No Ceará, o futebol costuma costurar a vida das pessoas como tecidos de uma rede antiga, que é novamente restaurada a cada geração de uma família. É duradouro e se renova, assim como faz com as relações. O esporte é assunto de conversas e estreita convivências – aproxima num potencial até maior do que separa.
Numa casa em Pentecoste, no interior do Ceará, essa rede balança para duas direções. De um lado, o azul, vermelho e branco do Fortaleza. Do outro, o preto e branco do Ceará. O time que se escolhe, às vezes, te escolhe primeiro. E na casa da família Azevedo, a escolha virou disputa até mesmo no nascimento das filhas.
Ao Esportes O POVO, Tiago (Tricolor) e Patrícia (Alvinegra), casados há 20 anos, contaram o que já fizeram para puxar a rede com mais força para o seu lado. Eles se amam, mas não se entendem no futebol. Ele, tricolor. Ela, alvinegra. Uma rivalidade que transbordou para as filhas: Luiza, de 18 anos, herdou o Fortaleza do pai, Laura, de 11, se agarrou ao Ceará da mãe.
E assim se formaram os times dentro de casa. Dois contra dois. Um lado gritando “Bora, Leão”, o outro entoando “Bora, Vozão”. Duas bandeiras na sala – ou "cobertores" para ver um jogo, como costumam fazer. Duas paixões divididas disputando o mesmo espaço de forma acirrada, mas saudável.
Quando o embate entre as equipes chega, a casa se parte. Tiago e Luiza normalmente saem para qualquer lugar que tenha uma TV e espetinhos. Patrícia e Laura ficam. Não há negociação. “Já tentamos assistir juntos várias vezes, mas não dá certo. A gente sempre acaba se irritando”, entrega a mãe.
E quando a bola rola, mesmo sem ser Clássico-Rei, Laura, pequena e valente, é quem mais faz barulho. Quando o Ceará faz um gol, corre para encontrar o pai e “tirar onda”, como ele define. Quando é o Fortaleza que marca, a brincadeira volta. A casa se enche de gritos, risos, pequenas vinganças. Por vezes, algumas expressões fechadas, mas se mantendo saudável.
“Elas não perdem a chance de me zoar dizendo: ‘Vai, sofredor. Chora, sofredor’. Sempre falam da época que a gente passou na Série C, mas isso aí mudou quando a gente foi subindo, aí a brincadeira trocou de lado com elas na Série B. Me chamam de chorão, de ‘Stella’. Aí eu chamo de ‘Kanal’, aquela onda toda”, brinca Tiago.
Patrícia sai em defesa de Laura: "Eles dois (Tiago e Luiza) não podem nem ficar se achando dizendo que são fanáticos, porque eles nem uma música do Fortaleza, um hino, eles não sabem cantar. Já a Laura pode se considerar fanática. Tudo que você imaginar ela tem do Ceará: boné, biquíni, toalha, blusa, realmente acho que a mais fanática é ela. Sabe todas as músicas".
Tiago aprendeu que torcida se faz com afeto e insistência, lembrando de quando perdeu Laura para o Ceará. A esposa, o sogro e até mesmo seu irmão gêmeo – todos trabalharam para conquistar a menina. Presentes, camisas e histórias contadas pelo avô ao apontar para uma foto de Sérgio Alves. Tudo para que ela não escolhesse o lado tricolor.
Patrícia lembra bem da briga. “Se dependesse do pai, ela seria Fortaleza igual a Luiza. Mas a gente não deixou. Lutamos com todas as forças”.
E assim Laura cresceu cercada pelo Ceará, pelo preto e branco. Mas Tiago também não saiu perdendo. No lado oposto da família, além da filha mais velha, ganhou sobrinhas para o Leão do Pici. Conta ele que quase todas – das sete que tem – são tricolores.
“O meu sogro tem uma (loja) autopeças aqui. Lá tem uma foto do Sérgio Alves, do tempo que ele jogava no Ceará. E toda vida que a minha filha ia lá, desde bebezinha, ele ficava mostrando para ela. Não me aprofundei na competição também para não embaralhar a cabeça dela como criança”, relata.
“Mas a filha do meu irmão gêmeo alvinegro também é Fortaleza por causa de mim. A filha dele é mais velha que a minha filha mais nova. Aí foi meio que uma vingança. É engraçado que nosso pai era Ferroviário, aí cada um seguiu um lado”, complementa.
Um dia, Patrícia cedeu ao amor por Tiago. Assistiu ao Clássico-Rei no meio da torcida do Fortaleza. Sem camisa do rival, mas sem coragem de vestir a do Leão. Um corpo infiltrado no mar tricolor.
“Eu não fui com a blusa nem do Ceará, porque eu não podia. E nem com a do Fortaleza, porque eu jamais colocaria uma blusa do Fortaleza em mim. Mas fui para a torcida, me sujeitei a ir, uma prova de amor. Só que nesse dia o Ceará ganhou de 1 a 0, e quando fez o gol eu fiquei tão eufórica que eu me levantei para vibrar”, conta.
O Ceará fez um gol. O grito dela quis sair. Mas Tiago segurou. “Senta, senta, senta”, sussurrava desesperadamente, puxando a esposa de volta para o banco. Patrícia ainda deu uma comemoradinha, mas logo se conteve. Saiu do estádio sem maiores problemas, mas não pensa em repetir.
Tiago conta que gostaria de ter como ir com toda a família para mais jogos, mas lembra não ter um setor acessível financeiramente para tal, e também não confia na segurança fora do estádio.
“Voltei andando até a Parangaba após um jogo, aí fui assaltado e me deixaram só de cueca. A história é até meio engraçada, eu fiquei só de cueca na rua, longe de casa. Os caras levaram tudo. Por isso também que não costumo sair de Pentecoste até o estádio com todas elas. Não sentimos segurança para fazer essa viagem longa e poder passar por coisas assim. Infelizmente, os times também não jogam aqui”, conta.
Ainda assim, a família guarda mais memórias felizes envolvendo o futebol. Patrícia descreveu Tiago como uma pessoa boa e emotiva, que cede no fim das contas e até levaria Laurinha para o estádio. A Luiza, Patrícia define como alguém que não tem medo de nada, que pula nas brincadeiras e gosta de enfrentar desafios. Para ela, Laura é serenidade, que sabe levar tudo na esportiva. A ela mesma, define como coragem – como quando foi para a torcida rival.
A família Azevedo segue dividida pelos times, mas unida pelo amor ao jogo. E quando o Clássico-Rei passa, as provocações se tornam histórias. Todos voltam a se encontrar na mesma rede. Balançando juntos, esperando o próximo jogo, a próxima chance de vencer – ou perder – e ter um novo assunto para ficarem ainda mais próximos dentro de casa.