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Não para, não para, não para: Alan Neto se despede aos 83 anos
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Não para, não para, não para: Alan Neto se despede aos 83 anos

Icônico jornalista do O POVO marcou história no rádio, no jornal e na TV, com irreverência, estilo polêmico e muitas bombas de mil megatons
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ALAN NETO CAPA (Foto: Fco Fontenele)
Foto: Fco Fontenele ALAN NETO CAPA


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O trem parou na estação, o maquinista desceu e acenou ao público antes de partir, no ar o dedo ainda rodopiando, gesto pelo qual era reconhecido em todos os cantos. Aos 83 anos, Manoel Simplício de Barros Neto faleceu ontem, 3, em Fortaleza, mas Alan Neto, persona que acabaria adotando, segue viagem na locomotiva da memória e nos trilhos do coração de seus familiares, amigos, leitores e admiradores.

“Não para, não para, não para”, Alan costumava bradar ao vivo. Voz trovejante, o príncipe do rádio e rei da audiência explorava o timbre encorpado e a altura (tinha 1,84m), preenchendo o centro do palco onde comboiava o time do programa.

Todos tinham papéis arquetípicos: o Homem Mau, a Fera, a Bela e por aí vai, contemplando toda sorte de predicados mais ou menos nobres, numa mostra de que, para ele, sua função era a mesma do maestro-diretor: conduzir o espetáculo.

Alan Neto teatralizou o esporte e futebolizou a política. Dentro de campo e dos gramados, inventou uma gramática própria, arejando o comentário repleto de azedume e seriedade das mesas-redondas de então. No ar, divertia-se perorando e desancando, atacando e se defendendo, como se emulasse os movimentos de uma partida.

Não se vexava, por exemplo, de desafiar os amigos a citarem uma mentira e uma verdade sobre o assunto que lhe coubesse escolher naquele momento, algo que tirava da cartola, sem aviso prévio, a fim de não deixar a peteca cair.

Daí o dedo do “Trem Bala” sempre em riste, na velocidade da imagem o desejo de Alan de que o ritmo vertiginoso fosse um ingrediente da atração radiofônica e televisiva.

Mas era mais que isso: Alan pensava adiante e ligeiro, de pronto estava engatilhado, como um prestidigitador. Os bordões nasciam dessa necessidade de surpreender as pessoas, fosse com o que fosse, desde que o trem continuasse viagem. Nessas horas, apelava ao mais popular, esgrimindo expressões de uso corriqueiro, tais como “do tempo do ronca”, “meter a mão em cumbuca” e “briga de foice”. Criava, desse modo, uma conexão mais afetuosa com todo tipo de ouvinte e espectador.

Jornalista Alan Neto(Foto: Acervo O POVO)
Foto: Acervo O POVO Jornalista Alan Neto

Era risonho, galhofeiro e debochado, regente de uma modalidade cênica que não distinguia fronteiras para o jornalismo e o entretenimento, movendo-se nesse espaço que, para ele, funcionava como um tablado onde se apresentava o personagem cujo nome era a composição do astro do cinema francês Alan Delon com o Neto enraizado no Ceará, demarcando a herança do avô, a quem era muito ligado.

Desde cedo, portanto, tinha essa noção muito evidente da interpretação, do ato de entreter mesmo quando falasse a sério das crises sucessivas que marcaram o futebol cearense e outras coberturas das quais participou no curso de sua longeva carreira multiplataforma — do rádio para a TV e da TV para a internet, sem jamais deixar nenhuma delas.

“Ficar fazendo média?! Não aqui no Trem Bala”, sapecou na reestreia do programa no O POVO, em 18 de setembro de 2023. Vestindo aquela camisa azul-berrante de mangas compridas de galalau, secundado por Sérgio Ponte e grande elenco, Alan parecia debutar no programa, mas já contabilizava boas décadas desde a estreia na Rádio Iracema, onde deu as primeiras caneladas como repórter esportivo antes de passar a outras frequências — e onde conheceria o amor da sua vida, Ivanilde.

23 de janeiro de 1974 - Sérgio Ponte e Alan Neto em entrevista com Pelé(Foto: Acervo O POVO)
Foto: Acervo O POVO 23 de janeiro de 1974 - Sérgio Ponte e Alan Neto em entrevista com Pelé

Nascido em Senador Pompeu, em 27 de novembro de 1940, mas criado na pequena Umarizeiras, um distrito de Maranguape com menos de 2 mil habitantes ainda hoje, Manoel Simplício só se tornaria Alan Neto aos 15 anos, quando um primo, recém-saído do cinema, calhou de sugerir que empregasse o momentoso nome que, à época, arrancava suspiros das moças.

Ora, de Manoel a Alan foi um salto — ou um giro, para continuar falando a língua do maquinista do “Trem Bala”. Com a ajuda de outro primo (o radialista Armando Vasconcelos), logo se empregou. No batente, cobria de tudo: do vôlei ao futebol de salão, do basquete à natação. Meninote, não tinha pudor em parecer mais experiente e esperto do que realmente era.

Ali, na Rádio Iracema, começou de fato a trajetória de Alan, que depois chegaria ao O POVO, com uma passagem pelo “Diário do Nordeste”, hiato após o qual acabaria regressando ao jornal, sob a promessa de que teria uma coluna para chamar de sua. Nela, trataria de temas diversos, do “penico à bomba atômica”, como se dizia antigamente.

Não demorou para estourar, embora nem tudo fossem flores. Em entrevista às Páginas Azuis do O POVO em 2010, Alan recordou que, bem no comecinho, para atrair anunciantes ao programa, citava marcas graúdas que não eram parceiras e com as quais não tinha contrato, dando a entender que a atração era bancada por grana boa. Não era.

A estratégia, porém, deu certo, e o “Trem Bala” se consolidou, primeiro na rádio e apenas depois na televisão, onde manteve suas características medulares: total irreverência, explícita controvérsia e aberto despudor. Há quem diga que o tom era excessivamente “moleque”, mas Alan tinha audiência fiel e numerosa que pensava o contrário. Na esteira das edições, os aficionados só aumentavam.

Jornalista Alan Neto(Foto: Fco Fontenele)
Foto: Fco Fontenele Jornalista Alan Neto

Desse arco narrativo, o ponto alto, segundo ele mesmo, foi a entrevista com Pelé, em meados dos anos de 1970. É o próprio Alan quem conta: “Com o Pelé, sim, foi o auge da minha carreira como repórter. Foi quando consegui aquela bomba: ‘A minha última Copa é a de 70’. Agora, pra entrevistar esse homem, no Savanah Hotel...”.

Em seguida, resume o acidentado caminho até obter a confissão do rei do futebol: “Chamo Sérgio Ponte, com um gravador deste tamanho. Aí o Pelé: ‘Vou dar uma entrevista pra salvar o teu emprego. Bote aí: eu encerro a minha carreira, como jogador de futebol, na Copa de 70. Não jogo mais pela seleção’”. A frase foi parar na primeira página do jornal do outro dia.

Não satisfeito com o êxito no rádio, o maquinista pôs-se a escrever. O assunto, porém, passava longe dos esportes — era política. Também no O POVO, assinou coluna semanal, primeiro como “Confidencialmente”, depois como “Confidencial” e, na sequência de nova mudança, “Alan Neto”. É porque já dispensava adjetivos ou outros penduricalhos: o nome lhe bastava.

Alan Neto(Foto: JULIO CAESAR)
Foto: JULIO CAESAR Alan Neto

Fosse na política ou dentro das quatro linhas, contudo, o público o acompanhava. Ora em tom mais noticioso, ora mais como cronista, ora como um “flâneur” de bastidores, Alan exibia uma dicção particular na exploração das relações e dos disse-me-disse de corredores palacianos: quem se incomodara com tal ato, quem cairia de uma secretaria, quem seria alçado a cargo de maior envergadura, a quantas andava o trato entre o governador e a prefeita.

Nesse jogo, era certeiro também fora do âmbito político, como quando antecipou que o ex-Beatle Paul McCartney faria show em Fortaleza em maio de 2013, uma década atrás.

Craque no gramado, Alan tinha jeitão de camisa 9 (ainda que fosse um perna de pau no futebol) na lida com os temas mais palpitantes da sociedade cearense, seja um casamento partidário mal-sucedido (PT e PDT em 2022, por exemplo), seja as questiúnculas que desassossegavam aqueles cujo apetite pelo poder nunca se esgota.

 

Mas era só no “Trem Bala” que ele se despia, desincumbindo-se de qualquer máscara social para se tornar Alan Neto. Ele sabia disso. Ainda em novembro do ano passado, sem disfarçar a emoção que lhe arranhava a voz, alegrou-se com o seu retorno ao O POVO após uma temporada apresentando-se na TVC.

“O Trem Bala está de volta a sua casa materna. Toda volta tem um significado todo especial, está na bíblia. Leia lá, o filho pródigo. Todos nós somos filhos pródigos que voltam, é um começar de novo”, discursou, o olhar fixado na câmera postada a sua frente, os movimentos mais contidos, sem tantas mesuras e tiques. Antes de prosseguir, Alan acrescentou: “Nossa casa sempre foi essa aqui”.

Mesmo que o trem retome a sua viagem, já que o mundo não para de girar, o lugar do maquinista estará sempre vago para o Manoel Simplício que se tornou Alan.

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