Paredes e chãos pintados de verde e amarelo. Bandeiras das mesmas cores cintilavam no céu azul com brancas nuvens. Mas nem o mais belo entardecer do horizonte tiraria os olhos da nação brasileira da frente da televisão em 17 de julho de 1994.
Foi naquele dia que, por meio de imagens captadas dos Estados Unidos, foi possível ver, após um empate em 0 a 0 entre Brasil e Itália, no estádio Rose Bowl, em Pasadena, os italianos Franco Baresi e Roberto Baggio cobrando pênaltis para longe do gol de Taffarel, que, embalado pela narração de Galvão Bueno, defendeu o chute de Daniele Massaro. E com os arremates certeiros de Romário, Branco e Dunga, o Brasil se tornou a primeira seleção a conquistar a Copa do Mundo por quatro vezes.
“Tem momento mais inesquecível que ganhar uma Copa do Mundo?”, refletiu o ex-atacante Bebeto, um dos destaques da Amarelinha naquela conquista, em entrevista ao O POVO.
O caminho do Brasil até o momento do êxtase não foi facilmente traçado. Conforme recordado por Airton de Farias, historiador, professor e autor do livro Uma história das Copas do Mundo, o futebol brasileiro vivia tribulações após a apresentação aquém do esperado na Copa de 1990, quando a Amarelinha foi eliminada nas oitavas de final para a grande rival Argentina.
“Não era favorita a ser campeã. Na verdade, o futebol do Brasil vivia uma crise muito grande após a pífia participação na Copa de 1990 e da desorganização do futebol apresentado. Naquela época existia uma discussão sobre o que era melhor: o time do futebol arte, com mais técnica, mais individualismo e não ganhar, ou futebol mais de raça, força, menos técnico”, detalhou.
Foi com obediência tática, dentro das próprias limitações e dos bons nomes que vestiram a camisa verde-e-amarela, sob o comando de Carlos Alberto Parreira, que o Brasil conseguiu conquistar o título.
O primeiro passo, na convocação, ocorreu com algumas surpresas negativas. Dois zagueiros, inicialmente chamados, tiveram que deixar a possibilidade de participar da competição por questões clínicas: Mozer foi substituído por Aldair devido a uma hepatite, enquanto Ricardo Gomes foi trocado por Ronaldão após se lesionar em um amistoso às vésperas da competição.
As mudanças não desanimaram o Brasil, entretanto. Pela fase de grupos, no dia 20 de junho de 1994, a seleção venceu a Rússia por 2 a 0, com gols de Romário e Raí, em um jogo sem grandes dificuldades. Quatro dias depois foi a vez de bater Camarões por 3 a 0, com tentos marcados por Márcio Santos e pela icônica dupla Romário e Bebeto.
A primeira dificuldade apareceu no último jogo da primeira fase. Diante da Suécia, em 28 de junho, em um empate em 1 a 1, com gol canarinho feito por Romário, o Brasil fez um jogo citado como "previsível e lento", mas o resultado foi o suficiente para que avançasse. Com a chegada do mata-mata, chegaram também os jogos inesquecíveis.
O primeiro deles ocorreu em 4 de julho. Curiosamente, o Brasil enfrentou a seleção anfitriã e, justamente no dia, colocou água no chopp de comemoração à independência dos EUA, celebrada naquela data.
Em uma partida quente, marcada também pela expulsão de Leonardo, após forte cotovelada no rosto de Tab Ramos, a seleção brasileira venceu os Estados Unidos por 1 a 0, com gol de Bebeto, servido pelo parceiro Romário.
“Eu joguei com o Ronaldinho (Ronaldo Fenômeno), vi o Ronaldinho começando. Era para a gente ter sido campeão em 1998, mas não tem jeito: Bebeto e Romário é uma coisa muito forte, coisa de Deus. Só duas duplas nunca perderam jogando pela seleção principal: Pelé e Garrincha e Bebeto e Romário. Não precisa falar mais nada”, acentuou o camisa 7 ao rememorar os momentos com o Baixinho.
A lendária dupla de ataque voltou a se destacar no jogo seguinte, em 9 de julho, quando o Brasil venceu a Holanda por 3 a 2, pelas quartas de final, naquele que, talvez, tenha sido o embate mais emblemático da seleção na campanha.
Para além da emoção do jogo, em que a Holanda buscou por duas vezes o empate, entraram para a história o gol rasteiro de Branco, que deu a classificação para as semifinais, e também a comemoração de Bebeto com "Embala Neném", ao celebrar, junto de Mazinho e Romário, o nascimento do seu filho, Mattheus.
Antes da final, a seleção superou a Suécia pelo placar mínimo. No dia 13 de julho, quatro dias antes da grande decisão, Romário marcou aos 35 minutos do segundo tempo, tento suficiente para que a Amarelinha avançasse para encarar a Itália.
E no dia 17 de julho de 1994, a glória em formato de taça voltou aos braços do Brasil, ainda que de maneira sofrida. Após um empate sem gols, a expectativa das duas seleções tricampeãs de quem se tornaria a inédita tetra foi decidida nos pênaltis — pela primeira vez na história das Copas.
Nas penalidades, iniciadas pela Itália, o Brasil venceu por 3 a 2, mas a emoção não faltou. Na primeira cobrança, feita por Baresi, o chute foi para fora, e Márcio Santos também desperdiçou. Em seguida, Albertini e Evani acertaram para a Itália, e a seleção igualou com Romário e Branco.
Tudo mudou no chute de Massaro, defendido por Taffarel. Com a cobrança seguida convertida por Dunga, e Baggio desperdiçando o último chute italiano, o Brasil pôde, enfim, celebrar o tetra.
A preleção de Carlos Alberto Parreira antes do duelo decisivo pedia aos jogadores a típica doação dentro de campo, mas, entre as clichês palavras de motivação, o treinador brasileiro salientava a importância de se jogar com “o coração, a emoção e disposição”.
O fator emocional foi um dos principais pontos da Copa do Mundo de 1994 para a seleção. Fora de campo, o País ainda sentia a morte de Ayrton Senna, um ídolo nacional; dentro dele, os atletas viviam sob a desconfiança do torcedor, já que a Amarelinha não levantava a taça fazia 24 longos anos.
Neste cenário, o que fez o escrete canarinho alcançar o tetra foram não somente as palavras de Parreira, mas a ciência das próprias limitações, na avaliação de Airton de Farias.
"Não diria que ela (seleção brasileira) superou seus limites. Ao meu ver continua sendo um time muito limitado. Um time muito ruim de se ver jogar. [...] Eu entendo que, na verdade, ela assumiu a sua mediocridade. Assumiu o seu limite. E, aos trancos e barrancos, foi chegando e foi, e foi... E aí, num jogo final, ganhou nos pênaltis. Mas eu não creio que a seleção superou a sua limitação. Ela assumiu a sua limitação e que sabia que não tinha condições de jogar outra coisa que não aquilo e aí foi. E acabou sendo campeão”, analisou.
A opinião é corroborada pelo historiador, jornalista e editor de Esportes do Jornal O Globo, Thales Machado. Ao relembrar o caminho brasileiro até o auge, ele citou que o futebol apresentado após a Copa de 1986 causava desesperança ao torcedor, de modo que o grupo comandado por Parreira teve que ser resiliente pra lograr êxitos.
"O time enfrentava desconfiança pelos 24 anos, isso pesava muito, mas acho que ele também enfrenta desconfiança muito pelo últimos anos desses 24 anos, num ciclo que eu acho que começa na Copa de 1990. Ainda que o Brasil tenha ficado 24 anos sem título, as Copas de 1974 a 1986 mostraram algo do futebol brasileiro, uma esperança. A Copa de 1990 jogava o Brasil num diferente patamar do futebol mundial e traz desesperança e pressão para esses jogadores. Veio também as Copas Américas, onde o Brasil foi mal, e esse time encarava de maneira muito corajosa. Foi um time muito resiliente", frisou.
A história da seleção campeã em 1994 se assemelha ao cenário atual, em que chegará à Copa de 2026 completando 24 anos desde que levantou a taça pela última vez.
O grupo atualmente comandado por Dorival Júnior também lida com a desconfiança do torcedor, mas Thales crê que a valorização dos principais atletas, ainda que precisem se encontrar com a camisa canarinho, podem colocar a seleção brasileira de volta a bons caminhos.
"Acho que tem muita coisa em comum pelos 24 anos sem título. O fato de não conseguir chegar nas últimas Copas numa semifinal e a última experiência ter sido trágica, como o 7 a 1, faz com que o Brasil seja jogado num patamar abaixo do que estão França, Espanha, Inglaterra e a própria Argentina. Isso cria uma pressão, pois é uma torcida já afastada de sua seleção e que não aceita isso. Talvez o que seja diferente seja a reação sobre essa pressão, até por esse distanciamento. O que se pode aprender de 1994 para lá talvez seja entender a valorização de grandes figuras, que vamos precisar delas nesse momento. Não sabemos quem será e essa será a grande dificuldade", finalizou.
O esporte tem o poder de comandar o humor do torcedor, para o bem e para o mal. Uma simples vitória é capaz de revigorar um dia, um mês ou mesmo um ano, assim como uma derrota tem a capacidade de arruinar. A torcedora do Brasil e do Ceará e assistente social, Shirley de Castro, sabe bem disso.
Ela viu toda a sua relação com o esporte mudar pouco antes da Copa de 1994, ao acompanhar o acidente que vitimou Ayrton Senna.
“Eu me lembro claramente o que eu fazia durante a morte do Ayrton Senna. Estava na sala da minha casa, estudando, e me lembro de tudo porque teve grandes acidentes (com Barrichello e Roland Ratzenberger) antes desse desastre. Eu falava bastante que se tivesse telefone dele, como entrar em contato com ele, ia pedir pra ele não correr. Eu falava que ele não podia correr, que, se fosse por mim, ele não corria. Quando aconteceu essa desgraça, o Brasil parou. E eu não consegui fazer mais nada. Não saí de casa. Foi a última vez que eu assisti a uma corrida”, recordou, com lamentação.
Foi o tetra do Brasil que restaurou os ânimos de Shirley para competições. Organizadora do ritual de enfeitar de verde e amarelo a rua em que cresceu, no bairro Vila Velha, ela relatou, com felicidade, o “tempo bom demais” em que todos os vizinhos se uniam em prol da festividade e da expectativa pela busca pelo tetra.
"Aqui na rua, que é uma rua onde todo mundo se conhece faz muito tempo, todo mundo mora faz muito tempo, geralmente a gente encabeçava para enfeitar tudo a partir da minha casa. A gente começava a puxar e todo mundo se organizava. A gente via como ia arrumar tudo, como ia prender (as fitinhas verde e amarelo), e no dia de colocar todo mundo se mobilizava, ajudava da maneira que podia. Sempre tentávamos ter a rua mais bonita, enfeitar melhor que as outras, e todo mundo colaborava, mesmo que não tinha condições ajudava com trabalho. Era um tempo bom demais. Era um evento”, contou.
"A rua era toda enfeitada, mas eu não assistia o jogo em casa. Eu ia a uma churrascaria, que é aqui pertinho, de um amigo da gente, e até hoje me reúno para acompanhar jogos com os amigos dessa época. Como era final, estava lotada. Como éramos muito amigos e frequentávamos muito lá, nossas mesas já eram reservas. Era uma turma muito grande e as outras pessoas que viam o jogo lá também assistiam conosco. O som da TV era amplificado para todo mundo ouvir, a televisão ficava mais alta, era uma 29 polegadas naquela época, e no intervalo todo mundo dançava, brincava. Depois que acabou foi uma grande festa, todo mundo pulando. Terminou em festa realmente, até dizer chega", detalhou, aos risos.
Após a morte de Senna, sentir novamente um clima de júbilo, para a cearense, foi a cura de um luto que o país precisava.
"Essa vitória, mesmo sofrida, nos pênaltis, foi como um grito do retorno da alegria pro Brasil. O esporte novamente trazendo essa alegria após passarmos por um momento de tristeza muito grande. Tivemos esse refrigério com o momento da Copa", finalizou Shirley.
“Tem momento mais inesquecível que ganhar uma Copa do Mundo?”. A retórica pergunta feita por Bebeto, em entrevista ao O POVO, em abril de 2024, demonstra bem a percepção de quem viu o Brasil se tornar tetracampeão de dentro do gramado do Rose Bowl: não há nada que descreva a sensação.
Quando as palavras se mostram insuficientes de expor um sentimento, entretanto, o corpo pode falar, com um sorriso ou um simples olhar perdido entre pensamentos.
Foi com este tipo de olhar — de quem não parecia estar em Acopiara, no interior do Ceará, mas novamente em Pasadena — que Bebeto expressou o significado de realizar um sonho que criou quando ainda era uma criança de 6 anos e via a seleção brasileira alcançar o tri sob a magia inesquecível de Pelé.
“Lembro muito bem da Copa de 1970. Aqueles caras… Meu Deus amado! Pelé, Tostão, Clodoaldo, Gerson, Rivelino… Eu sei o time todo, lembro do time todo. E era um sonho e eu disse: "Um dia vou estar aí, um dia vou ter o prazer de vestir essa camisa". Quando você começa a jogar futebol, esse é o sonho principal de todo jogador de futebol: ganhar uma Copa do Mundo jogando pelo seu país, vestir a camisa do Brasil. É a nossa segunda pele, sempre falo isso porque era uma emoção muito grande vestir aquela camisa ali”, exaltou.
O mesmo sentimento parecia tomar Taffarel quando o arqueiro, hoje preparador de goleiros da seleção brasileira, esteve no estádio Stanford, hoje parte da universidade da cidade, durante a Copa América de 2024.
No palco onde o Brasil, há 30 anos, conquistou três vitórias na campanha do tetra, o icônico camisa 1 parecia viajar no tempo e, quando finalmente conseguiu verbalizar o que sentia, à CBF TV, em meio a um tímido sorriso, salientou a sensação de poder voltar ao lugar que abriga bons momentos de um passado eternizado com êxito.
"O legal agora é você olhar para trás e saber que tem uma história. Isso é o mais legal de tudo. Você poder pensar que um dia você esteve aqui, que você marcou esse local, com as partidas que a gente fez, o grupo que tinha, uma camisa hoje que a gente continua vestindo, mas não em campo, fora de campo", afirmou.
Para os brasileiros que viveram com intensidade a Copa do Mundo de 1994, há muitos elementos que marcaram a campanha do tetracampeonato, que vão desde o costume de enfeitar e pintar as ruas até lances do jogo, como os gols de Romário. E também há acontecimento que, de maneira genuína, tomam o imaginário popular.
Inesquecível, a comemoração "Embala Neném" é uma das principais imagens do tetra. Diante da Holanda, o lateral-esquerdo Branco anotou o gol decisivo, mas o tento de Bebeto no Cotton Bowl roubou a cena e ficou eternizado pela comemoração.
“Eu sempre falo que fiz muitos gols importantes, que decidiram campeonatos, mas todo mundo só lembra do gol de Mattheus. Não tem jeito. É o embala neném. Mattheus nasceu no dia 7 de julho, eu jogava com a camisa 7 e o jogo foi no dia 9. Eu fui para o jogo já pensando nisso. “Pô, me dá uma oportunidade de fazer um gol para o meu filho”, eu pedi a Deus para fazer um gol para homenagear o meu filho e a minha esposa. Romário saindo de impedimento, eu entrei com tudo, driblei zagueiro, driblei goleiro, entrei com bola e tudo e fiz o gol”, relembra Bebeto, feliz e orgulhoso.
“Veio Romário, veio Mazinho, não combinei nada com eles e acho que, por isso, que ficou marcado. Esse gol é emblemático não só na minha vida, mas de todos os brasileiros. Eu vou para Arábia, Japão, China, e o pessoal não pode me ver que faz o gesto. É impressionante. Todo mundo lembra do Mattheus, sabe o nome dele, quantos anos ele tem”, citou o ex-atacante, orgulhoso do filho de 30 anos, hoje também jogador de futebol.
Outros momentos icônicos da Copa ganharam um toque a mais com a voz de Galvão Bueno, narrador da TV Globo. Nas grandes defesas do goleiro, o “Sai que é tua, Taffarel” se fortificou. Galvão ainda se tornou um dos protagonistas ao ter a comemoração “É tetra”, logo após o pênalti de Baggio, imortalizada enquanto abraçava, aos pulos, ninguém menos que Pelé.
Nem só de comemorações viveu o Brasil na busca pela quarta estrela. Nas oitavas de final do torneio, a Amarelinha passou por um sufoco diante dos Estados Unidos por ter que jogar com um atleta a menos. Após uma cotovelada forte na cabeça do meia Tab Ramos, Leonardo foi expulso e o grupo comandado por Parreira teve que administrar o resultado.
"A Copa foi minha. Eu fui o melhor", declarou Romário, ao deixar o vestiário do Brasil, duas horas após a final contra a Itália, de acordo com registros do O POVO. A frase poderia ser encarada como prepotência, se não fosse verdade e unanimidade. Apesar de a artilharia do Mundial de 1994 ter ficado com o russo Oleg Salenko e o búlgaro Hristo Stoichkov — cada um deles balançou as redes seis vezes —, o Baixinho quem foi mais decisivo — e campeão. Ao todo, ele marcou cinco gols e foi eleito pela Fifa como o melhor jogador da Copa.
Os golaços não ficam fora dos momentos inesquecíveis, especialmente quando são decisivos. Depois de a Holanda novamente empatar com a Amarelinha, nove minutos antes do final da partida, uma cobrança de falta rasteira feita por Branco foi capaz de devolver aos brasileiros a certeza da classificação.
Entre capas e cadernos especiais, O POVO fez uma ampla cobertura do tetracampeonato da seleção. Nos dias antecedentes à conquista, os mais variados detalhes eram apresentados aos leitores, como o fato de que o país campeão receberia a réplica da taça e não mais o troféu original, como ocorria até 1970, e que um bruxo teria previsto o êxito brasileiro.
As novidades dos dois times, a ausência de grandes figuras, como Cafu, Raí e Leonardo, e as dúvidas quanto à escalação dos italianos Roberto Baggio e Franco Baresi — curiosamente, dois que perderam as penalidades — por parte do técnico Arrigo Sacchi também eram pauta do caderno esportivo. As novidades eram enviadas pelo repórter Egídio Serpa, diretamente de Los Angeles, para o quadro "Direto da Copa".
Para além das notícias, as publicações contavam com artigos de opinião dos colunistas Alan Neto, Lúcio Brasileiro e Sérgio Rêdes e com crônicas de Nonato Albuquerque.