No Natal de 2020, O POVO publicou um conteúdo com reflexões sobre a Carta Encíclica Fratelli Tutti, do papa Francisco, que propõe a fraternidade e a amizade social no mundo. A carta foi divulgada em outubro daquele ano. Os textos reuniram um teólogo jesuíta, uma teóloga metodista, uma educadora social e bilhista popular, um judeu, um mulçumano, um teólogo protestante. Voltei a esses textos quando soube da morte do Papa Francisco e enquanto lia alguns detalhes em torno da sua vida.
Em comum, todos os convidados consideraram que o documento era um passo importante num momento em que o mundo parecia estar mergulhando num mar de intolerância e ódio. Muitos países europeus estavam começando a travar uma luta contra a imigração que atingia, desde o movimento da guerra civil na Síria e os conflitos em consequência da Primavera Árabe, o ponto mais inflexível que resultou o avanço da extrema direita na Europa.
Relendo o posicionamento dos convidados me chamou a atenção a leitura da teóloga Nancy Cardoso sobre a Carta, na qual afirma que a Fratelli Tutti não foi incisiva com o patriarcado ao mesmo tempo que, segundo ela, o documento produz uma "miragem" ao traçar um paralelismo entre mundo político e as relações familiares, simplificando os contornos de situações que são, muitas vezes, tão desvantajosas para as mulheres que sofrem violência doméstica e política em todo o mundo.
Apesar disso, Nancy comemora o fato de o papa Francisco tocar na "ferida estrutural dos (...) mecanismos que geram pobreza, os casos de racismo que continuam acontecendo, a falta de plenos direitos humanos para as mulheres". A defesa da vida é o caminho proposto para a leitura da Encíclica pela educadora Maria Soave Buscemi, que há quase 30 anos trabalha no interior do Paraná com comunidades afroindígenas. Para ela, a Fratelli Tutti se resume no pressuposto: "Defenda a vida, sobretudo toda forma de vida mais ameaçada".
"Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras", afirma Francisco. Claro, muita gente considerou que o papa Francisco não avançou onde ele poderia ter levado a Igreja a andar mais rápido. No entanto, esquecem que ter coragem de abordar questões da forma como ele fez, acolhendo aqueles que sempre estiveram à margem é um movimento histórico.
O mais importante, pra mim, é o exemplo deixado pelo papa Francisco em fazer escolhas que destoam completamente dos gestos que ressoam, muitas vezes, a arrogância que parece pairar sobre os poderosos, incluindo religiosos. A carta de testamento com o desejo de ser sepultado na terra, com simplicidade, sem nenhuma ostentação é algo que toca qualquer alma sensível. No fim das contas, Francisco, o jesuíta latino, provou que é possível viver de acordo com os princípios que devem nortear aqueles que decidem servir a Cristo de livre e espontânea vontade, sem se furtar de lidar com os espinhos da missão.
Francisco batalhou até depois do fim. A simplicidade dele fará falta num mundo tão indiferente e hostil. n