Tomou conta do País, nos últimos dias, um intenso debate sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 39/2011 que retira da União a titularidade exclusiva nos terrenos de marinha.
Pela proposta, já aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados e hoje tramitando no Senado, continuariam sob o domínio da União, como terrenos de marinha, as áreas afetadas ao serviço público federal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos, as localizadas em unidades ambientais federais e as ainda não ocupadas, passando as demais ao domínio pleno dos Estados, dos Municípios e de particulares que hoje nelas habitam ou exploram atividades econômicas.
Como os terrenos de marinha situam-se em áreas contíguas às praias, a iniciativa foi apelidada de "PEC das Praias" ante o receio justificado de que a proposta resulte em privatização dessas faixas litorâneas de uso comum, dificultando ou impedindo sua fruição coletiva.
É razoável, diante disso, exigir que o Senado descortine a real finalidade da proposta. Os argumentos até então apresentados, que gravitam em torno da descabida cobrança de taxas pela União e da ineficiência de fiscalização não justificam o pretendido repasse de titularidade. Não são cobradas taxas de vulneráveis que ocupam terrenos de marinha e as alegadas falhas administrativas podem ser resolvidas mediante parcerias entre os entes públicos, com cooperação na gestão e fiscalização. Além disso, Estados e Municípios não experimentam prejuízos, quer de ordem urbanística, ambiental ou financeira em face do atual domínio indireto da União sobre tais bens.
A legislação patrimonial de terrenos de marinha determina que sua utilização deve se adequar aos parâmetros de proteção ambiental, possibilitando que a União retome sua titularidade plena quando o uso pretendido importar em potenciais danos ao meio ambiente, muitos deles não dimensionados adequadamente em licenciamentos realizados em Estados e Municípios sujeitos a intensa pressão para acolher empreendimentos que promovem desenvolvimento econômico sem a necessária sustentabilidade socioambiental.
A aprovação do texto atual da PEC acarretará, de imediato, a supressão de significativas receitas que são utilizadas pela União para custear estruturas de fiscalização sobre o uso adequado desses bens, alimentando, contraditoriamente, o discurso vazio que fundamenta a própria existência da proposta, como se o rabo abanasse o cachorro.
Uma discussão profunda, aberta e democrática é o que se espera no Senado. É importante que além de especialistas sejam ouvidas comunidades ribeirinhas, de pescadores, quilombolas, indígenas, extrativistas e outras que também ocupam terrenos de marinha e são diretamente impactadas pela proposta, principalmente porque muitas delas, pelo alto grau de vulnerabilidade, somente conseguem resistir ao poder econômico, notadamente de grandes projetos turísticos de luxo, apoiando-se na titularidade compartilhada destes bens com a União.
Precisamos, com urgência, de uma discussão transparente, tecnicamente honesta e politicamente comprometida com o interesse público sobre a gestão de nossas faixas litorâneas, que promova uma justa compatibilização entre seus distintos usos, públicos e privados. O que impede essa adequação não é o regime de titularidade federal desses bens, mas a lógica, cada vez mais forte politicamente, de disfarçada apropriação privada de espaços públicos estratégicos e relevantes como são os terrenos de marinha e as praias. n