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Patrícia Soares de Sá Cavalcante: A sinfonia da vida: som, silêncio e imperfeição
Opinião

Patrícia Soares de Sá Cavalcante: A sinfonia da vida: som, silêncio e imperfeição

Quando conversamos com familiaridade, respeitando o curso natural do diálogo, em que um fala e o outro escuta, ou mesmo quando ambos silenciam, tranquilamente, sem desconforto, estamos criando uma bela música em parceria
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Patrícia Cavalcante. Psiquiatra. (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Patrícia Cavalcante. Psiquiatra.

Estávamos eu e meu sobrinho, Oto Neto, atualmente com oito anos, sentados ao piano. Sua concentração e dedicação ao tentar ler a partitura chamaram minha atenção. Ajudei-o a posicionar suas mãozinhas no teclado e perguntei-lhe nota por nota da clave de sol. Ele respondeu-me com um entusiasmo pueril, afirmando que já sabia tocar. De repente, fui surpreendida por uma pergunta:"Tia Pati, o que é isso?" Ele apontou para o símbolo da pausa. Expliquei-lhe: "Nesse momento, Oto, você não toca."

Acho extraordinário o fato da música ser composta pela alternância de sons e silêncios. Sem o silêncio, não há música.

Se conseguirmos observar nossos pensamentos e emoções, respeitando os momentos de pausa, perceberemos a composição de algo muito pessoal, com sonoridade e ritmo únicos. Quanto mais aprimoramos a habilidade de ouvir nossos próprios acordes, maior será a possibilidade de entrarmos em sintonia com o outro.

Poucas coisas na vida são tão prazerosas quanto a intimidade. Quando conversamos com familiaridade, respeitando o curso natural do diálogo, em que um fala e o outro escuta, ou mesmo quando ambos silenciam, tranquilamente, sem desconforto, estamos criando uma bela música em parceria. Seria como tocar a quatro mãos.

Entretanto, o som da vida não precisa ser perfeito, pelo contrário, há uma beleza singular na imperfeição. Os acordes dissonantes, muito comuns na Bossa Nova, por exemplo, são popularmente conhecidos como acordes imperfeitos. Soam quase estranhos, desentoados, mas, no meio da harmonia, quando surgem, são capazes de despertar grandes emoções, que não conseguimos traduzir em palavras. Talvez, a única forma de expressá-las seja através de notas musicais.

Milan Kundera, em a Insustentável Leveza do Ser, discorre sobre a ideia de que a vida é uma partitura em constante evolução. Ao longo dos anos vamos acrescentando compassos, refletindo as experiências que vivemos e as relações que construímos.

Feliz daquele que é capaz de orquestrar um universo particular, na intimidade consigo ou com o outro e, sobretudo, compreende que a imperfeição confere autenticidade, profundidade e humanidade à vida.

 

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