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Ana Marlene: "Muitos artistas morrem sem cuidados"
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Ana Marlene: "Muitos artistas morrem sem cuidados"

|Teatro|Após cirurgia cardíaca delicada, atriz Ana Marlene renasce com monólogo que combate etarismo e celebra sobrevivência na arte ao longo de 45 anos de carreira
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FORTALEZA-CE, BRASIL, 18-06-2024: Atriz Ana Marlene no Teatro José de Alencar. (foto: Beatriz Boblitz/O Povo) (Foto: Beatriz Boblitz)
Foto: Beatriz Boblitz FORTALEZA-CE, BRASIL, 18-06-2024: Atriz Ana Marlene no Teatro José de Alencar. (foto: Beatriz Boblitz/O Povo)

 

 

Com um vistoso “copo de Toddy”, uma mãe tenta convencer o filho a largar a bola na rua. Persuadido, ele corre em direção ao portão de casa. “Égua, mãe, é caldo de feijão de novo”, se decepciona o menino ávido por achocolatado. O trecho de “Cine Holliúdy” (2012) viralizou nas redes sociais e até hoje a atriz presente na cena se diverte ao ser reconhecida pelo filme.

Múltipla, a cearense Ana Marlene Ferreira Lima é, além “mulher do Toddy”, a criadora da Trupe Caba de Chegar, um dos grupos de artes cênicas mais longínquos do Ceará e referência nacional de teatro de rua. Neste ano, quando completa 45 anos de carreira, a artista é uma das homenageadas pelo Festival de Teatro de Fortaleza.

No currículo, filmes como “Onde Anda Você” e “Área Q”, além de obra roteirizada pela ex-prefeita Luizianne Lins (PT) e clipe do humorista Falcão. Aos 60 anos, a artista se arrisca agora em temporada no Rio de Janeiro com seu primeiro monólogo, “Egoísta”, peça que conta a história de Josefa Feitosa, mochileira cearense de 64 anos que desbrava o mundo num divertido combate ao etarismo.

Atriz Ana Marlene concede entrevista no Theatro José de Alencar(Foto: Beatriz Boblitz)
Foto: Beatriz Boblitz Atriz Ana Marlene concede entrevista no Theatro José de Alencar

Recém-aposentada de trabalho na Cagece, onde conseguiu a base financeira enquanto criava artisticamente, agora Ana Marlene se dedica integralmente à arte e corre por festivais mundo afora com curta-metragem feito pela novíssima geração de cineastas do Estado.

Recém-operada, Marlene teve de encarar o medo da morte ao cuidar de um delicado diagnóstico cardíaco. Agora renascida, a atriz e diretora está com fome de vida.

 

 

O POVO - Quais memórias marcam sua infância naquela Fortaleza dos anos 1960?

Ana Marlene - Eu morei minha vida toda, inclusive voltei para lá agora de novo, no bairro da Serrinha. Minha mãe era uma professora e uma líder comunitária de lá. Então, as minhas primeiras noções de arte já foram com a minha mãe (Heloísa Ferreira Lima). Como professora, ela fazia todas as atividades da escola para o bairro inteiro. Tudo que a mamãe fazia, ela convidava a comunidade inteira para assistir lá na quadra da escola. A mamãe juntava todo mundo e fazia comédia, drama…

Meu pai montava um palquinho com cortininha e tudo, sabe? No que a gente entendia que era teatro, ela fazia, né? Aí ela me metia em tudo. Mesmo eu sendo uma menina muito tímida. Eu tinha muita vergonha, mas eu tinha vontade. Me dava medo, mas eu queria estar lá. Ela dizia que não ia me colocar mais para ser noiva de quadrilha porque eu ficava me escondendo (risos). Mas, ao mesmo tempo, eu pedia: “Mãe, me bota”. Eu fui aos poucos tirando o medo. Eu fui começando a entender que era aquilo de que eu gostava mesmo.

OP - Mas ela queria que você fosse atriz?

Marlene - A mamãe focava muito na música. Ela queria que eu cantasse. Ela era muito religiosa e eu cantava muito com os padres, nas festas da igreja. Eu, com oito anos, cantei numa festa de um frei na Igreja Sagrado Coração de Jesus, no Centro. Mamãe trabalhava a minha voz, me preparava o tempo todo. Eu canto realmente, mas eu não canto profissionalmente. Eu resolvi seguir a carreira de atriz, que era a que eu me identificava mais. Eu canto para teatro. Aí tentei aprender violão, mas desisti porque eu acho que isso é mal de sagitariano, né? (risos). Começa as coisas e não termina. Eu comecei mil coisas, pintava quadros, mas aí achava horroroso e parei. Mas teatro eu comecei e nunca parei.

Espetáculo "Quem Matou Zefinha?" é apresentado pela Trupe Caba de Chegar  desde 1990(Foto: Acervo/Trupe Caba de Chegar)
Foto: Acervo/Trupe Caba de Chegar Espetáculo "Quem Matou Zefinha?" é apresentado pela Trupe Caba de Chegar desde 1990

OP - Como você expandiu esse teatro para além do bairro?

Marlene - Eu entrei no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), que aqui na minha época era Escola Técnica Federal do Ceará. Aí, na escola, foi que realmente considero a minha profissionalização. Eu comecei a fazer teatro de verdade. Montamos o grupo Mandacaru de Teatro, fundado pelo Bruno Correia Lima, que foi o meu primeiro diretor, eu tinha 17 anos. A partir daí, eu fazia turismo na escola técnica e, dentro da escola, eu comecei a fazer mil coisas. Eu fui do grupo Mira Ira, da Lurdinha Macena. Fui da turma fundadora com Lurdinha. Na minha época, chamava Grupo Parafolclórico da Escola Técnica Federal do Ceará. Eu cantava, eu dançava, eu fazia teatro. Meu começo foi através da minha mãe e depois veio a escola técnica.

OP - Além de professora, sua mãe atuava como líder comunitária, como foi sua descoberta em torno desses debates coletivos sobre questões sociais?

Marlene - Ela era uma referência e todos os políticos apareciam lá naquela época. Só tínhamos dois partidos: o MDB e o Arena. A mamãe já era mais de esquerda, que era o MDB. Ela tinha essa tendência de divergir do que estava acontecendo no momento e ela queria o melhor para o bairro. Aí ela foi conseguindo coisas, pedia logo para os políticos trazerem uma escola para o nosso bairro. Tanto que a rua que passa em frente à escola Jader Moreira de Carvalho, na Serrinha, tem o nome da minha mãe. Na época, não tinha água encanada e a mamãe conseguia chafarizes. Nem todo mundo tinha televisão, então a mamãe conseguia aquela televisão que ficava nas praças para as pessoas. A mamãe colocava muito para a gente essa coisa de cuidar do outro.

Aí já começamos e foi muito bom. As pessoas já gostaram muito, apesar de todos os defeitos e erros, mas na rua a gente tem a facilidade de errar e ajeitar. É tudo às claras, não tem cortina para esconder.

OP- E o teatro de rua? Quando você resolve experimentar o teatro fora do teatro?

Marlene - Começou em 1990, que é a idade que a Trupe Caba de Chegar tem. Começou com nosso amigo que é ator, diretor e hoje doutor em Teatro, Paulo Ess. Ele é um criador do curso de Princípios Básicos do Theatro José de Alencar e do curso superior de teatro do IFCE. Paulo assistiu a um espetáculo chamado “Quem matou Zefinha?”, em Sergipe, num festival e conversou com a autora (a dramaturga Virgínia Lúcia). Pediu os direitos do texto, trouxe para cá e a primeira pessoa que ele chamou foi a mim.

O Theatro José de Alencar estava passando por uma reforma grande que teve de 1990 para 1991 e vários espaços da cidade estavam fechados. Aí ele disse: está na hora de a gente experimentar o teatro de rua. Foi assim na cara e na coragem. Ninguém chegou para a gente ensinando nada, nós aprendemos na rua mesmo. Aí fundamos a Trupe. Convidamos outros atores para formar o grupo, que foi Carri Costa, Neidinha Castelo Branco, Cláudio Jaborandy, Sidney Souto, Carlos Alves e outros. Aí estreamos nesta praça, a José de Alencar. A gente já estava com figurino e resolveu fazer um ensaio geral na praça, bem em frente ao Theatro.

Confira o espetáculo "Quem matou Zefinha?":

A gente, sem noção de nada, montou tudo, a gente já tinha um estandarte e fez todo o ritual que existe no teatro de rua, que é essa coisa da “chegança” com os instrumentos, viemos tocando e arrumando a roda. Começamos a nos maquiar na rua mesmo e aquela roda foi fechando e a gente olhando e aquilo foi assustando a gente. "Vamos ter que fazer o ensaio geral de verdade. Não é brincadeira, é valendo". Aí já começamos e foi muito bom. As pessoas já gostaram muito, apesar de todos os defeitos e erros, mas na rua a gente tem a facilidade de errar e ajeitar. É tudo às claras, não tem cortina para esconder.

Tem sempre o bêbado, o cachorro, o menino e você tem de estar ali compondo com o que tem. Não dá para achar ruim e se estressar. Na rua, foi onde eu realmente me achei. Já tinha feito vários cursos, muito teatro de palco desde que comecei em 1979, 1980. Eu tinha feito muito drama, mas quando eu fui para o “Quem matou Zefinha?”, eu me apaixonei perdidamente. É isso aqui que eu gosto. Apesar de gostar de estar no palco, com as luzes e a cortina, na rua eu me sinto mais à vontade. Eu me sinto mais perto das pessoas. É especial.

OP - São 34 anos de trupe. O que é o mais desafiador para manter um grupo por tanto tempo?

Marlene - O que precisa mesmo para a gente é o apoio financeiro. Essa é a parte mais cruel. Desde o começo, a gente começou rodando o chapéu, mas é difícil. E aí eu tenho que ser produtora também para fazer as coisas e chamamos outros amigos para produzir. Quem nos ajuda hoje é o Sesc e temos uma parceria fantástica. O Sesc tem parceria com vários equipamentos da Cidade, como aqui o Theatro José de Alencar, o Centro Dragão do Mar. É muito bom. Apesar de ser um cachê simples, mas o artista já se motiva.

Eu não tenho uma sede e nem quero ter. Para ter uma sede, precisa ter dinheiro. É outra casa que eu vou ter que sustentar, que tem que ter luz, água, uma pessoa para limpar, uma pessoa lá cuidando, não tem como isso. Existem alguns grupos que conseguem colocar editais e ficam como uma grana durante um ano fazendo atividades de formação, mas um ano depois o grupo fecha. Eu digo muito que a sede da trupe é este teatro que sempre nos acolheu em todas as gestões. A gente vem no Theatro José de Alencar, consegue ensaiar, consegue conversar com a gestão de forma muito tranquila. Até porque a gente não precisa de muita coisa. Nesse sentido, o teatro de rua é muito mais tranquilo, mas também precisa de dinheiro. A gente não tem um transporte. A atriz Fernanda Zeballos é que salva com o carro dela.

A gente consegue se virar porque todo mundo faz tudo, tem muito afeto na trupe, muito respeito. Todo mundo ganha igual quando temos um cachê. Tem muito carinho entre a gente. Eu sou muito clara e digo: "Nós vamos montar (um espetáculo) sem um centavo". Eu não tenho dinheiro para montar, mas depois que a gente fizer e tiver o produto, eu saio vendendo para o Sesc, TJA, BNB. Temos pelo menos uma apresentação por mês, mas são poucos os que vivem só de teatro.

Trupe Caba de Chegar celebra, em 2024, o aniversário de 34 anos de teatro e cultura popular(Foto: Acervo/Trupe Caba de Chegar)
Foto: Acervo/Trupe Caba de Chegar Trupe Caba de Chegar celebra, em 2024, o aniversário de 34 anos de teatro e cultura popular

OP - Inclusive, além do teatro, você também tinha um trabalho administrativo. Como era essa vida dupla?

Marlene - Eu me aposentei com 40 anos de trabalho. Eu fui contratada pela Cagece em 1984 e tive muitos perrengues nesse sentido (da vida dupla), porque eu sempre fui atriz. Eu já era atriz antes de entrar (na Cagece). Aí eu tive gestores maravilhosos que me deixavam ir fazer minha peça e depois voltar. Eu passava a semana inteira trabalhando de 8 às 18 horas e fazia tudo para não quebrar o meu financeiro, o que me sustentava para eu fazer teatro. Eu saía, fazia filmes, depois voltava e cobria as horas, trabalhava em outros horários. A gente se ajeitava.

 

Eu sou muito otimista, mesmo quando o mundo está se acabando, eu penso que daqui a pouco vai ficar tudo bem. Não tem nada que me derrube, a não ser doença.

OP - Nessa correria, como encaixar o que não é trabalho?

Marlene - Eu sou casada com um ator (Brino Correia), que é também bailarino, sapateador, professor de sapateado, que se aposentou por conta própria depois da pandemia, porque ficou bem complicado. Ele vivia da arte e ficou bem difícil seguir. Ele preferiu parar e agora ele está cozinhando, ele é um excelente cozinheiro. Para a minha sorte, porque eu sou uma péssima cozinheira (risos). Eu sou muito aquela mulher de estar na rua mesmo, em casa, sou mais de organizar. Ele que cuida da casa, limpa. Só detesta lavar prato e lavo os pratos sem drama (risos). É muito bom ter casado com um ator, porque ele entende a minha língua, a gente se entende. Estamos há 17 anos juntos e o Brino é muito tranquilo. Eu tenho esse parceiro em casa que é fabuloso. Minha família é muito presente. Foi toda me assistir no teatro agora. Só não tenho os velhinhos, pai, mãe e tios. É como a Jô (Josefa Feitosa, mochileira que inspira a peça "Egoísta") também diz: quando a gente chega nessa fase da vida, a gente tem passado por um prejuízo afetivo gigantesco. E é mesmo.

Eu não tenho filho. Quando eu casei, e eu nem queria casar, tinha 44 anos já. Aconteceu mesmo porque eu encontrei o Brino e a gente viu que estar junto poderia ser muito bom também. Antes eu não queria porque eu gosto da minha liberdade, mas meu marido me deixa livre, a gente se deixa livre. Claro que a gente passa por alguns perrengues, principalmente financeiros, mas a gente vai se ajustando e vai dando certo. Eu sou muito otimista, mesmo quando o mundo está se acabando, eu penso que daqui a pouco vai ficar tudo bem. Não tem nada que me derrube, a não ser doença.

Ana Marlene e Brino Correia: casal de artistas está junto há 17 anos(Foto: Diego Souza/Divulgação)
Foto: Diego Souza/Divulgação Ana Marlene e Brino Correia: casal de artistas está junto há 17 anos

OP - Inclusive, você passou recentemente por situação de saúde complexa…

Marlene - Foi uma coisa muito delicada na minha vida essa cirurgia no coração. Eu fiz essa cirurgia como uma correção, diferente da minha família. Eu perdi minha irmã, minha mãe e meu pai, todos para problema do coração. Nós "temos" diabetes, pressão alta e problema do coração. Todos esses problemas. Minha mãe morreu com 56 anos, ela estava prestes a tratar o problema dela. Eu fui logo fazendo, tratando. Quando eu descobri, foi num exame ergométrico. A minha médica avisou que eu poderia infartar a qualquer momento. Aí eu fui cuidar e foi justamente quando o Juracy (de Oliveira, diretor teatral) me convidou para fazer “Egoísta”. Eu fiquei sem saber o que fazer.

A referência que eu tinha era minha irmã ter falecido, meu pai ter passado por uma barra quando operou. Tudo isso me deixava preocupada. Eu disse para eles (produção da peça): “Não me esperem não, porque eu não sei… Claro, se eu voltar inteira, a gente conversa”. Graças a Deus, comigo correu tudo bem, eu saí antes do esperado do hospital, eu levantei antes do programado. Muito antes do que eu pensava, eu já estava bem. Já não sentia muita dor. E é uma cirurgia muito invasiva. Eles abrem tudo. Eles fizeram em mim duas pontes: a de safena e uma mamária. Os médicos tinham que fazer a correção de entupimento de veia. As veias estavam 70%, 80% entupidas. Muito grave. Eu corria risco realmente. Hoje eu me cuido direitinho, tomo meus remédios. Eu era bem irresponsável, mas hoje eu estou mais cuidadosa. É o que vai me sustentar mais ainda daqui para frente.

OP - Agora que correu tudo bem com a cirurgia, você está recém-aposentada, fazendo o primeiro monólogo, com homenagem no Festival de Teatro. É um renascimento aos 60 anos?

Marlene - Eu estou muito satisfeita. É um conjunto de coisas novas após ter passado por essa cirurgia que eu não tinha certeza se eu ia voltar ou não. Eu tinha muito medo de morrer. Uma sensação de que eu tenho tanta coisa para fazer ainda. Aí eu não morri. Depois veio esse monólogo, que era outra coisa que eu detestava. Para começo de conversa, no geral da vida. Eu não gosto de estar só. Quando eu morei sozinha um tempo, eu ficava muito assustada e chamava meus amigos para dormir comigo. Eu trabalho com uma trupe, que tem mais de 10 pessoas.

Mas depois, eu fui vendo a equipe por trás, não só o Juracy, que é um diretor afetuoso. A minha “pariceira”, que é a Li (Coelho), que faz a contrarregragem. Eu não me sinto sozinha, porque eu sei que ela está ali. As meninas também (Luana Caiubi e Renata Monte, produtoras). Eu sou muito abraçada.
Aí veio o William Mendonça, um dos coordenadores do Festival de Teatro, me dizer que eu seria homenageada. Gente? Está completo. É um renascimento.

 Ana Marlene, atriz, tem na memória memórias do teatro cearense que começa na rua           (Foto: Beatriz Boblitz)
Foto: Beatriz Boblitz Ana Marlene, atriz, tem na memória memórias do teatro cearense que começa na rua

OP - Em “Egoísta”, há o debate sobre etarismo e sobre subverter o que se espera de mulheres maduras a partir da história da Jô e suas muitas viagens. Qual a provocação desse espetáculo?

Marlene - Foram muitas coincidências com a Jô. A única diferença de mim para ela é que eu ainda não tenho essa coragem de viajar. Pode até ser que, daqui a pouco, eu saia desbravando os lugares. Eu me preocupo muito com uma coisa da língua. Eu realmente não sei língua nenhuma. A Jô, apesar de ela não falar inglês direito, já se vira, né? Ela já dá o jeito dela. Eu acho que ela foi aprendendo, inclusive, com a vida. Eu acho que, se eu tiver coragem, eu também aprendo assim, mas é uma coisa que me trava muito.

Mas nós temos muitas coisas em comum, a história da idade, de ser 60+, negra, vinda da periferia. Ela também vinda do interior, de pais pobres, de família humilde. Outra coisa que eu não tenho é como ela é ser mãe, né? Eu nunca fui mãe, mas eu sou muito mãezona do mundo de teatro. Eu sou muito mãe dos meus artistas, dos atores a atrizes. Cuido dos meus amigos.
Eu estava vendo ela brincando que ela gosta de meninos mais novos e meu marido é 10 anos mais novo que eu (risos).

Jô enfrentou muita coisa por conta do etarismo. Como eu ainda tenho 60, não sinto tanto isso ainda. Não fui esquecida. Ainda sou chamada para muitos projetos, filmes e tudo mais. Nunca tive realmente esse problema de me vetarem por ser mais velha. Mas eu fiz 60 agora, pode ser que ainda aconteça, mas eu espero que não. Espero que as pessoas entendam que a gente é gente. A gente está viva e quer viver do jeito que a gente quiser, com respeito, carinho e tudo mais.

Foi muito importante para mim receber esse convite, saber mais dessa história da Jô, dessa mulher desbravadora, uma mulher que correu atrás mesmo do sonho dela. Eu digo que eu sempre corri atrás do meu sonho, que é fazer teatro. Nós somos parecidas. Ela desbrava o mundo, eu desbravo o teatro.

 Atriz Ana Marlene tem mais de 30 anos de teatro no Ceará (Foto: Beatriz Boblitz)
Foto: Beatriz Boblitz Atriz Ana Marlene tem mais de 30 anos de teatro no Ceará

OP - Como é para você a experiência de fazer cinema? O que é o mais diferente do teatro?

Marlene - O Clebio Viriato foi o primeiro cineasta a convidar a gente para um projeto. Em 1990, quando a Trupe nasceu, ele nos levou para Quixadá porque queria fazer um vídeo chamado “O Casamento”. Ele levou vários atores que gostavam de comédia. Saiu um vídeo teatralíssimo, muito engraçado. Foi o primeiro trabalho que a gente fez para a Video Mostra Fortaleza, evento que hoje é o Cine Ceará, na Casa Amarela. A partir do Clebio, foram surgindo outros convites, como o da Lília Moema, do Sidney Souto. Aí já entraram novos atores como Marta Aurélia, Joca Andrade, Pedro Domingues e muita gente.

Aí fomos ficando mais experientes, aprendendo na marra. Também fiz clipes. Um com o Falcão, que é muito engraçado, que fizemos com o Carri Costa. Chamado “A Terra Há de Comer (Já Que Eu Não Comi)”. Muito bom (risos). Foi direção do Joe Pimentel. Trabalhei também com a ex-prefeita Luizianne Lins. Ela fez um roteiro falando sobre as rádios comunitárias e eu era uma das locutoras. Muito legal.

Aí vieram outros filmes. “Área Q”, “Onde anda você?”, “O Quinze”, “Baião de Dois”, a série “Meninas do Benfica”. Com o Karim Aïnouz, teve “Rifa-me” e “Céu de Suely”. Recentemente fiz um curta que está rodando aí no mundo e chama “Do tanto de telha no mundo”, curta-metragem feito por alunos da Universidade de Fortaleza (Unifor). Eles resolveram levar para os festivais fora e, para minha sorte, todos os festivais eu ganho prêmio de atriz. Já é o meu quinto. Eu fico tão feliz. É uma história muito delicada e o filme foi feito com muito amor. Eles vão muito longe.

OP - Teve Cine Holliúdy…

Marlene - Pronto. Nós fizemos o curta “O artista contra o cabra do mal”, que eu faço uma participaçãozinha porque é focado no malabarismo do Edmilson Filho naquela cena do cinema, que é muito engraçada. Dali, o Halder Gomes resolveu fazer o longa-metragem, em que eu interpreto a mãe do Waldsney, que é a “mulher do Toddynho”, como todo mundo chama. Eu não tenho rede social, mas sei que pegaram um pedacinho dessa cena do filme, que é só um meme e jogaram na internet. Quando eu vi, era todo mundo falando comigo no meio da rua, chamando de “mulher do toddynho”. Eu não acreditei. O filme bombou e nem o Halder esperava aquilo. Foi um burburinho enorme. Casa lotada. Ainda hoje, tem gente que fala que me conhece e lembra que é por conta do filme.

Confira trecho com Ana Marlene no filme "Cine Holliúdy" (2012), de Halder Gomes

OP - Por que não ter rede social?

Marlene - Eu sou muito contra a violência, é algo que realmente me assusta. É um pouco de trauma porque eu tive umas questões muito complexas na minha adolescência. Quando eu começo a ver televisão aberta, eu já saio. É uma coisa que traumatizou minha cabeça. Para eu não saber e não ver, eu prefiro não ter rede social. Eu não gosto muito do burburinho também. As pessoas podem perguntar: “Mas tu não quer ser famosa?”, brinco que já sou. Desse tamanho está bom, pois sei que ser famoso, como os globais, é complicado. Eu hoje encararia numa boa, pois minha cabeça está bem legal, mas eu mais jovem teria me perdido, é muito louco isso de fama. Eu prefiro me manter distante das redes sociais.

OP - O teatro cearense anda em baixa. Produções paradas, inconstância nas pautas. O que pode dar um up nas nossas artes cênicas?

Marlene - A gente precisa de ajuda financeira. Os artistas são muito mal pagos. A gente ganha muito pouco. Se eu não tivesse a Cagece, eu não teria como viver de teatro. Poucas são as pessoas que conseguem. Eu queria muito que as pessoas vissem que o artista é um trabalhador que trabalha arduamente. É uma pessoa que trabalha muito para fazer o público feliz, fazer o público pensar, para entrar na tua casa. Esse cara precisa ganhar bem. Ele também precisa viver, comer e alimentar a família. Eu só queria que as pessoas olhassem para os artistas com esse cuidado. O artista não é carente de atenção. A gente tem atenção, respeito, mas o artista precisa de segurança financeira. Essa é a parte mais cruel. Poderia ter uma forma de a gente ter alguma assistência, um plano de saúde. Muitos artistas morrem sem cuidados médicos, porque têm de depender do SUS – que é fantástico, ainda bem que existe, se não tivesse era muito pior. Mas a gente precisa desse amparo. Isso vai nos deixar mais motivados para continuar nossa cena sem precisar estar mendigando, sofrendo. Eu queria que as autoridades cuidassem da gente nesse campo.

OP - Agora, renascida, o que você quer da vida?

Marlene - Quero viver mais. Muito. Queria que Deus me permitisse caminhar mais por aqui para espalhar minha arte e levar a Trupe para outros lugares, levar “Egoísta” para as pessoas conhecerem mais. Eu quero viver e continuar fazendo meu teatro.

 

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