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Renato Abê: Um lugar silencioso e uma corrida maluca
Opinião

Renato Abê: Um lugar silencioso e uma corrida maluca

Dos relacionamentos interpessoais à corrida eleitoral, a lógica vigente é a de ganhar no grito, na palestrinha, na palhaçadinha, nos cortes rápidos de câmera que transformam a vida numa sucessão de tags desconexas
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Renato Abê

Graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará e pós-graduado em Artes Cênicas pela Casa das Artes de Lara...

Com cuidado, a menina manuseia a caixinha do Big Mac tentando não atrapalhar a experiência do entorno enquanto Lupita Nyong'o brilha na tela. Uma fileira à frente, um adolescente, sem nenhum pudor, inicia uma sinfonia com seu pacote de Fandangos.

Cada movimento do rapaz ecoa na sala e o farfalhar do plástico se soma ao atrito da mão no salgadinho e ao irritável mastigar desajeitado. Tudo ali comunica barulho.

Assistir aos longas da franquia "Um Lugar Silencioso" no cinema é uma rara experiência de protagonismo da quietude. Na trama, o planeta é alvo de invasores norteados pelo som. Os humanos, portanto, precisam calar a boca para sobreviver. O clima de ausência de ruído transborda da tela e deixa (ou deveria deixar) a plateia sossegada, calculando cada movimento para não gerar estrondo.

Fora do cinema, o silêncio se faz cada vez mais fundamental - inclusive para a sobrevivência do nosso raciocínio lógico. Fica difícil pensar com tanta zoada. A agitação com a "tiktokização" da vida gera polifonia: todo mundo quer falar ao mesmo tempo.

Dos relacionamentos interpessoais à corrida eleitoral, a lógica vigente é a de ganhar no grito, na palestrinha, na palhaçadinha, nos cortes rápidos de câmera que transformam a vida numa sucessão de tags desconexas.

É difícil começar e terminar um diálogo de modo genuíno. Toda pergunta carece de resposta imediata, não dá tempo de refletir. Essa maratona de imagens e sons velozes (e furiosos) deságua nas relações de trabalho. O áudio de Whatsapp tem de ser prontamente ouvido e respondido. O silêncio (mesmo que momentâneo) parece dar margem para leituras de descompromissos.

É a "Corrida Maluca" contemporânea com variações de "Dick Vigarista" em palanques, bradando opiniões (e/ou discursos de ódios) cada vez mais altos e incoerentes. Na raia ao lado, uma safra de "Penélope Charmosa" vendendo, aos berros, o lifestyle que precisa ser seguido por geral.

Enquanto vejo Lupita escapando dos perigos na tela, penso nos candidatos a prefeito reproduzindo memes ruidosos. Eles sobreviveriam? Como pensar bem no que fazer, em quem votar, no que acreditar? Não dá tempo meditar sobre temas sérios.

E, enquanto a menina do cinema seguia quietinha com seu sanduíche pensando nela e nos outros, ninguém teve (eu, inclusive) coragem de mandar um "shhhhi" para o rapaz do Fandangos. Quem cala consente?

 

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