atleta Bruno Lobo, que representou o País nas Olimpíadas de Paris 2024, na estreia do kitesurfe como esporte olímpico.
As inscrições variaram de R$ 3 mil a R$ 6 mil, a depender da categoria, sem contar os custos com transporte, alimentação e hospedagem. Já os prêmios chegam até R$ 5 mil, bem como equipamentos de kitesurfe, brindes e tíquetes para uso no clube de hospedagem de luxo Carnaúba Wind House, na Praia do Preá.
Em setembro, o Estado também foi palco da maior viagem de kitesurfe do mundo, denominada Iron Macho, a qual reuniu cerca de 100 membros em sua 10ª edição, percorrendo 1,8 mil quilômetros do litoral nordestino, ao passar pelos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão.
O fundador do Iron Macho, Marques Filho, enxerga na prática uma forma de levar turistas a praias que, muitas vezes, não iriam dispor de movimentação em determinadas épocas do ano. Em 2024, por exemplo, os atletas passaram por 644 praias e se hospedaram em 66 hoteis e pousadas do Nordeste, contratando mão de obra local.
Os custos para participar dos trajetos iniciam em R$ 4 mil, mas podem chegar até R$ 29 mil, com tudo incluso. Marques passou a organizar viagens de kitesurfe após largar um emprego na área de computação – onde ficava horas em frente a um computador. Desde então, disse que está muito mais feliz. “Consigo ter contato com a praia, com as pessoas e com a natureza.”
Conexão com a comunidade e o meio ambiente
O mercado econômico e o próprio estilo de vida vinculados ao kitesurfe olham também para dimensões ambientais e sociais. A presidente-executiva (CEO, em inglês) do rally Sertões Kitesurf, Leonora Guedes, destacou a realização de ações de saúde em municípios onde a competição passa neste mês de outubro, em parceria com a entidade SAS Brasil.
Dos dias 19 a 27 de outubro, por exemplo, foi realizado um mutirão de atendimentos nas cidades de Itarema, Acaraú e Cruz, especificamente na Praia do Preá, com 50 voluntários nas áreas de pediatria, dermatologia clínica e cirúrgica, endocrinologia, ginecologia, oftalmologia e saúde mental. Mais de cinco mil pessoas foram beneficiados.
Foram usadas Unidades de Tratamento Avançado (UTA) e uma Unidade Móvel em Saúde, onde puderam ser realizados procedimentos clínicos e até pequenas cirurgias ginecológicas e dermatológicas, de acordo com a organização do Sertões. A iniciativa visa "reduzir e, em alguns casos, até mesmo zerar a fila do Sistema Único de Saúde (SUS)".
Outra iniciativa, em parceria com as organizações Sertões Kitesurf, HStern e Kite For The Ocean, visa retirar seis toneladas de lixo do oceano no litoral cearense até o dia 30 de junho de 2025 por meio de mutirões de limpeza com kitesurfistas e de um método de limpeza mecanizada.
De acordo com a secretária do Turismo do Ceará (Setur-CE), Yrwana Albuquerque, está sendo idealizado ainda um projeto para contabilizar - em uma plataforma junto com a iniciativa privada - os quilômetros percorridos pelos kitesurfistas no Estado, a fim de retirar ou impedir lixos no oceano e promover um turismo sustentável.
Mercado do kitesurfe no Ceará
O kitesurfe é responsável por 60% dos 226 mil turistas de esportes e aventuras que visitam o Ceará
Mais da metade dos turistas que vem ao Ceará para a prática do kitesurfe são de outros países
A França é o principal mercado emissor de turistas do kitesurfe no Ceará, seguida de Argentina, Portugal e Itália
O tempo médio de permanência do atleta internacional no Ceará é de 12 dias
O gasto médio diário de turistas estrangeiros do kitesurfe no Ceará é de R$ 7.312
Fonte: Setur-CE