— É, mas aí a gente vai ter que entender mais teoricamente o que que é verdade — eu disse à minha orientadora. Estávamos no meio de uma discussão sobre como interpretar um trecho de um auto do século XVI, e, inevitavelmente, a conversa escorregou para questões de semântica, que, inevitavelmente, escorregam para questões filosóficas, às vezes, longe do nosso alcance. No texto, o cara afirma ter "reunido os fatos na verdade"
ao escrevê-lo.
Ela suspirou, reconhecendo que o quê da questão
era fugidio.
— É, porque o que é verdade aqui não parece ser o mesmo que naquele outro… — ela respondeu, referindo-se ao outro auto que havíamos analisado, no qual se dizia que a verdade era algo no qual se devia se esforçar. — Às vezes, é algo que se alcança. Outras, é algo que se tem inerente. Outras, é algo com que se veste… Às vezes refere-se ao fato, outras à perspectiva sobre o fato… Às vezes o fato em si pouco importa…
— E deve ter tantas definições — falou meu parceiro de pesquisa. Trabalhávamos num projeto de linguística e filologia que estudava locuções adverbiais, e, frequentemente, nos deparávamos com conceitos tão abstratos que era difícil depreender sua definição. — Definições que puxam uma a outra… Pra saber o que é verdade, teríamos que entender o que é um fato, e daí o que é uma mentira, daí uma certeza, daí
uma realidade…
— Num ciclo infinito de definições imprecisas — eu disse.
— Como pode a verdade ora ser o fato e ora a perspectiva sobre ele?
— Como pode a verdade ora ser uma perspectiva religiosa, e ora o que a refuta?
— Como pode a verdade ser sempre uma questão de autoridade? — contribuiu a
nossa orientadora.
— Será que hoje em dia, a autoridade, a que denota o que é verdade, é nada além da nossa filosofia vigente? — contribuí. — Positivista, a verdade é o que traz à tona mais conhecimento? Ou que gera
mais catarse?
— A verdade é sempre
argumentativa?
Suspiramos, todos juntos dessa vez. Era a enésima vez que tentávamos depreender em palavras aquilo que não queria e talvez nem pudesse ser capturado.
— Acho que temos que deixar isso pra filosofia — nossa orientadora concluiu. — Aqui, já que temos que trabalhar dentro do nosso arcabouço teórico…
— Dentro da nossa verdade… — adicionei.
— …vamos ficar com uma definição mais precisa… mesmo que tenhamos que deixar de lado concepções riquíssimas… — Ela pausou, e então concluiu: — Então verdade é o que está de acordo com os fatos, seja lá quais forem… — Ela pausou novamente. — A não ser que você queira fazer uma pesquisa bibliográfica em filosofia para somar
ao projeto…
— Daria pra fazer outro projeto de pesquisa, né? — respondi, com medo de ser sério. — Da autoridade religiosa à liberdade catártica: definições de verdade. Mas aí dá uma preguiça, né?
Ela riu, concordando com
a cabeça.
— Realmente. Pra não se comprometer tanto, dava pra fazer só um ensaio.
Ou um capítulo…
— Ou até um texto artístico — sugeriu meu parceiro.
— Verdade — eu disse. — Um poema, uma crônica, quem sabe? — sugeri tirando o meu da reta. — O artista, ele tem que ser meio preguiçoso, né? Já que não dá pra sair sabendo como dar forma a todo conflito interno da gente, a gente reúne tudo, fragmentos de certeza e fluxos de pensamento, num texto, numa tela, numa letra, e chama de arte. E vira verdade; a gente reúne tudo na verdade. Que aí não precisa se comprometer. Nem com a revisão de literatura e nem com a verdade…
Eles concordaram com uma risadinha. Quem dera todos os conflitos teóricos pudessem ser resolvidos assim, sem precisar de páginas e páginas de comprovação científica. Será que a verdade era, no fim, nada além da arte — que por não se comprometer com ela, se torna
a verdade?
Eu sei lá. Olhamos para o relógio, e nosso fluxo de pensamentos já estava tão lento quanto o trânsito na Avenida Brasil àquele horário. A verdade era que não dava pra definir a verdade. Talvez, por hoje, um pouco de arte preguiçosa já fosse o suficiente.