O livro da filósofa e psicanalista Cynthia Fleury não é uma obra marcada por facilidades. No entanto, o assunto sobre o qual se debruça a autora francesa é importante demais e merece ser debatido: o ressentimento num viés político e social. Não é de hoje que me interesso sobre o tema do ressentimento ampliado para a política. Esse sentimento, em geral, é apontado como um dos principais ingredientes que compõem as manifestações de ódio na política, encontrados no fascismo, nazismo, e ditaduras, tenham elas qualquer cor e, onipresentes nos dias que correm.
A psicanalista Maria Rita Kehl abordou o tema em "Ressentimento" (2020, Boi Tempo), no qual trata o assunto como sintoma social a partir, principalmente dos filósofos Max Scheler e Nietzche. No mesmo ano, Cynthia Fleury lançava na França, "Ci-git l'amer - Guerir du ressentiment" (2020, Gallimard), publicado ano passado no Brasil como: "Curando o ressentimento: o mal da amargura individual, coletiva e política" (2023, Bazar do Tempo).
Por coincidência as duas psicanalistas partem das mesmas referências teóricas, Scheler e Nietzche, no entanto, Fleury cinde o assunto navegando pela poesia, história, psicanálise e pela teoria decolonial de Frantz Fanon. Tudo isso no empenho de fundamentar uma linha de argumentação voltada para uma "individuação humanista".
Por ressentimento, as duas pensadoras reforçam a definição clássica do ressentir, que é atribuir ao outro a responsabilidade pelo próprio sofrimento. Essa responsabilização do outro é que causa "o desejo de vingança, o ódio, os ciúmes, a inveja".
Fleury alarga as consequências e aponta: "o desprezo pelo outro, o desprezo por si mesmo, o sentimento de injustiça". Ela situa o ressentimento nas estruturas psicanalíticas da neurose grave e psicose, a partir do momento em que indivíduo "autoenvenado", "encharcado de ruminação" se vê privado de "juízo" para "discernir" uma abertura para outra realidade possível.
Passear pelas ideias de Fleury é uma tarefa complexa no momento em que seu "humanismo universalista" aborda a questão do racismo e convoca o psiquiatra da Martininica, Frantz Fanon, um dos principais teóricos do pensamento deocolonial, como prova de que é possível romper com o racismo no campo individual sublimando a dor.
Para a psicanalista francesa, "colar no outro a marca do nosso azudeme", azudume aqui sendo o ressentimento, ganha uma conotação complexa quando pensamos nas raízes históricas do racismo e como o discurso da "individuação" pode ser deslocada ou simplesmente muito adequada ao neoliberalismo ou mesmo à meritocracia reinante num tipo de direita irresponsável do ponto de vista social.
Por mais erudita e verdadeira, do ponto do vista filosófico, que possa ser uma obra, ela não substitui a realidade. No Brasil, pessoas que enfrentam racismo seja racial ou social estão há muito pouco tempo discernindo o que, por pelo menos 120 anos, foi silenciado. O universalismo humanista a que Fleury se apega, também me faz levantar outra questão: É mesmo possível pensar num humanismo hoje, num momento de turbulência radical em relação ao humano? n