Diferente da tradicional história dos cinemas, Zorro hoje trabalha na Barra do Ceará e prefere carregar uma prancheta no lugar da espada. Se veste simples: uma camisa pesada – como ele descreve – em cores corais caíram bem melhor que a famosa capa preta. Fala em tom leve e reveza entre a água de coco e o chope na Beira-Mar de Fortaleza quando o dia permite. Não sobe em telhado e nem cavalga pela cidade. Muito menos anda mascarado — na verdade, não omite as críticas nem a si mesmo.
Ele não veio dos filmes como seu homônimo, mas da vida real. Assim, também teve que lutar para tentar deixar sua marca, bem como o personagem. Às vésperas da Série D e com contrato renovado, o treinador do Ferroviário, Tiago Zorro, falou ao Esportes O POVO sobre os ensinamentos que seu pai deixou, a lesão no joelho que lhe tirou dos gramados, a saudade da família que ficou em Portugal e o contato para assumir o escrete coral.
Além disso, o afiado comandante coral revelou uma conversa com Vojvoda após o Clássico das Cores nas semifinais do Cearense, contou sobre sua inspiração em Carlo Ancelotti e analisou a paixão pelo futebol no Brasil, que vê como exagerada, por vezes – bem como o calendário nacional, que assustou o português.
Desde dezembro do ano passado no comando do Ferroviário, o português Tiago Zorro enfrentará o maior desafio da temporada: a disputa da Série D do Campeonato Brasileiro. Renovado para seguir à frente do clube durante a competição, Zorro busca sempre ser realista, mas confia em seu time no torneio e classifica que caiu “no grupo da morte”.
“O início da minha paixão pelo futebol teve a ver com a ligação com o meu pai. Ele também foi jogador”, relembra. A trajetória como atleta não foi longa. Zorro jogou nas divisões inferiores de Portugal, o equivalente à Série C no Brasil. Era zagueiro, mas conta que era lento até mesmo para a posição, mas que tinha, sim, certa habilidade e via o jogo de frente, por isso aprendeu suas nuances.
“Sendo sincero, só chegar até essa divisão foi muito justo para a minha capacidade, eu não era tão bom”, confessa, com humildade. Uma lesão no joelho e a perda do pai marcaram o fim precoce da carreira. Mas foi nesse ponto de dor que a paixão pelo futebol ganhou nova forma.
“Quando eu tive a lesão, meu pai ficou doente ao mesmo tempo. Ele acabou por falecer, mas deixou, acima de tudo, todos os valores e ensinamentos que me passou. Não só o meu pai, mas também as lições de minha mãe, é óbvio, me ensinaram. Sou grato pelo amor, por todo o gosto que me passou pelo futebol também. Está em um outro plano e certamente orgulhoso daquilo que eu tenho feito”, diz.
E por mais que tenha tentado se afastar do futebol, passando mais tempo em sala de aula ministrando educação física no contraturno, no momento mais difícil de sua vida pessoal, ele confessa: nunca conseguiu.
“Foram os momentos mais duros da minha vida pessoal. Pensei em parar totalmente, mas o futebol tem algo tão forte que quem anda pelo vestiário, quem é competitivo, é difícil parar. É um escape para sair da rotina da vida. Mas ao mesmo tempo, perdão pela palavra forte, mas é uma droga. O futebol é uma droga. É difícil tirar essa droga de dentro de nós”, fala com firmeza.
“Precisamos entender que o Ferroviário passa por uma fase de transição, em campo e política (com a implementação da SAF). A verdade é que ainda estamos nessa fase, que há dificuldades. Não servirá de desculpa contra o nosso sucesso, mas elas existem. Mas também aprendi que o Ferroviário vive de dificuldades. Aprendi que é o time que nunca desiste”.
Assim discorreu o português ao resumir seu início no Ferroviário e sua expectativa para o restante do ano ao mesmo tempo. Zorro chegou à semifinal do Estadual e avançou ao mata-mata da Copa do Nordeste, mas também se cobra pela eliminação na Copa do Brasil. Sobre sua chegada, admitiu que o contato foi feito pelos portugueses que assumiram a SAF do clube pouco tempo depois.
“O que me faz mais falta no Brasil é sem dúvidas a minha família, sem dúvida, pois ficaram todos em Portugal. Sinto muita falta. Não houve condições para trazer a minha família e não sei se haverá no futuro”, conta.
Mesmo com dificuldades, o treinador viu sua equipe competir com bravura no Campeonato Cearense. O gol do Fortaleza que eliminou o Tubarão da Barra nas semifinais foi marcado somente nos acréscimos do segundo jogo. Zorro revelou que Vojvoda admitiu surpresa a ele.
“Depois da semifinal do Estadual, Vojvoda me confidenciou que de fato demos muito trabalho a ele, mas conversou de uma forma simpática, com cordialidade, que estava difícil quebrar nossas linhas. Conseguimos fazer aquilo que tínhamos pensado para os jogos. Há que dizer a realidade. Contra o Fortaleza, doeu pois foi muito perto, todos sentimos, mas foi especial”, descreve.
O treinador aproveitou para elogiar Vojvoda e discorrer sobre suas inspirações como técnico. “Gosto muito do próprio Vojvoda, que agora está numa situação mais difícil, mas é um treinador que eu admiro muito e me inspiro. No Brasil, gosto muito dele e de Abel Ferreira. Fora do Brasil, claro que gosto do Guardiola e do Conte, por exemplo, mas aquele que eu mais me identifico em termos táticos ou forma de ser e trabalhar é Carlo Ancelotti.”
“Eu sou um treinador flexível. Eu gosto de dar autonomia para os jogadores. Podem tomar decisões que eu não obrigo. Mas a parte defensiva eu que organizo. Quero que tenham rigor naquilo que têm de fazer, porque eu acredito que quem ganha campeonatos são as melhores defesas. Quando meu time tem a bola, gosto que sejam criativos, podem sonhar, mas na defesa tem que fazer o que eu mando”, complementa.
O comandante coral criticou ainda o calendário do futebol brasileiro, dizendo que “não permite a evolução das equipes de forma tão rápida” e destacou que a paixão pelo futebol no país é muito maior que em Portugal, mas que é uma faca de dois gumes.
“O torcedor no Brasil tem uma paixão um pouco irrealista e às vezes exagerada. Diziam que nós tínhamos que ganhar do Fortaleza. Isso mostra o pouco entendimento que o torcedor tem da realidade do clube. A paixão aqui é mais forte e bonita. Não só aqui no Ferroviário, não só no futebol cearense, mas pelo futebol brasileiro. Sem dúvida. É muito diferente, o apoio é muito maior”, analisa.