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Após 9 anos de estudos, filho de agricultores realiza o sonho de cursar medicina
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Após 9 anos de estudos, filho de agricultores realiza o sonho de cursar medicina

Sem condições financeiras, Ricardo Mesquita enfrentou desafios até conquistar sua aprovação em medicina com bolsa de 100%
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Após 9 anos de luta, filho de agricultores realiza o sonho de cursar medicina (Foto: Reprodução/Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/Arquivo pessoal Após 9 anos de luta, filho de agricultores realiza o sonho de cursar medicina

“Eu não estava apenas estudando para passar em uma prova. Eu estava estudando para mudar minha vida e a vida da minha família”.

Filho de agricultores, natural de Tejuçuoca, no interior do Ceará, Ricardo Mesquita, 28, tinha o sonho de se tornar médico. Mas esse sonho parecia distante. Vindo de escola pública, ele passou nove anos tentando até, finalmente, ser aprovado.

Em 2024, conquistou uma bolsa de 100% pelo Prouni para cursar medicina na Bahia e também foi aprovado pelo Sisu na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mas optou por seguir na Bahia.

Sem condições financeiras, Ricardo precisou da solidariedade de amigos para se manter estudando. Trabalhou, morou de favor e estudou sozinho no interior durante a pandemia, superando a falta de internet e materiais. Em 2023, conheceu a associação Oportunize, que garantiu moradia, alimentação e cursinho, tornando sua aprovação possível.

Ao ver seu nome na lista de aprovados, Ricardo chorou. Era o fim de uma jornada árdua e o começo de uma nova história. Afinal, ele não era apenas o primeiro médico da família. Ele era a prova viva de que, mesmo vindo de uma realidade difícil, a persistência e o apoio certo podem transformar sonhos em realidade.

O POVO - Como surgiu o interesse de cursar medicina?

Ricardo Mesquita - A minha história com a medicina começou muito antes de eu sequer entender o que essa profissão significava. Eu vim de uma família muito simples, então a gente sempre lidou com a dificuldade, as coisas nunca vieram fáceis, a gente nunca comia as coisas que a gente queria, a gente comia o que dava para comer. O luxo era algo distante, e a rotina era dura, especialmente para o meu pai, que trabalhava na roça sob o sol escaldante para garantir o nosso sustento.

Meu pai nunca impôs uma profissão para mim ou para meus irmãos. Mas sempre nos cobrou empenho nos estudos, porque sabia que essa era a única alternativa para que tivéssemos um futuro diferente do dele. A agricultura era o que ele podia nos oferecer, mas se quiséssemos algo além, teríamos que buscar isso por meio da educação.

Com o tempo, e já no ensino médio, comecei a enxergar na medicina não apenas um sonho, mas uma verdadeira oportunidade de mudança. Não apenas para mim, mas para minha família. Eu queria dar a eles uma vida mais digna, queria retribuir todo o esforço que fizeram para que eu pudesse estudar. E, acima de tudo, queria ter uma profissão que me permitisse fazer a diferença na vida das pessoas.

O POVO - Quais os maiores desafios enfrentados nesses 9 anos de estudo para o vestibular?

Ricardo Mesquita - Graças a Deus eu sempre tive o apoio da minha família. Eu acho que isso foi primordial para minha aprovação. Porque chega determinado momento que você pensa em desistir e fica se questionando se aquilo é realmente para você, então quando batia esse sentimento eu apenas olhava para minha família e aquilo virava uma motivação extra para continuar tentando.

O POVO - Como era a rotina de estudos até ser aprovado?

Ricardo Mesquita - Desde o início, eu sabia que, vindo de uma realidade simples, minha única chance de conquistar a aprovação era me dedicar ao máximo. Não havia atalhos, não havia facilidade. Era esforço puro, todos os dias. Quando ainda morava no interior, minha rotina era dividida entre os estudos e o trabalho na roça. Eu tinha plena consciência de que cada minuto contava, então fazia questão de usar um cronômetro para medir o tempo líquido de estudo. Para mim, um dia bom era aquele em que conseguia pelo menos 7 ou 8 horas líquidas de estudo. E não era apenas sobre quantidade, mas sobre constância. Todos os dias, eu precisava cumprir minha meta.

As coisas começaram a mudar um pouco quando fui para Fortaleza para estudar em um cursinho no Ari de Sá, com bolsa de estudo. A disciplina ficou ainda mais intensa, porque lá o ambiente me impulsionava a me manter focado. Minha rotina era acordar às 5 horas da manhã, preparar minha comida para levar e pegar um ônibus até o cursinho, onde passava o dia inteiro estudando. Só voltava para casa por volta das 20 horas, enfrentando mais duas horas de ônibus para chegar. Era exaustivo, mas eu sabia que era o caminho.

Além disso, eu aproveitava todas as oportunidades de bolsas e ajudas que o cursinho oferecia, porque cada real economizado fazia diferença. Foi um período extremamente difícil, de muita renúncia e sacrifício. Mas, no fundo, eu sabia que cada noite mal dormida, cada hora no ônibus e cada refeição apertada valeria a pena.

O POVO - O que te fez não desistir de cursar medicina mesmo depois de anos tentando?

Ricardo Mesquita - Houve muitos momentos em que pensei em desistir. Foram anos tentando, enfrentando a frustração de não ver meu nome na lista de aprovados, lidando com a sensação de impotência, com o medo de não ser bom o suficiente. Era um ciclo doloroso: estudava o ano inteiro, fazia a prova com toda esperança do mundo, esperava o resultado ansiosamente, e quando ele chegava… a decepção. Janeiro se tornava um mês difícil. Eu chorava, sentia o peso de mais um ano sem conseguir. Pensava: “Talvez medicina não seja para mim. Talvez eu nunca consiga”.

Mas, de alguma forma, toda vez que esse pensamento vinha, algo dentro de mim gritava mais alto. Depois do choro, vinha uma voz insistente dizendo: “Não, você vai passar. Você precisa continuar”. E, quando eu me dava conta, já estava organizando meu material, montando um novo cronograma e me preparando para mais um ano de luta.

Além disso, eu sabia que não estava sozinho. Amigos, parentes, professores… tantas pessoas acreditavam em mim e torciam pela minha aprovação. Eu não queria decepcioná-los, não queria decepcionar a mim mesmo.

Mas a caminhada foi dura. Tive que lidar com dificuldades financeiras, com o peso emocional de anos de tentativas e, infelizmente, com algumas humilhações ao longo do caminho. Houve quem desacreditasse, quem me olhasse com desprezo, como se fosse um absurdo eu, vindo de onde vim, acreditar que poderia ser médico. Mas, de certa forma, até isso me fortaleceu. Porque cada vez que alguém duvidava de mim, eu transformava aquilo em combustível para continuar.

No fim das contas, persistir não foi uma escolha fácil. Mas desistir nunca foi uma opção. Eu sabia que, uma vez que chegasse lá, tudo faria sentido. E hoje, olhando para trás, vejo que cada lágrima, cada noite mal dormida, cada tentativa falha… tudo valeu a pena.

O POVO - Qual foi a sensação de ver seu nome na lista de aprovados?

Ricardo Mesquita - Lembro que era uma quarta-feira quando saiu o resultado. Eu abri a lista, meu coração disparado, as mãos tremendo. E lá estava: meu nome entre os classificáveis. Naquele instante, um filme passou pela minha cabeça. Todas as vezes que fui dormir com fome porque precisava economizar, os dias em que tive que escolher entre fazer uma refeição agora ou mais tarde porque não daria para as duas. As vezes em que amigos me ajudaram com comida, quando precisei colocar minha nota para outro curso só para conseguir almoçar no restaurante universitário. Cada sacrifício, cada dificuldade… tudo valeu a pena no fim.

Eu chorei. Chorei como nunca antes. Porque aquilo não era só um nome em uma lista. Era a prova de que tudo o que eu tinha vivido, todas as noites estudando até o limite, todas as portas fechadas, todas as palavras de desmotivação que ouvi… nada tinha sido em vão. Eu tinha conseguido.

Meu pai chorou um bocado também. Ele, que sempre me apoiou, mesmo sem poder me oferecer nada além do incentivo, viu naquele momento a realização não só do meu sonho, mas do sonho dele também. Minha família inteira se emocionou.

E essa foi a maior vitória de todas: saber que minha conquista não era só minha. Ela era da minha família, dos meus amigos, de todo mundo que acreditou em mim quando nem eu mesmo tinha certeza se daria certo. Naquele dia, entendi que cada renúncia valeu a pena. Que segurar a barra, mesmo quando tudo parecia impossível, foi a decisão certa. Porque, no final, eu consegui. Eu venci.

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