Em minha viagem anterior ao México, na véspera de retornar ao Brasil, um amigo querido e grande fotógrafo me falou do estado de Chiapas e me mostrou lindas fotos feitas por ele. Impressionada com a beleza e colorido das roupas usadas pelos nativos, jurei a mim mesma que voltaria para fazer uma imersão, testemunhar peculiaridades daquela região e de seu povo. E fazer preciosas fotos, um dos meus diversos passatempos.
Chiapas é o estado mais pobre do país, localizado no sul, região de densa floresta. Sua população originária compõe-se de muitas etnias, sendo mais numerosos os descendentes dos maias. Os nativos são bastante empoderados, influenciados pela teologia da libertação e pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (grupo indígena revolucionário, de esquerda, inspirado em Emiliano Zapata, um dos grandes líderes da Revolução Mexicana).
Em novembro de 2015 comecei a planejar nova viagem. Chegaríamos pelo aeroporto de Tuxtla Gutiérrez, a capital, mas nosso destino seria a pequena cidade de San Cristóbal de las Casas, fundada em 1528, verdadeira joia, um oásis hospitaleiro, seguro e divertido, embora algumas de suas zonas rurais possam ser arriscadas e perigosas.
Após termos feito a compra da passagem aérea em um site especializado com ida para 14 de fevereiro de 2016, minha colega ficou encarregada de providenciar a reserva para estadia. Passados vários dias, me falou de sua estranheza porque não havia vagas nos hotéis da região central da cidade. Isso era inesperado, pois ainda faltavam dois meses para nossa viagem. Diante do impasse, nos conformamos em fazer reserva em hotel de outro bairro.
Uma semana antes da partida, descobrimos pela imprensa que o Papa Francisco estaria em viagem pastoral ao México e, por uma felicíssima coincidência, chegaria em San Cristóbal no mesmo dia que nós. Explicada a razão de não conseguirmos hotel onde desejávamos, passamos a um estágio de euforia. Minha amiga, antropóloga e espiritualista, otimista com a oportunidade de presenciar raros rituais religiosos de perspectiva ecumênica e de estar próxima do grande pastor latino-americano. Eu, mais afeita às coisas terrenas e palpáveis, antevia a grande chance de fazer fotos exclusivas dos indígenas, sabedora que era da postura restritiva dos nativos em permitirem ser fotografados.
Certamente, em meio à euforia de avistar o papa, estariam em fantásticas roupas de gala e menos vigilantes ao escrutínio da câmera de meu celular. Na nossa conexão no aeroporto da cidade do México já vimos um movimento fenomenal com voos extras vindos dos mais diversos países e de todos os continentes. Ao buscarmos o balcão para check-in, fomos comunicadas que seguiríamos para Tuxtla em outro voo e não no previsto. O embarque foi imediato.
Logo descobrimos que a aeronave estava lotada de correspondentes internacionais, entusiasmados e agitados, que iriam fazer a cobertura jornalística da visita do papa. Foi a ocasião em que meus ouvidos estiveram expostos ao maior número de idiomas, dialetos e sotaques.
Chegamos ao aeroporto de Tuxtla duas horas antes do voo que traria Francisco. Nossa ida para o hotel de San Cris merece nota. A rodovia seria bloqueada nos próximos minutos, por duas horas, e apenas o papa com sua comitiva e batedores de segurança fariam o percurso entre as duas cidades. A cada 200 metros da estrada já havia pelotões armados do exército mexicano.
Após acomodação e uma noite bem dormida, amanhecemos em elevada excitação. Recebemos os cumprimentos de um lindo dia de sol, céu azul e um friozinho estimulante. Optamos por nos deslocar bem cedo à região central, onde ocorreriam as celebrações. Fomos caminhando para desfrutar o clima ameno e apreciar a movimentação dos habitantes. Tudo era beleza, todos em suas melhores roupas, ruas engalanadas e ornadas com as bandeiras do estado de Chiapas, de San Cris e de galhardetes em branco e amarelo, as cores do Vaticano.
Antes de nos aproximarmos da catedral, tivemos o primeiro contato com o empoderamento dos nativos. A certa distância da praça, uma rua já estava preparada para a passagem do papa. Animadas pela possibilidade de vê-lo antes mesmo de sua chegada ao local da celebração, nos postamos coladas à barreira de isolamento, na primeiríssima posição. A visão era privilegiada. Em minutos, uma pequena multidão começou a se aglomerar. Alguém nos tocou no ombro: “sólo nosotros los nativos podemos quedarnos aquí al frente”. Cedemos os lugares, entre ressabiadas e contentes por testemunhar a autodeterminação daquele povo corajoso que não se intimida diante de pretensiosos turistas.
Resolvemos, então, nos dirigir logo à grande concentração. Após a forte barreira de segurança, mergulhamos na multidão de 150 mil almas embevecidas, onde havia uma maioria de chiapanecos, mexicanos de outras regiões e também guatemaltecos que ali acorreram para ver o papa, tendo em vista a proximidade geográfica de seu país.
Francisco fez a celebração no interior da imponente e indescritível catedral que combina elementos do barroco e do estilo colonial. Embora de portas abertas durante a cerimônia, o templo só comportou o celebrante, sua comitiva, lideranças indígenas das mais variadas etnias e autoridades eclesiásticas e leigas do país anfitrião. Em pontos estratégicos da praça, colossais telões transmitiam as imagens da celebração. Usando cocar, manto tipicamente indígena e outras peças rituais nativas, o papa levou a multidão ao delírio inúmeras vezes, mormente quando afirmou que os povos indígenas foram, por vezes, incompreendidos e excluídos, reconhecendo a responsabilidade da Igreja Católica nesse processo; pediu perdão pelos erros e negligências cometidos contra esses povos; agradeceu e reconheceu a resistência e força demonstradas, mantendo suas culturas e tradições, apesar da exclusão. Foi um ato potente de reconciliação.
Para além do que via e ouvia pelos telões, minha atenção estava, também, voltada a captar imagens de cenas específicas daquele povo trajado em seu estilo autóctone. Sem falsa modéstia meu celular me permitiu produzir fotos icônicas.
Mas eu não me dava por satisfeita. Faltava fazer a foto exclusiva de Francisco. Terminada a missa, iniciou-se a dispersão. Após muitas horas de pé e sob calor, a multidão começou a se deslocar para seus povoados. O papamóvel passaria na rua ao lado da praça. Não havia muita gente, os nativos tinham estatura menor que a minha. Tudo era favorável, eu estava preparada.
Seria a foto de minha vida. Seria lindo. Ledo engano!
“El papa viene”, gritaram. Justo na hora de sua passagem, muito braços elevaram-se à minha frente com bebês, molduras com imagens diversas, muletas, bengalas, chaveiros e tudo o mais que se possa apresentar para ser abençoado naquela irrepetível ocasião.
Voltei do México com belíssimas imagens, exceto a desejada foto de Francisco.
* Nazaré Fraga, enfermeira, professora aposentada da UFC, integra o Coletivo
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