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Conseguiremos parar de naturalizar o inaceitável?
Opinião

Conseguiremos parar de naturalizar o inaceitável?

Há tempos analistas alertam que não vivemos uma era política normal, o que tem prejudicado os horizontes da igualdade, da inclusão, da solidariedade e da justiça social
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Rodrigo Chaves De Mello

Articulista

Em uma das passagens mais emblemáticas de sua obra, o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau especula sobre a origem da propriedade privada. Dando asas à imaginação, o autor descreve o momento em que, pela primeira vez, alguém cercou um pedaço de terra, declarou-se proprietário e encontrou pessoas dispostas a acreditá-lo.

O destaque recai não no ato em si, mas no fato de que ninguém o tenha contestado, o que poderia ter evitado inúmeras tragédias futuras decorrentes da consolidação da desigualdade. Mas já era tarde: a expropriação da terra comum teria sido precedida por um conjunto de ideias que, ao se acumularem, ajudaram a naturalizar esse "pecado original" que informa a gênese da sociedade civil.

A reflexão ressoa de maneira inquietante nos dias de hoje: quais ideias têm concorrido para a naturalização de nossas atuais barbáries?

Em torno do tema da recessão democrática, há tempos analistas alertam que não vivemos uma era política normal, o que tem prejudicado os horizontes da igualdade, da inclusão, da solidariedade e da justiça social. Mas um outro e mais alarmante fenômeno parece correr em paralelo e de maneira menos visível: a normalização do absurdo como fato cotidiano e corriqueiro.

Não nos faltam exemplos do declínio acelerado em que nos encontramos. Como justificar que, mesmo após as cenas brutais do genocídio em Gaza, a declaração de Donald Trump sobre transformar a Palestina em uma "riviera turística" tenha sido recebida com relativa indiferença? Ou que sua proposta de ativar 30 mil vagas no obscuro presídio de Guantánamo para deter imigrantes "indesejáveis" não tenha provocado uma revolta global massiva?

Já perdemos a capacidade coletiva de definir os limites do inaceitável? Uma visita ao museu de horrores da história revela que nossas grandes barbáries foram precedidas por ideias que as tornaram aceitáveis. No passado recente, falhamos, e o resultado lógico foi o horror totalitário.

Hoje, o desafio se recoloca: como impedir que alcancemos o ponto de não retorno, que se enuncia de forma cada vez mais nítida em nosso horizonte?

 

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