Caro leitor, escrevo este texto em primeira pessoa para expor uma situação que há tempos me incomoda. Fui nomeado à Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania em fevereiro de 2023 para desempenhar a tarefa honorífica de fazer justiça aos que lutaram contra as atrocidades políticas perpetradas pelo Estado brasileiro nos turbulentos anos de 1946 a 1988 (interstício entre a Constituição passada e a atual), em especial durante a ditadura civil-militar de 1964.
O intrigante é que faço parte de uma comissão destinada a decidir sobre requerimentos de anistia, no entanto, paradoxalmente, preciso constantemente vir a público explicar sobre o porquê de me posicionar contrariamente à anistia em outra discussão mais recente, oportunista, levantada pelos protagonistas e apoiadores do 8 de janeiro de 2023. Há alguma incoerência no meu posicionamento? Evidente que não.
Uma coisa é homenagear os atos notáveis dos que tentaram derrotar a ditadura inaugurada pelo usurpador Castelo Branco, ou seja, as bravas e bravos que lutaram pela restauração da democracia, outra coisa é condescender com aqueles que, no entorno dos fatos que culminaram no 8 de janeiro, buscaram exatamente o oposto: suprimir a democracia, instalar um novo regime militar e consolidar outra era de exceção política no país.
Para ser mais didático: uma coisa é a Comissão de Anistia que integro, outra coisa é o Trem da Impunidade que se aventa no parlamento para esconder debaixo do tapete os crimes de lesa-pátria dos delinquentes que tentaram surrupiar as liberdades democráticas na trama de 2022-2023.
Não confundamos alhos com bugalhos. Uns são patriotas, porque lutaram pelo restabelecimento da democracia, e outros são traidores, porque tentaram suprimi-la. Há, em curso, uma tentativa desonesta de promover uma confusão generalizada na mente de brasileiras e brasileiros utilizando retoricamente a palavra anistia. Mas não me peçam para tratar com igual comoção situações inteiramente diversas. A Comissão de Anistia que componho lida com heroínas e heróis, o projeto em discussão na Câmara dos Deputados quer beneficiar bandidos. Anistia é anistia, impunidade é impunidade. Simples assim.