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Quando descobri Fred Astaire 
Opinião

Quando descobri Fred Astaire 

Hoje temos uma oferta muito maior de caminhos para descobrir novos compositores, mas contraditoriamente acredito ser mais difícil que um menino de 13 anos tenha tempo para devorar um álbum completo cheio de metáforas
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 10.02.2020: Foto de atualização do cadastro. Paulo Renato Abê  (foto: Thais Mesquita/O POVO) (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita FORTALEZA, CE, BRASIL, 10.02.2020: Foto de atualização do cadastro. Paulo Renato Abê (foto: Thais Mesquita/O POVO)

De antemão, um contexto. Não integro a ala saudosista de uma longínqua "era de ouro" da música brasileira. Um País que acabou de ganhar de presente o disco "Caju", da cantora Liniker, está muito bem servido. 

Há muita gente talentosa criando. Além das quatro linhas do top 10 dos serviços de streamings, há um ecossistema de músicos das mais variadas regiões com produção riquíssima.

Dito isto, uma lembrança: ouvi novamente, nesta semana, uma música chamada "Quando fui Fred Astaire", lançada pelo cantor carioca Jay Vaquer em 2005. Eu tinha 13 anos quando ganhei o CD com aquela faixa inquietante: mas quem era esse tal Fred?

Àquela altura, tinha pouco acesso à internet, mas, quando, enfim, consegui desbravar o Google, soube que a música fazia referência ao filme "Núpcias Reais", de 1951. Na produção, o ator e bailarino norte-americano Fred Astaire (1899 - 1987) dança nas paredes e no teto - cena que causou burburinho no contexto de um cinema com poucos efeitos especiais.

Quando deduzi que a música trazia metáfora sobre "ver o mundo de cabeça para baixo" e, ainda assim, "dançar no teto", alguma coisa estalou. Devorei o disco inteiro daquele compositor (que depois soube ser filho da cantora paraense Jane Duboc e do guitarrista Jay Vaquer, parceiro de Raul Seixas).

Metonímia, sinestesia, hipérbole, eufemismo. Encontrei um festival de figuras de linguagem nas letras cheias de dose de reflexão e crítica social. Descobri palavras nunca ouvidas e sons pouco óbvios. A partir dali, não larguei mais aquele artista (que, a propósito, segue na ativa e faz show em Fortaleza neste sábado, 7 de setembro).

Hoje temos uma oferta muito maior de caminhos para descobrir novos compositores, mas contraditoriamente acredito ser mais difícil que um menino de 13 anos tenha tempo para devorar um álbum completo cheio de metáforas.

A correria do algoritmo tem limitado a música a refrões e nivelado a poética ao mais explícito possível. Não dá para cantar sobre um Fred dançando no teto sem arriscar ser ignorado pelo mercado - desafio também vivido por Vaquer com sua carreira longa e criativa, mas ainda pouco reconhecida.

Esperançoso, sigo torcendo para que - além da música de dançar (eu, festeiro assumido, também gosto, ok?) - a arte musical brasileira tenha sempre espaço para canções para refletir, se confundir, se indignar, se provocar e se motivar a descobrir novos sentidos.

 

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