Prestes a completar 53 anos, o carioca boa praça Marcelo de Lima Henrique é o árbitro mais velho em atividade nos campeonatos profissionais de futebol do País — é o único da categoria master da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Já foram mais de 1.000 partidas apitadas, entre competições internacionais, nacionais e estaduais, além de vasta trajetória na várzea e até nas areias das praias do Rio de Janeiro, onde foi forjado para os grandes desafios.
E os desafios já existiam antes mesmo de escolher o apito e os cartões como instrumentos de trabalho. Filho de árbitro, Marcelo tentou ser goleiro, mas percebeu que não teria grande sucesso debaixo das traves a longo prazo. A partir daí, a primeira decisão profissional foi longe dos gramados: tornou-se fuzileiro naval da Marinha. Mas a insistência do pai e a intimidade incutida desde a infância levaram à trajetória óbvia. Entrou em um curso de arbitragem, apaixonou-se e seguiu carreira.
Filiado à Federação Cearense de Futebol (FCF) desde o fim de 2021, Marcelo de Lima Henrique não esconde que gosta da "resenha", sobretudo pelas boas histórias que acumula na carreira, mas também guarda características da vida militar, como o corte de cabelo, a barba sempre rente, a disciplina e o respeito à hierarquia. A pontualidade também é fator importante, apesar de nem sempre ser possível de cumprir — a volta atrasada de um jogo já até rendeu punição nas Forças Armadas.
A trajetória no campo não escapa de polêmicas. A principal delas envolve um gol do Flamengo na final do Campeonato Carioca de 2014, diante do Vasco, em que o rubro-negro Márcio Araújo, que estava impedido, balançou as redes. Marcelo de Lima Henrique admite que a arbitragem errou. Mas o juiz de futebol também viveu grandes momentos, como apitar Uruguai x Argentina, pelas Eliminatórias da Copa do Mundo, e uma semifinal brasileira de Copa Libertadores, entre Santos e Corinthians.
Chamado de "vovô" pelos mais próximos, ele é adepto das redes sociais e costuma exibir a rotina no Instagram. Com projeto de apitar até os 55 anos, montou um estafe de profissionais para ter suporte extracampo, com ênfase na parte psicológica, e se avalia como um dos árbitros com melhor relação com o VAR, por ser "good vibes" e saber lidar com a pressão. Em mais de 50 minutos de entrevista, no estádio Presidente Vargas, não se furtou de expor a realidade do futebol longe dos holofotes e clamou por união para evolução e profissionalização da arbitragem nacional.
O POVO - Como surgiu a decisão de ser árbitro? Você começou no futebol como goleiro e depois optou pela arbitragem...
Marcelo de Lima Henrique - Eu falo que sou árbitro desde os 5 anos de idade, porque meu pai foi árbitro, então ali eu comecei a conhecer o futebol. Até conto uma história que a galera ri para caramba: com 8 anos, eu saí de camburão com meu pai. Lá no Rio de Janeiro, camburão é a viatura da Polícia. Meu pai apitou um jogo de Segunda Divisão (do Campeonato Carioca) lá, foi muito complicado, e tivemos que sair de camburão. Ali realmente começou o meu amor pelo futebol.
Com 11 anos, comecei a jogar futebol, fui goleiro do América-RJ, Bangu, Operário-MS, fiz teste no Botafogo e no Flamengo, voltei para o Bangu. Então ali começou a minha paixão pelo futebol. Assim que eu parei de jogar futebol, com 17, 18 anos, entrei para ser fuzileiro naval, e meu pai sempre pedindo e falando: "Você tem que ser árbitro, você é líder, tem altura, vê o jogo comigo, conhece o que é falta, o que não é falta, gosta de futebol". Até que meu pai me levou para fazer um curso de árbitro de futebol. Eu não queria na época, porque quem é jogador não quer ser árbitro.
Eu nunca tinha apitado jogo de futebol, porém, com um mês lá no curso, depois de me matricular, ganhar bolsa — ganhei metade da bolsa e meu pai pagava a outra metade, porque eu não tinha dinheiro... Eu era cabo fuzileiro naval, já tinha dois filhos e não tinha dinheiro para pagar o curso, só que, com um mês, já estava apaixonado. Aquele jovem que queria ser jogador de futebol estava inserido de novo no campo de jogo. Era uma paixão incubada ser árbitro de futebol. O meu caminho era esse.
OP - Você era bom goleiro?
Marcelo - Eu era um bom goleiro, não era um goleiro excepcional. No futebol de alto nível, hoje, tem que ser um grande goleiro. Era um bom goleiro, fui capitão das equipes que eu passei. Sempre fui líder, muito falante, comunicativo. Nas equipes que eu passei, fui bem, fui titular, bacana, mas acho que eu seria goleiro de um time mediano e pequeno. Sempre vi a luta, conhecia muito futebol, e dizia: "Não quero isso para a minha vida, quero ter família cedo. Vou ser militar, porque lá é mais garantido".
OP - Você lembra da sensação depois de apitar um jogo pela primeira vez?
Marcelo - Eu nunca tinha apitado uma partida na minha vida. No curso, comecei a fazer treinamentos, até que um amigo da Liga Desportiva de Nova Iguaçu chegou lá e falou: "Estou precisando de árbitro para apitar lá na Liga. A taxa é tanto". Uma taxinha boa, fiz a conta: "Opa, dá para fazer uma feira com essa taxa". E fui apitar esse primeiro jogo lá em Nova Iguaçu.
Chegando lá, vi que era mais fácil do que eu achava, achava que era muito difícil. Mas por quê? Porque estava no futebol desde muito cedo e acompanhei a carreira do meu pai. Era marcar falta, não falta, amarelo e vermelho... E a sensação foi "opa, estou aqui de novo, dentro do campo de jogo, e sendo chamado de 'professor', sendo líder". Foi uma sensação muito boa, de estar inserido de novo no futebol e sem nenhuma saudade de ser goleiro. E vi que ali era uma coisa que poderia dar certo. Desde o primeiro jogo, eu falei: "Acho que dá certo, hein?". Comecei a investir muito nisso.
OP - E como foi conciliar a profissão de militar e o início na arbitragem, além da vida pessoal?
Marcelo - Foi um período de muita ralação (esforço). Muita ralação porque quando eu fiz o curso, em 1995, eu era cabo fuzileiro naval, tinha dois filhos já. Em 1996, tive mais um filho, casado de novo, mulher nova, (o lado) familiar foi muito dificultoso. Eu sou fuzileiro naval, tirei 30 anos como fuzileiro, muitas missões, muitas manobras. Eu era um goleiro que tinha base, e os fuzileiros navais tinham uma seleção que jogava campeonatos internos na Marinha. Também tinha a seleção da Marinha e das Forças Armadas, então, rapidamente, eu fui visto pelos técnicos, que me levaram para a seleção de fuzileiros, seleção da Marinha...
Engraçado, primeiro eu fui para a seleção da Marinha, me viram jogando uma pelada: "Ah, você é goleiro?", "sou". Aí, eu fui para a seleção da Marinha, depois que eu fui para a seleção de fuzileiros e seleção das Forças. Por fim, fui para a seleção brasileira das Forças Armadas, joguei até o Mundial na Alemanha, em 2005. Inclusive, o Márcio Rezende (de Freitas), árbitro bimundialista, apitou o Mundial, Ednilson Corona bandeirou Mundial... Mas era difícil, porque o tempo que eu não estava na seleção, estava em missão.
A minha arma era Engenharia, eu sou especialista em explosivos, e a gente vivia muito tempo no mato, manobra, 15 dias, aí voltava. Para conciliar com a família e a arbitragem, no início, foi muito ruim, mas as coisas foram encaminhando. Chegou uma hora que eu comecei a apitar Série B e Série A, já era primeiro sargento, segundo sargento, fazia poucas missões, estava trabalhando mais interno, e as coisas foram se encaixando. Tudo no tempo de Deus, como eu falo.
Apareceram alguns anjos... Teve um almirante que me ajudou muito, almirante Fernando, ele é até cearense. Ele me ajudou demais. Fui para o quartel que ele comandava e lá eu apitava todos os jogos possíveis: navio chinês contra navio brasileiro, a galera do rancho de tal quartel com outros campeonatos, e aí foram me abrindo as portas para eu conciliar a arbitragem e o militarismo. Assim eu consegui conciliar durante 30 anos. Não foi fácil. Foram várias noites mal dormidas, serviços apertados, foi com muita luta, mas deu para colher bons frutos.
OP - Você falou das missões, trabalho com explosivos... O que você viveu nessa época de militar?
Marcelo - A minha arma era engenharia de combate, a gente trabalha com explosivos. Com explosivos, todos os treinamentos são reais. Infantaria treina com (balas) de festim, não existe explosivo de festim. Então todo o nosso trabalho, a carga tem que ser calculada, para você derrubar uma parede tem que fazer os cálculos, espessura e tal. Então, tudo é real. E eu vi alguns colegas perderem mão, braço, outros morrerem na Angola. Um capitão que era muito fera em explosivos perdeu uma perna numa mina. Foi até visitado depois pela Lady Di (princesa Diana), capitão Rui (Xavier da Silva), é famosíssimo lá no Corpo.
A nossa missão de engenharia sempre era real, então isso trazia muita tensão, mas também muita responsabilidade com os procedimentos, regras de segurança. Isso me deu um pouquinho de know-how na arbitragem, de eu saber que tenho que cumprir procedimentos. Isso foi muito bacana.
Vivi situações ruins também. Lembro de estar apitando um Goiás x Corinthians, Copa do Brasil, acho que o Corinthians passou, e eu tinha que chegar no quartel 7h30min. Cheguei 10 horas e fui lançado no livro de contravenção disciplinar, porque, afinal de contas, eu era militar. Fiquei lá um dia detido, por conta desse jogo. É complicado, mas tem que entender o comando. Eu sou militar, primeiramente. Eu fiz de tudo para poder chegar 7h30min, mas não consegui.
As situações que eu vivi no meio militar me deram uma casca para poder valorizar a profissão e saber que tinha que me dedicar bastante também à arbitragem para poder estar inserido.
OP - A disciplina da época de militar ajudou a exercer a liderança como árbitro, impor disciplina em campo?
Marcelo - Poucas pessoas nascem líderes. A liderança é forjada, aprendida. Eu aprendi a ser líder no quartel. No quartel, você tem que respeitar o seu superior hierárquico, os seus pares e os seus subordinados. E outra coisa: a tropa combate muito junta, então tem que ter um espírito de corpo. Se eu brigar com meu superior, com meu par ou tratar mal meu subordinado — o cabo tem um subordinado, que é o soldado —, você não consegue atingir o objetivo final.
E na arbitragem é a mesma coisa, você trabalha em equipe o tempo todo. O jogo hoje é muito rápido, você tem que contar com o assistente, com o quarto árbitro. Isso o militarismo me deu, de ter o respeito e, principalmente, respeitar as instituições. Um clube de Série A, Série B, Série D... Ali são vidas. Então isso me deu um aprendizado muito grande para a minha vida e para a arbitragem, sobremaneira.
OP - Quando você percebeu que realmente tinha se tornado um árbitro profissional? Houve essa virada de chave?
Marcelo - Onde eu ia apitar, eu era muito elogiado, ainda jovem. Na várzea, no sub-15... Era muito elogiado. Isso me fez me sentir muito grande, eu achava que era o cara. Só que a minha carreira não andava, colegas da minha turma, que estavam muito abaixo tecnicamente e disciplinarmente, já estavam fazendo grandes jogos, e eu não. E eu não entendia isso. Aí, eu comecei a tentar olhar para mim mesmo. Até que eu tomei uma punição lá no Rio de Janeiro.
Eu fiz um jogo Grêmio Seropédica x Vasco da Gama, sub-17. No time do Vasco jogavam o Léo Lima e o Souza Caveirão, que eram do Madureira e foram para o Vasco. Esse jogo só acabou porque eu... Tentaram invadir o campo... Eu fui um herói ali, porque queriam melar o jogo de qualquer maneira. Dei um pênalti para o Vasco e não queriam deixar bater o pênalti. Eu saí dali grandão: "Opa, salvei o jogo". Só que o prefeito da cidade estava muito aborrecido, fez um ofício, mandou um fax, e eu fiquei punido: dez meses sem apitar no Rio de Janeiro.
Achei que não era mais árbitro. Essa foi a virada de chave. Eu comecei a arbitrar muita várzea, pelada. Eu era um cara humilde, com poucos recursos, e (apitar na várzea) me dava muitos recursos. No meio dessa várzea, no Campo do Pinel, o jogo começa 7 horas da manhã, era um tempo de uma hora. Às 8 horas, os senhores só bebiam água e jogavam de 8 horas às 9 horas. Eles bebiam água e trocavam de lado. E o mais jovem ali tinha 60 anos, era um jogo bem tocadinho.
Apitando lá quase toda semana, porque o dinheirinho ali era bom, chegou um senhor, que foi um ex-jogador conhecido no Rio de Janeiro — Bangu, Portuguesa —, e falou: "Meu filho, você apita demais, é muito bom árbitro". Aí, eu disse: "Pô, chefe, só que eu estou dez meses punido na Federação (de Futebol do Rio de Janeiro)", e contei a história para ele durante o jogo do super master. Aí, ele: "Não, não, você vai apitar. Vou ligar para a Federação, conheço todo mundo lá".
E assim foi. Ele era uma pessoa muito influente, aí mandaram eu ir lá. Falei que estava punido e disseram: "Não está punido não, a gente esqueceu de você". Aí, minha carreira deu uma virada de chave e eu comecei a apitar muita praia no Rio de Janeiro. Campeonato de 11, não beach soccer. Comecei a me esvaziar um pouquinho e vi que eu era um servidor do futebol. Essa punição... Você estar no deserto foi bom para sentir que eu tinha que servir o futebol, na minha humildade, para poder aprender com quem estava acima. Isso foi em 2000, 2001.
OP - Como é lidar com a "geladeira", em que vocês são punidos por um erro, ficam sem atuar e também sem receber pagamento?
Marcelo - É muito ruim. Se você foi punido é porque errou. Eu sofro muito quando erro. O torcedor não vai entender, alguns dirigentes entendem, jogadores não sei se vão entender... Eu respeito muito o futebol, respeito muito as instituições. Ninguém é dono do Fortaleza, do Ceará, Ferroviário, Maracanã, Horizonte, Iguatu... São instituições. E eu fico chateado quando erro. Se eu fui punido é porque errei e, às vezes, esse nosso erro... Porque nós somos humanos, às vezes as pessoas esquecem, acham que a gente é super-homem.
Eu creio que o futebol é feito de pessoas boas. Trato todo mundo bem, só que a gente erra. Quando estou punido, fico muito triste, porque eu errei, de repente afetei a carreira de um jogador, um time foi rebaixado... Então é muito ruim. Você passa esse tempo no limbo, é muito ruim. Com o tempo, você aprende que você apitando muito bem um jogo... Ontem eu apitei um jogo muito bem ou errei naquele jogo ontem... O momento de você sorrir é um dia. Apitei demais numa final de campeonato, um dia eu vou comemorar, no outro dia eu tenho que treinar, porque domingo pode ter outro jogo. E a mesma coisa quando eu erro: eu vou sofrer, chorar, um dia. É o meu prazo. No outro dia, eu tenho que treinar, porque tenho que voltar rapidamente.
Eu fui (árbitro) Fifa durante sete, oito anos e fiquei punido na Conmebol dez meses, mas treinando. O meu jogo depois dessa punição foi uma semifinal de Libertadores, Santos x Corinthians, 2012. E se eu não estivesse preparado? Eu aprendi que você tem que sofrer, sim, com seus erros, tem que chorar, se alegrar, mas tem que trabalhar, porque o futebol é dinâmico, é vivo.
OP - Em momentos ruins ou após derrotas, alguns jogadores evitam aparecer em público para não sofrer pressão de torcedores. Com árbitro, após polêmicas ou erros, isso também acontece?
Marcelo - Não, tem que segurar. Nada contra a geração atual, mas, infelizmente, a gente vive numa sociedade doentia, em que as pessoas não respeitam as outras. Aqui, em Fortaleza, eu fui muito bem recebido. Já apitei jogos complicados aqui, fui na praia e fui muito bem tratado. No Rio de Janeiro é impossível. Por quê? Porque no Rio de Janeiro são quatro (clubes) gigantes, numa capital bem menor do que Fortaleza, espremida entre o mar e a montanha. Ali realmente tem que evitar. Eu ficava um mês sem sair de casa, sem ir ao mercado. Você tem que ir para Marte. As pessoas não te respeitam.
Hoje a coisa mudou: é internet. Eu sou um cara bem participativo na internet, porque não quero viver na bolha, saio um pouquinho da internet. Ficam os haters lá... Até há pouco tempo, conversei com um árbitro amigo meu que tomou um monte de lapada de hater na internet e falei: "Meu amigo, não se aborrece com isso, não. São 48 horas. Hater dura 48 horas, não responde ninguém".
Se eu fosse viver indo na delegacia dar queixa de quem me ameaça de morte, ameaça minha família, bota meu endereço, fala barbaridades... Eu ia viver na delegacia. Eu levo de boa, sou um cara good vibes em relação a isso. Mas, infelizmente, a gente vive numa geração doentia, que não tem limite no respeito às pessoas, às instituições.
Se eles (torcedores) não respeitam o jogador, o craque do time dele, que custou milhões, os caras não conseguem sair na rua se errar um passe, quem dirá o árbitro. Não vai me respeitar. É o futebol, infelizmente. O futebol está cada vez mais ácido fora de campo. Eu tento viver uma vida normal. Tento, às vezes não consigo.
OP - Prestes a completar 53 anos, você é o árbitro de campo mais velho em atividade no Brasil. Quais os desafios na parte física?
Marcelo - O futebol está muito veloz. Quem só assiste a jogo de Série B ou Série C, pega uma cadeira próxima ao campo e vai ver uma Série A. O ritmo é outro, a pegada é outra, o físico é outro, e o árbitro não pode ficar para trás. Já passei por várias gerações, vi árbitro parando, e eu continuo aí. Primeiro, acho que eu sou privilegiado fisicamente. Não é por mim, acho que eu tive uma boa formação física, porque comecei a jogar bola muito cedo, fui goleiro de uma boa base, o militarismo me deu muita coisa boa, de lastro, resistência.
Mas acho que o que mais me faz ainda estar apitando é o meu mental. O meu mental que me leva, num dia ruim, depois que eu errei, a ir treinar. Eu formei também um conjunto profissional que está ao meu redor, tenho um estafe profissional, pago por mim, orientado às vezes pela nossa Federação (Cearense de Futebol), pela CBF. Tenho meu preparador físico, meu nutricionista, meu fisioterapeuta, tento me alimentar da melhor maneira possível, mas sei que um dia a perna vai cansar, não sou um super-homem.
Um amigo até perguntou: "Vai parar quando?". Não sei, eu estou conseguindo apitar em alto nível ainda. É como a gente fala: "Fábio (goleiro de 43 anos), você não pode mais agarrar no Fluminense". O Thiago Silva chegou agora da Inglaterra, voando, as pessoas estão impressionadas. As coisas mudaram. A fisiologia do exercício mudou, a nutrição mudou, trabalho psicológico...
Eu estou investindo agora, mês que vem, num trabalho psicológico com uma grande psicóloga e vou fazer um trabalho de seis meses com ela. As pessoas não veem isso. Aqui, na Federação, a gente tem todo o estafe também, físico, nutricional, psicológico, técnico. Como eu moro no Rio, eu gosto da coisa mais presencial, estou investindo agora na parte psicológica. Porque é esse mental que vai me dar longevidade. Apitar futebol no Brasil não é fácil e com 52 anos é mais difícil ainda, mas estamos na luta. É um privilégio estar ali, por isso que eu tento esticar cada vez mais.
OP - Teve algum motivo específico para você decidir fazer esse trabalho psicológico?
Marcelo - Teve, sim. Teve um motivo específico. Quando uma pessoa fala que você está tendo alguma deficiência, tem que ligar um alerta. Quando duas pessoas falam que você está tendo uma deficiência... Duas pessoas, o alerta aumenta. Minha esposa me falou: "Acho que você está assim, assado", aí um grande amigo que eu tenho, que mora nos Estados Unidos, falou: "Cuida um pouquinho do ego". E uma outra pessoa também, que eu vou me reservar, também disse: "Marcelo, dá uma olhadinha nisso".
E eu resolvi... Fui estudar um pouquinho. Faz bem a gente fazer uma análise, saber onde está inserido. Eu achei também que poderia resolver esse problema sozinho, mas não. É uma parte que, cada vez mais, os clubes têm que fazer e já fazem, cuidar essa parte psicológica. O mundo hoje é muito vivo. Como eu falei, eu não fico na bolha. De repente, um árbitro que vive na bolha, não tenha rede social, não saia, consegue fazer o mundinho dele ali. Vai sofrer consequências mais tarde. Como eu tento viver uma vida normal, quero cuidar dessa parte também, que é muito importante.
OP - Como surgiu o convite de vir atuar pela Federação Cearense?
Marcelo - Eu estava na Granja Comary, com o Nailton (Oliveira, árbitro assistente), fazendo uma concentração para o Brasileirão de 2021, e eu sou muito amigo do Almeida Filho (vice-diretor da Comissão de Arbitragem), foi meu contemporâneo, do Wladyerisson (Oliveira, ex-árbitro), do Alevar (Rodrigo), Luiz César (Magalhães), Léo Simão... Galera que eu conheço há um tempo, de vir fazer jogos aqui, e foi se criando uma empatia. Seu Daniel, que está no Castelão, Ronaldão, massagista... É engraçado, a gente vai criando uma empatia com essas pessoas.
E eu estava lá na concentração, sem Federação, tinha saído do Rio de Janeiro, que resolveu fazer uma renovação e realmente renovou muito, faz parte. Casamento, têm uns que acabam, outros não. O meu com a dona Sandra não acaba, tem 32 anos (risos), e vamos até o final. Então, eu estava sem Federação, conversando com o Nailton, e ele falou: "Vamos para a Federação Cearense". Aí, ele falou com o Paulo Silvio (presidente da Comissão de Arbitragem da FCF), eu conhecia o Paulo de jogos, não tinha muita intimidade. Falou com o Almeida Filho, na hora já falaram com o doutor Mauro (Carmélio, presidente da FCF), conhecia o doutor Mauro de jogos também, pessoa por quem eu tenho um grande apreço, grande ser humano. E aí surgiu o convite. Em 15 minutos, conversando com o Nailton, o Nailton com o Paulo, o Paulo com o doutor Mauro, o doutor Mauro autorizou.
E era um desafio. A gente gosta de desafio, né? Eu já tinha apitado, no Rio de Janeiro, 11 finais de (Campeonato) Carioca, Taça Guanabara, 15 Flamengo x Vasco... É um novo desafio. E eu digo, estava perdido lá no Rio de Janeiro, porque meu pai é piauiense; minha avó, pernambucana; meu avô, paraibano; a minha esposa, filha de cearense; o esposo atual da minha sogra, cearense de Sobral. Então, eu estava perdido lá. E eu tenho um grande encanto pela Copa do Nordeste, é futebol raiz.
Surgiu o convite, vim para cá e quando cheguei aqui, me deparei com uma Federação muito organizada, sim, com suporte psicológico, nutricional, físico — temos dois preparadores físicos, treinamento quinta e sexta-feira obrigatório —, aferição de percentual (de gordura) o tempo todo. É uma Federação que está querendo trabalhar para o árbitro, então isso é muito legal. No Brasil não deve ter cinco Federações que tenham esse suporte. Cinco das 27. Vamos estourar, dez.
OP - De que forma enxerga o crescimento do futebol cearense nos últimos anos?
Marcelo - A galera não captou ainda a dimensão em que o futebol cearense está. A dimensão do Fortaleza, do Ceará, o nome que o Ferroviário tem, Floresta é um clube com um CT maravilhoso, Atlético-CE e Iguatu na segunda fase da Série D, Iguatu fez um papel bonito na Copa do Brasil ano passado, Maracanã com um estádio, o Horizonte tem um palco bacana... As pessoas não captaram. O Estado está numa crescente muito grande, o investimento é bacana, a Federação é muito democrática. E a arbitragem tem que crescer também.
O grande problema é que o futebol todo, os clubes, tem que entender que é importante a arbitragem estar junto, remando junto. É importante eles nos valorizarem. Eu sei que é difícil, às vezes o árbitro vai errar num lance ali. Às vezes vem um árbitro de fora aqui, com todo o respeito aos colegas, que está mal no Estado dele e vem para o Ceará apitar uma final. Mas por quê? Nós somos prestadores de serviço. O clube, que é um cliente, tem a razão dele, mas o futebol todo — clubes, imprensa, torcedores — tinha que nos dar esse crédito para que a gente crescesse junto.
Nós tivemos agora, depois de muito tempo, um árbitro cearense, Luciano Miranda, estreando na Série A do Brasileiro. O Nailton Oliveira saindo em muitos jogos, o Renan Aguiar saindo comigo, assistente de Série A. Agora, o futebol tem que abraçar a arbitragem. Enquanto o futebol não ajudar a arbitragem a crescer junto, a gente vai ficar sempre um pouquinho para trás. É importante para um jovem estar apitando Clássico-Rei. Eu fiz dois ou três Clássicos-Rei, é uma magnitude imensa. Um Ferroviário x Fortaleza aqui no PV não é qualquer um que leva, um Ferroviário x Ceará... E os nossos árbitros têm levado esses jogos.
Entendo os clubes. Se o árbitro lá da Série D puder escolher, ele quer o (ex-árbitro italiano Pierluigi) Colina apitando, ou o (Carlos Eugênio) Simon. Só que nós também queremos apitar jogos com o Messi jogando, Cristiano Ronaldo, e não apitamos. É estranha a coisa, né? O clube aceita estar com jogador que perde o pênalti, goleiro, jogador que veio da Série D, mas quer o Colina. Eu também quero apitar jogo do Taffarel agarrando (risos).
Acho que a gente tem que crescer. Já crescemos um bocado, mas temos que parar com esse preconceito. A gente tem que valorizar mais quem é daqui. Você não vai ver um Carioca, Paulista ou Gaúcho com arbitragem de fora. E tem erro, só que lá eles se valorizam. A gente tem que olhar isso para poder crescer junto e estar com o futebol cada vez mais forte.
OP - A sua presença no quadro da FCF ajuda no processo de formação de novos árbitros?
Marcelo - Obviamente que eu não sou unanimidade, mas sou um cara de fácil acesso. Quem quer ter acesso comigo, inclusive árbitros de fora daqui, que eu nem conheço, pelas redes sociais... Eu tento passar para todos que queiram pegar um pouquinho da minha vasta experiência, 30 anos de arbitragem, tento passar alguns conselhos, sim. Hoje, o conselho que eu mais dou para árbitro é o entendimento de jogo. Tem que ver jogo, tem que vir no PV, ver jogo pela TV, olhar os grandes árbitros. "Por que esse cara está apitando Série A toda semana?". Ir lá no Castelão quando esse cara vir apitar aqui, para saber os atalhos do campo.
Tento passar a pegada física que o futebol de Série A hoje exige. Já ouvi de alguns árbitros daqui e de outros lugares do Brasil: "Caramba, eu apitava só Série B, quando eu fiz um joguinho de A, bati e voltei". Porque a pegada física é outra, o cara tem que estar acima. O que te leva a uma pegada física alta? É o teu mental apurado, saber que tem que treinar, trabalhar.
Acho, sim, que eu consegui contribuir para alguns árbitros aqui, mas quero contribuir muito mais. O futebol é vivo e a gente tem que poder repassar para os novos o que aprendeu. Se a gente não conseguir repassar para os novos o que aprendeu, eu vim aqui fazer o quê? Não vim passear no Ceará. Vim trabalhar, apitar e contribuir também com a arbitragem cearense.
OP - Estando mais próximo do fim do que do início da carreira, você já pensa no que fará depois de parar de apitar?
Marcelo - Na vida, a gente tem metas e sonhos. A minha meta é apitar até 55 anos de idade, até 2026. A minha meta também é poder devolver para a arbitragem tudo que ela me deu. Ela me deu muita coisa, me tirou lá de um bairro muito pobre do Rio de Janeiro e eu conheci o mundo todo. Da Coreia do Sul ao Azerbaijão, ao Suriname, América do Sul toda, Alemanha, Estados Unidos... Ela me deu muito isso.
Então, eu quero devolver para a arbitragem. Como eu posso devolver isso? Trabalhando com jovens árbitros. Nem que seja na minha cidade (Itaboraí), onde eu moro, no Rio de Janeiro, que eu tenho um grupinho de árbitros lá e tenho muito orgulho de falar deles. Quando cheguei na minha cidade, Itaboraí, não tinha nenhum árbitro federado. Nós conseguimos hoje ter 15 árbitros federados. Dos 15, nove treinam comigo, trabalham comigo. E desses nove, seis são árbitros CBF. O Rio de Janeiro hoje tem 18 árbitros CBF, seis são de Itaboraí. Então, a gente conseguiu repassar alguma coisinha para eles. E são árbitros preparados tecnicamente, fisicamente, obviamente em expansão. Não sei quem vai chegar na Série A. Um ou dois vão chegar.
O meu sonho é repassar. Agora, em qual função? São cargos de confiança para estar numa comissão (de arbitragem), mas eu tenho certeza que tenho plantado alguma coisa e certamente no futuro, em 2027, a gente vai ter alguma função, nem que seja lá na minha cidade para poder repassar um pouco de conhecimento.
OP - Com a longa carreira que você tem, quais as histórias inusitadas que viveu apitando jogos?
Marcelo - Tem bastante história. Eu sou privilegiado, porque apitei um Uruguai x Argentina, Eliminatórias da Copa do Mundo de 2014. O Uruguai tinha que ganhar e ganhou da Argentina, eu apitei um jogão de Eliminatória. Apitei uma semifinal de Libertadores entre dois paulistas, eu carioca. Tem bairrismo lá, pessoal de São Paulo e Rio. Imagina um carioca apitando, na Vila Belmiro, um Santos e Corinthians, no ano que o Corinthians foi campeão mundial (2012).
Têm momentos inusitados, claro. Quando eu comecei a apitar na praia, tinha um jogador muito viril, muito violento, e dei um amarelo nele e falei: "Meu amigo, na próxima é rua". Ele olhou dentro do meu olho e falou assim: "Se você me expulsar, eu te mato". Eu olhei ao redor e não tinha ninguém vendo, vi que era verdade no olho dele. Ele ia me matar, não sei como. Deu uma brecha, falei com o segurança da praia, e ele falou assim: "Marcelo, não expulsa não, cara. Por favor". Eu nem perguntei. Isso é arbitragem.
Eu já mudei o jogo de local. Imagina ir apitar uma semifinal do sub-20 no CT, chega lá e está alagado. Aí, o CT do lado está marcado, pintado e não está alagado. Eu transferi jogo já, botamos todo mundo dentro do ônibus, um sub-20. Não tinha delegado no jogo, eu tinha que resolver e era a última data do ano. Por conta disso, eu apitei as duas semifinais. O outro árbitro, não tinha policiamento, não deu, e eu fui apitar a semifinal dele também.
E o meu primeiro jogo foi uma grande história, na Liga de Nova Iguaçu. Um time estava com nove (jogadores), e o outro, com sete. O time que estava com sete fez 1 a 0, um jogador simulou uma contusão, e o jogo durou 15 minutos. Mesmo com sete, ele fez um gol, mas perdeu por deficiência técnica.
Eu tenho uma história aqui em um Ceará x Corinthians (em 2010), voltando da Copa das Confederações, cheguei 15 minutos antes do jogo começar. Um jogo da Globo, 21h45min (no sentido de ter transmissão nacional). Quando cheguei naquela rotatória (próxima ao Castelão), não andava ali. E foi engraçado porque o Cleston Santino, que foi árbitro aqui, estava com a esposa dele indo para o jogo também, levando a gente, ela virava para a trás e falava assim: "Ih, não vai dar tempo. Não vai ter jogo, não vai dar tempo, a arbitragem não vai chegar". E eu, com todo o respeito, quase querendo enforcar a madame (risos). "Madame, se não tiver jogo, eu estou enrolado". O Cleston saiu um pouquinho mais tarde, mas nós chegamos. Só deu tempo de trocar a roupa e ir para o jogo.
OP - Você achou que merecia ir para alguma Copa do Mundo? Chegou a ter esse sonho?
Marcelo - Todo árbitro acha que merece ir para todas as Copas. Só que eu já entrei tarde na Fifa, em 2008, com 37 anos, e simplesmente o quadro tinha Simon, (Leonardo) Gaciba, Heber (Roberto Lopes), Paulo César de Oliveira, Wilson Seneme, Sálvio Spinola, Alício Pena Júnior, Djalma Beltrame, Wagner Tardelli e eu. Só gigante. Eu via aqueles caras na TV e eu, um cara que veio da várzea. Todos eles consolidados. Eu entrei em 2008, então para a Copa de 2010 eu sabia que não ia, porque o Simon estava voando.
Para 2014, eu já estava velho para o processo, já tinha 42 anos. E vi o Sandro Ricci, que entrou em 2009 ou 2010, voando fisicamente, no idioma, poliglota, bem demais. O Sandro Ricci entrou e pulou à frente desses árbitros, principalmente pelo pilar físico. A Fifa mudou os treinamentos físicos, o Sandro muito bem fisicamente e tecnicamente. Mas eu tive a minha Copa do Mundo, que foi Uruguai x Argentina. Eu nunca me iludi, porque são processos.
OP - E como é a relação com os jogadores em campo? Você apitou jogos de diferentes gerações...
Marcelo - Eu já passei por muitas gerações de jogadores, muitas. Lá quando eu comecei no profissional, era mais isso de querer intimidar, tinha um xerifão. Atualmente, os jogadores são mais inteligentes e tentam entrar na sua mente. Mas é entrar naquela ideia, quer te levar pro lado dele. Eu não sou inimigo de jogador. Não trato mal jogador, não trato mal técnico. Para mim, são todos pessoas de bem, que querem jogar bem, levar o seu ganha-pão para casa.
É muito mais fácil apitar jogo de grandes jogadores do que dos jogadores ruins. Tem jogador bom e jogador ruim. Os craques são muito mais fáceis. Apitei jogo de Ronaldo, Romário, Ronaldinho Gaúcho, Neymar, Vini Júnior, Rodrygo, Endrick, Estêvão... São muitas gerações. E grandes goleiros, eu olho muito os goleiros. São pessoas mais preparadas.
E o futebol hoje está tão dinâmico que tem jogadores que nem falam com a gente, não conseguem respirar, os caras estão na frequência máxima. A gente sente. Tem uma hora que o cara corre tanto que ele fala: "Professor, afoguei". O cara não aguenta mais respirar. Futebol está muito intenso. Mas tem que saber lidar com a galera, de boa, obviamente cumprindo a regra e preservando o craque, servindo ao futebol.
OP - Como lidar com a pressão durante a revisão de um lance do VAR? Os jogadores estão cercando o árbitro, o pessoal da cabine conversando com você, a pressão de acertar o lance...
Marcelo - Penso eu que já melhorou muito desde o início, melhorou bacana agora. Está uma coisa mais fluída. Eu estava vendo agora Olimpíada, quase todos os esportes hoje têm VAR. Estava vendo handebol, o cara vai no VAR e não tem nenhuma contestação. Mas se for um VAR do handebol em Brasil x Argentina vai ter contestação. A gente vive numa cultura latina, que fala muito, quer impor as nossas vontades.
Realmente, se ficar muita gente falando, atrapalha o nosso raciocínio. Por isso que, às vezes, o árbitro ali no monitor demora um pouco mais, porque você tem que controlar os caras, acertar o lance. O árbitro quer acertar. Ele já foi para o VAR porque, teoricamente, errou, não viu o lance. É engraçado, a gente ouve o comentário: "Como é que não viu esse lance?". Vai olhar de primeira. É muito rápido o futebol, para isso tem o VAR. Para ver (bola) dentro ou fora, uma entrada, um gol de mão.
Primeiro, tem que controlar aqueles ânimos ali para poder se comunicar com o VAR, ver a imagem. Você está correndo, com o batimento (cardíaco) lá em cima, com 95 minutos de jogo, desgastado mentalmente, fisicamente, um monte de gente na sua orelha falando... Você pode, sim, errar. Por isso que, às vezes, os árbitros mais experientes têm uma certa facilidade em observar a tela do VAR e tomar a decisão correta. [...] O mundo ideal é que fosse tipo Europa, Eurocopa. VAR, faz o sinalzinho lá e não tem ninguém do teu lado. Mas aí é um lorde inglês contra um alemão e ninguém fala com você. A gente está numa cultura latina e tem que saber lidar com isso.
OP - Quando o VAR recomenda a revisão na cabine, o árbitro vai condicionado a mudar a decisão de campo? Ou existe uma orientação para "limpar" a mente?
Marcelo - Nós somos seres individuais. O ideal é que você limpe a sua mente. Tem que limpar a mente. Se você foi chamado para uma revisão no monitor é porque alguma coisa aconteceu. Não adianta querer bancar a sua decisão e começar a pedir imagem que vai... "Não, para confirmar que eu estou no campo, eu acertei". O mundo ideal é ir com a mente limpa. Obviamente que tem as experiências, e a arbitragem é muito mental.
Tem alguém que consegue estar bem, tranquilão, para ir lá, e tem outros, mais imaturos, que às vezes não. Agora, isso são experiências, (a maturidade) só vem com a vivência. Muitos acharam: "Ah, vai ser fácil agora. O cara errou e vai lá no VAR". Mas e aí, vai manter ou tirar a decisão? Afinal de contas, é um pênalti, um cartão vermelho, uma mão na bola. Como é que faz? Ali decide uma classificação, decide a tua carreira também. Imagina, você vai no monitor: "Não, eu estou vendo que pegou no peito primeiro, não pegou na mão, vou bancar". Tua carreira vai embora. Você vai criar um rótulo. Você tem que treinar para isso e sua mente tem que trabalhar para isso.
OP - Você ainda tem esperança de regulamentação e profissionalização da arbitragem? Existe um processo de SAF no Brasil, jogadores com altos salários, mas a arbitragem segue na mesma.
Marcelo - Eu tenho esperança, né? Esperança é a última que morre. Acho difícil, porque, cada vez mais, a informalidade está em alta no País, as terceirizações estão em alta. Primeiro que temos que ter leis específicas para poder profissionalizar o árbitro. O árbitro está lá como profissão, mas não tem direitos, não tem deveres, não tem nada. Um exemplo: o Marcelo para de apitar ano que vem, tenho 30 anos de carreira. Aí eu vou ficar aposentado agora pela arbitragem ganhando quanto? Não tem. E daqui a pouco são 300 Marcelos de Lima Henrique. Quem vai pagar essa conta? Vai ser mais um rombo no nosso INSS? Porque são muitos aposentados. Aí, de repente, o Marcelo está com 32 anos de idade, tem uma lesão permanente, não pode apitar.
Então, não temos ainda regulamentação específica. Quando é que nós vamos ter? Quando tiver boa vontade do poder público e quando o futebol todo ver que isso é importante. Não quando seu time toma um gol impedido, sem VAR, igual à Série C. Aí não. Tem que olhar isso de maneira grandiosa, pensando no futuro. Como é que uma entidade hoje... A Federação Cearense vai profissionalizar 20 árbitros. Como é que faz? Profissionaliza e quem paga a conta? Daqui a três anos eu vou ter aposentado, daqui a pouco tem um rombo que o futebol não vai cobrir.
Nós poderíamos, sim, ter contratos anuais, um ano, dois anos. Mas o futebol — clube, imprensa, torcedor — tem que entender que quem está ali em alto nível tem que ser profissional. Mas não é profissional só para a gente ganhar um salário. Óbvio que eu quero ganhar R$ 100 mil por mês, igual ao craque aí de um time, mas é ter condições profissionais: ter um CT para treinar, não ter que comprar o seu melhor tênis, não ter que ter o seu fisioterapeuta... É ter todas as condições.
Apitei ontem Ceará x Fortaleza, amanhã vou fazer regenerativo em tal academia, tenho meu fisio, depois posso marcar uma hora com a psicóloga para conversar com ela, já tenho meu cardápio alimentar... Condições profissionais, como qualquer profissional quer ter. O futebol tem que encarar isso. Enquanto a gente não encarar isso, não adianta torcedor, dirigente, jogador, depois de um erro: "Tem que profissionalizar". O discurso é o mesmo de sempre. Enquanto o futebol não abraçar isso, com uma legislação específica, que tem que vir, a gente não vai caminhar. Agora, eu tenho esperança, sim.
OP - Qual avaliação você faz do nível da arbitragem atualmente?
Marcelo - Eu peguei desde o início, quando a gente não tinha uniforme, não tinha treinamento. A arbitragem do Brasil, hoje, é muito preparada, muito mais preparada que antigamente. Se você for perguntar a dez torcedores aqui fora, eles vão falar que é horrível, que é ridícula, que é isso e aquilo.
Se você for ver final de semana agora, pode cravar, pegar dez jogos da (Série) A e dez da B, a gente vai ter dois, três erros. E o cara teve 500 acertos. A arbitragem vai errar. Se você for pegar os jogos de Série A e Série B, nós vamos ter dez, 15 jogadores perdendo gol na pequena área, dez goleiros falhando, mas se o árbitro tiver um erro, a arbitragem é uma porcaria. É cultural.
Mas a arbitragem teve, sim, um grande avanço. Ela treina muito, é muito preparada, tem reunião prévia, vê vídeo, faz feedback, estuda, tem psicólogo... Tem isso tudo, só que eu entendo o torcedor. O torcedor é paixão. E hoje tem uma coisa que aflorou mais ainda para falar de erro de arbitragem: a imprensa é setorista. Hoje tem canais de YouTube de um clube, repórteres que só são daquele clube. O cara só fala do clube tal. E ainda temos setoristas estaduais, que só falam para o Estado, então todo mundo está contra o Estado dele. Isso existe muito no Rio e em São Paulo, no Sul isso é muito aflorado. Isso dá a sensação sempre, para aquele Estado... Porque o cara vê YouTube, vê TV, os programas locais, e sempre vai pegar o erro do árbitro. E a gente entende, é assim que funciona.
Óbvio que a arbitragem tem que melhorar muito, só que é muito mais preparada do que no ano passado. E no ano que vem vai estar mais preparada ainda. Marcelo, é pouco para o futebol brasileiro, que está em cifras milionárias, com SAF? Eu também concordo que tem que fazer muito mais, trabalhar muito mais. A gente tem trabalhado muito, mas os clubes, as Federações, a mídia, os jogadores, os dirigentes, todo mundo tem que entender que a gente tem que caminhar junto para crescer junto.
Tanto a arbitragem brasileira está num nível alto, não é por acaso: na última Copa do Mundo (em 2022), levamos duas equipes de arbitragem, o (Raphael) Claus e o Wilton (Pereira Sampaio). Final da Copa América agora, o Claus apitou e com excelência. Olimpíada agora, nós tivemos a Edina (Alves Batista) junto com o (Ramon) Abatti e toda a sua equipe. Então, é sinal que o nível não é tão ruim como aqui, internamente, a gente botou isso no coração. Mas eu entendo o torcedor. Faz parte do jogo, tem que saber conviver com isso.
OP - Por ter atuado na posição, você observa mais os goleiros nos jogos? Teve situação curiosa com algum?
Marcelo - Eu olho muito os goleiros, e o Dida — Milan, seleção brasileira, campeão do mundo — estava jogando na Portuguesa-SP, Portuguesa x Grêmio. O Dida fez uma defesa tão bacana, aquela coisa de goleiro de outro nível. Quando acabou o jogo, ele vinha andando, quietão que ele é, aí eu saí do meio-campo e fui até o encontro dele e falei: "Cara, eu sou teu fã demais, tu agarra demais". Pô, eu tinha que falar isso para o Dida, eu fui goleiro. Ele falou: "Professor, vou te falar uma coisa, não é porque eu empatei o jogo, não: tu é bom, cara. Apita bem, parabéns, deixa o jogo fluir". "Cara, tu me deu um troféu agora", aí ele tirou a camisa para me dar, do nada. Aí eu falei: "Não, não, faz isso aqui não". Aí ele disse que ia mandar uma camisa para mim.
Uma história que me marcou muito com o Dida. Ele não vai lembrar disso, talvez lembre. Eu tenho uma outra bacana também: fiz um Grêmio x Juventude, ano passado ou retrasado, e o Grêmio ganhou do Juventude por 1 a 0. O goleiro do Juventude, Douglas Friedrich, acho que agora está no Avaí, ele perdeu de 1 a 0, acabou o jogo, ele veio falar comigo: "Marcelo, parabéns, que jogaço. Bora trocar de camisa?". Eu falei: "Douglas, eu posso trocar, mas aqui não". Ele queria trocar no campo. "Não, aqui no campo não dá. Até porque você perdeu, a tua torcida não vai achar legal".
Aí beleza. Quando eu saí do túnel, na Arena do Grêmio, ele estava lá. Dei a minha camisa para ele. Não falei para ele que só tinha aquela camisa preta, porque a gente ganha uma camisa de cada. Dei para ele, apitei o restante do Brasileiro só com camisa amarela, azul e vermelha. São essas conexões que a gente vai fazendo, porque são pessoas de bem. A gente entende uma palavra ou outra, são pessoas de bem que estão ali.