A anfitriã recebe efusivamente quem está a procura de leituras. Orienta o caminho entre as estantes. Referências de Frida Kahlo, homenagens ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, flores, posters. O Plebeu Gabinete de Leitura, no Centro, é bem à maneira de sua criadora, Adelaide Gonçalves. Pós-doutora em História, a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) quer fazer da biblioteca cada vez mais do povo.
A dedicação ao ensino e o empenho para libertar as pessoas por meio da força das letras são frutos de sementes plantadas lá em Tauá, cidade de origem. Os pais e os professores que teve ao longo da vida incutiram na menina o amor pelos livros. Em entrevista ao O POVO, Adelaide rememora os passos da própria trajetória. Feminismo, história social das ideias, ativismo social, a imprensa dos trabalhadores. Com preocupação, ela diz ser preciso aliar "esperança e o pessimismo" para compreender o contexto político atual e exercer "uma resistência ativa". Atualmente, ela volta os olhos para estudar o fascismo, motivada pelo que chama de "projeto de destruição do conhecimento, da ciência e da universidade pública".
O POVO - Professora, como foi sua trajetória em Tauá?
Adelaide Gonçalves - Sou de Tauá, na região dos Inhamuns. De lá, de certo modo, nunca quis sair. No sentido do respeito às origens, de compreender o que é o Sertão dos Inhamuns, de qual é aquele caldo de história, do peso do latifúndio e das grandes guerras de famílias naquela região em tempos idos. Minha família toda é de lá, minha mãe continua vivendo lá. A ela, devo imenso os meus estudos, essa devoção que os pais têm em relação a serem provedores da vida intelectual de seus filhos, do seu crescimento como estudantes. Devo tudo ao pai e à mãe nesse sentido. Com eles dois é que me nutri desse enorme apego ao livro, à leitura e ao estudo. Sou tributária, portanto, dessas raízes e dessas origens. Sempre pago esse tributo como posso, retornando à Cidade, escrevendo sobre.
OP - Que aspectos ou experiências da sua infância foram importantes na sua carreira e na sua relação com a leitura? Você fala que seus pais influenciaram muito nisso...
Adelaide - A mãe, o pai e os excelentes professores que tive. Eu penso que sou uma mulher de muita sorte nesse sentido do ensino, da educação. Foi em Tauá, com uma professora notável de língua portuguesa, que aprendi a escrever redações. A irmã Mendes, que já se foi, era feroz. Feroz no sentido do zelo pela escrita, pela forma vernacular, não no sentido de ter a língua culta como dogma, mas no amor pelas letras, pela leitura. Aprendi a ir à biblioteca, a entender que os livros encerram e traduzem essas maravilhosas utopias, essas histórias magníficas. Uma coisa que refiro ainda desse período da infância e primeira adolescência é que fui auxiliar de biblioteca naquela escola, uma responsabilidade a mais para tão pouca idade. Afinal, as crianças não devem trabalhar de modo algum. Mas ali não era um trabalho, era um convívio com os livros. Foi ali que eu compreendi a força da imaginação, da criação, do pensamento. Quantas vezes era difícil sair de dentro das páginas de Monteiro Lobato. Desse período, eu ressalto sempre essas figuras memoráveis que me ensinaram a aprender, que me levaram a compreender que só se ensina aprendendo.
OP - O que você mais gostava de ler?
Adelaide - Você tem que dimensionar o que era uma biblioteca naquela escola, quais eram os livros canônicos, por assim dizer. Por óbvio, ali eu tive por primeira vez o contato com a literatura brasileira, (José de) Alencar, Graciliano (Ramos), Raquel (de Queiroz), Machado (de Assis). Alguns de pouca compreensão para mim no período. Mas um portento é o que vai ser uma semeadura dos livros. Ler "Robin Hood" é uma coisa que não se esquece. Mais adiante ler "Germinal", de Émile Zola; "O Povo do Abismo", de Jack London; "A Mãe", de Máximo Gorki. São leituras que não se esquece. Poderia passar a tarde toda falando de livros e não gostaria que isso parecesse pedante. É um enorme respeito pelos livros nomeadamente no tempo em que vivemos no Brasil, como em outras latitudes, em que os ódios se sobrepõem às letras, em que o anti-intelectualismo é dado como algo a prosperar. É tarefa nossa, hoje, mais e mais dizer que os livros mudam a nossa vida, nos ajudam a mudar o mundo. Um dos meus grandes mestres nesse sentido, já noutro tempo, é Antônio Cândido, grande pensador brasileiro. Com ele é que aprendi magnificamente que os livros e o direito à literatura nos retiram da servidão e nos fazem compreender os horrores que a servidão do sistema do capital nos impõem.
OP - Como foi sua chegada à Fortaleza e sua entrada na universidade?
Adelaide - Eu fui estudante da UFC, ingressei no curso de História. Mas fui sempre uma estudante trabalhadora. Logo que ingressei fui tentando buscar programas acadêmicos que pudessem me realizar a provisão material e foi um tempo muito bom. Eu vivi a universidade por dentro na medida em que morei em Residência Universitária, em que fui comensal diária do Restaurante Universitário. O Restaurante Universitário, para os que acham que é só um lugar para comer, ah, não compreendem o que é a juventude e o que é o lugar do convívio. É onde se intercambiam experiências, onde os convites chegam, onde as transgressões também podem começar, onde o vocabulário do protesto se pode aprender. Assim como também morar na Residência Universitária foi muito bom. Ingressei na História e daí em diante foi uma vida entre os livros e entre o anúncio de uma nova possibilidade de aprender a partir do desejo e da possibilidade de alterar as realidades de opressão. Comecei ali também na graduação a aprender com outros a militância social. Isso foi de grande relevo. Talvez tenha sido o maior aprendizado nesses meus tempos como estudante de graduação. Tive grandes professores de quem tenho um afeto perene. São vários. Quero destacar a professora Luiza de Teodoro. Sem dúvida, de traço marcante pela sua qualidade intelectual, pela sua firmeza nas convicções. Com ela que pela primeira vez leio Paulo Freire. Uma menina de 17 para os 18 anos. Aquilo foi marcante na minha vida e na minha experiência. Muito jovem compreendi o sentido de um vocabulário da libertação, compreendi a escrita de um homem, como diria Carlos Rodrigues Brandão, um menino que lia o mundo. É isso que Paulo Freire foi e é. E eu assinalo isso aqui nessa conversa porque nos dias que correm no Brasil temos o primado da ignorância, o assento no anti-intelectualismo e uma condenação pública do intelectual Paulo Freire e de sua obra por alguns que são flagrantemente ignorantes e que nunca o leram.
OP - Na universidade, você iniciou o contato com o Movimento Operário e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. O que motivou sua inserção nessas causas?
Adelaide - Foi muito bom no sentido de fortalecer o próprio sentido do que poderia vir a ser na formação de uma militante historiadora ou de uma historiadora militante, para usar uma expressão que cabe magistralmente de um grande historiador inglês do século XX que é Edward Thompson. Ainda éramos muito jovens e éramos mais mulheres naquele primeiro coletivo militante que participei, no final dos anos 1970. Filhos nas ideias, portanto, dessa geração. Vários ceifados com a sua própria vida pela terrível Ditadura Civil-Militar que durou para mais de 20 anos no Brasil. Então, nós estávamos ali dando nossos passos iniciais da militância, recebendo o influxo poderoso das ideias daqueles lutadores contra a Ditadura. Me lembro tão bem de ter conhecido essas figuras notáveis que faziam o Movimento Feminista pela Anistia, que faziam um jornal com todo o espírito do coletivo que está realizando um jornal para contraditar, portanto, as ideias da Ditadura e da opressão. Era o jornal "Mutirão".
OP - Foi nessa época que você começou a ser também uma comunicadora?
Adelaide - Veja, não me percebo com essa palavra. Não me vejo nesse sentido. Sou professora, militante social, pesquisadora no campo da história social, tenho tido muito afinco em tentar me tornar historiadora. É nesse sentido que eu me vejo. E, assim, enfeixando todos esses modos que fui construindo, ajudada por muitas pessoas, uma leitora é o que eu sou. Uma leitora é o que eu quis ser. É o que eu sou hoje fundamentalmente. Uma leitora que não é solitária, sou uma leitora em coletivos. Por isso, tantos cursos, tantas conversas, tantas palestras. E, por isso, esse esforço de realizar o trabalho junto aos movimentos populares. Nesse sentido, ainda como estudante, depois já como professora da UFC, aprendi imenso no trabalho militante quando tive uma parcela de empenho na criação do Partido dos Trabalhadores aqui no Ceará. Fui inúmeras vezes à região de Crateús. Quantas reuniões noite adentro, finais de semana. Foi ali uma grande sala de aula debaixo das árvores, nos bancos duros de madeira em salões dos sindicatos de trabalhadores rurais que eu compreendi a força profética das Comunidades Eclesiais de Base, quando compreendi a arrebatadora palavra profética de dom Antônio Batista Fragoso, que era o bispo daquela região. Ele foi perseguido pela Ditadura como tantos padres, freiras, leigos, homens e mulheres naquele período presos, alguns expulsos do Brasil. Esse período talvez tenha sido o período de maior riqueza porque eu tive um contato direto com camponeses, trabalhadores rurais, homens e mulheres que a história urbana ou que uma narrativa convencional diria deles analfabetos. Ledo engano e farta ignorância. Grandes conhecedores da vida, da realidade e alcançados pelo desejo e pela utopia de mudar o mundo, de construir um mundo de fartura. Foi ali por primeira vez que, fora dos livros da universidade, eu compreendi o que é a luta por Reforma Agrária, o que é o peso da escravidão por dívidas, o peso da servidão no rabo da enxada, o peso do latifúndio e o desejo imenso de alterar essa realidade. Aprendi muito e devo imenso a alguns a quem hoje ainda encontro quando volto em alguns momentos àquela região. Eu diria que em Crateús, Ipueiras, Tamboril, Monsenhor Tabosa, Novo Oriente, Novas Russas, Tauá, Parambu talvez eu tenha conhecido os mais notáveis leitores do mundo e da realidade. Foi tudo muito bonito. Claro, imensas dificuldades. Em nome de Seu Lourival e Totonha, de Tamboril, homenageio todos os que conheci. Maurício Cremaschi, um grande padre naquela região, padre Alfredinho Kunz, um grande profeta naquela região. E, como já falei, dom Antônio Batista Fragoso, que nunca ensinou aos seus paroquianos, seus diocesanos a resignação. Muito ao contrário, com eles aprendeu que a fome, a seca, a pobreza não são naturais, são sociais e resultam das injustiças do capital.
OP - Como era ser uma mulher feminista nesse contexto de Ditadura?
Adelaide - Eu aprendi o verbo do feminismo em seguida.O feminismo veio com uma grande força na minha formação. Tive um percurso muito bom nas leituras do feminismo radical. Editamos uma obra de 1919 da Maria Lacerda de Moura, uma feminista radical brasileira. Foi muito em razão do que é a pesquisa. Encontrei em um jornal de Fortaleza, o jornal "O Ceará", uma correspondência trocada entre as jovens escritoras periodistas em formação Rachel de Queiroz e Maria Lacerda de Moura. Você não consegue imaginar a alegria da pesquisadora. Não uma alegria avara de quem está garimpando, pois não sou garimpeira e tenho ódio ao garimpo que destrói a natureza e os trabalhadores no norte do País. Mas a alegria de encontrar esse texto de um feminismo radical. Me dediquei à leitura do feminismo radical como Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. Calou muito fundo no meu espírito a leitura do feminismo pioneiro do século XVIII de Mary Wollstonecraft, uma grande obra ainda no século XVIII que só muito recentemente foi traduzido no Brasil. Estou preparando um curso com mulheres onde vamos estudar o fascismo no tempo presente e a sua deletéria repercussão nos direitos e na vida das mulheres trabalhadoras. É do que me ocupo hoje, de estudar para compreender o que se passa no tempo presente. Eu vejo com muito assombro o que se passa no tempo presente. Mas um assombro que não é imobilizador. Eu integro ou tento integrar os coletivos e as fileiras daqueles que entendem que a hora é, portanto, de resistência ativa, de contraditar o programa fascista em curso no Brasil.
OP - Quais as principais dificuldades da sua atuação nesses períodos?
Adelaide - Veja, são as dificuldades de uma geração, de um tempo. Mas, hoje, eu prefiro mais falar dos apoios, das trocas, das solidariedades. Prefiro evocar todas as pessoas que me ajudaram a chegar até aqui e a ter certeza que devemos continuar. As dificuldades, por certo, são dificuldades de ordem material. Em outros momentos, de ordem política, de ordem existencial. Uma coisa muito boa na minha formação, ainda como estudante, foi quando passei dois anos dando aulas, à noite, em uma associação de moradores na rua São Cura d'Ars, no enclave entre Cristo Redentor e nossa Senhora das Graças. Fazendo um trabalho que não tinha ligação institucional, mas um trabalho empenhado, comprometido. Não gosto da expressão "trabalho voluntário". Essa experiência foi de enorme valia, tinha 20 anos de idade. Todos os alunos daquela sala muito modesta eram muito mais velhos do que eu. Mas não eram mais velhos porque tinham mais idade, eram mais velhos porque eram muito sofridos, tinham no rosto e no feitio dos corpos o peso do sofrimento, do trabalho desde a infância. O que eu vi de muito bonito era como juntar as palavras a partir das vivências geradoras suscita o apreço pela liberdade. Então, ali, de forma muito modesta e despretensiosa, eu tentava homenagear Paulo Freire, tentava dizer o quão grande era seu projeto de educação como prática de liberdade, o quão grande era a sua perspectiva de entender o móvel da luta contra a opressão pela palavra geradora. Já no final dos anos 1990, posso dizer que se deu um dos melhores encontros da minha vida, encontro no sentido da existência, com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Talvez tenha sido dos meus melhores encontros. Tento honrar muito esse encontro, sendo uma professora comprometida com a pesquisa histórica, orientando trabalhos sobre as lutas camponesas no Nordeste do Brasil, tentando compreender os liames históricos entre a bela história das ligas camponesas e o MST, esse movimento que nasce nos finais dos anos 1970. A História do Brasil, eu aprendi e ensino, é a história dos massacres republicanos. Canudos, Contestado, Caldeirão, Trombas, Formoso e, em 1996, Eldorado dos Carajás. O MST completa 35 anos em 2019 e é, de longe, o movimento popular mais criminalizado no Brasil.
OP - Considerando o cenário nacional de cortes na educação e na pesquisa universitária, qual o papel da educação e da leitura?
Adelaide - Não como modelo, mas mesmo como prática, uma inspiração, o próprio MST. Seria tão bom que nossas juventudes universitárias tivessem mais estágios de vivência nas escolas do campo. Ali se aplicam os conhecimentos da agroecologia, se faz um ensino da melhor qualidade, se tem um enorme apreço pelo estudo, pelo livro, pela literatura. A Escola Nacional Florestan Fernandes, erguida pela solidariedade internacional, da bela ação entre Chico Buarque de Holanda, José Saramago, Sebastião Salgado. Você tem um processo em curso com a construção de utopias concretas que passam pelo estudo, pelo zelo ao pensamento social brasileiro. Para os tempos que correm, é preciso não perder a força da indignação, transformar a indignação em combustão para o debate de ideias, para a semeadura tão necessária. É preciso alimentar a indignação, ter enorme esperança. Os tempos são de pessimismo, mas temos que aliar a esperança e o pessimismo para compreendermos que o que se passa no Brasil não é exclusivo do Brasil. Não é um ponto fora da curva. Não é uma coisa que se explica apenas a partir de uma conjuntura eleitoral com os enormes conteúdos de fraude acionada pelas redes antissociais. Não é apenas isso. Os tempos que estamos vivendo são do retorno do fascismo em vários lugares do mundo. Nós temos que estudar, retomar essas grandes leituras de como não começou ontem, nem antes de ontem. Essa conjuntura se abre desde 1970, com a sangrenta Ditadura de Pinochet, no Chile, e os modelos ultraliberais e assassinos de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos. A receita é fruto do autoritarismo e dos programas ultraliberais que, portanto, querem destruir o conhecimento, querem destruir uma ciência que seja comprometida com a soberania nacional. Esse ex-capitão fascista é um antipresidente - expressão da jornalista Eliane Brum. Ele tem esse modelo, antipopular, anti soberania nacional, anti povo, anti-intelectual por formação e por devoção. Em relação às universidades públicas, eu não poderia dizer que estamos enfrentando tempos de cortes e contingenciamentos. Esses são eufemismos que querem encobrir um projeto determinado de destruição do conhecimento e da ciência e da universidade pública. Eu não creio que essa juventude, que construiu e aprendeu em coletivo a construir as novas agendas libertárias acerca do seu corpo, da sua história, e que essas pautas serão varridas a partir das componentes fascistas desse governo. A resistência ativa se sobrepõe.
OP - Você critica muito as redes sociais como ferramentas desse processo...
Eu não tenho Whatsapp, nem Facebook, eu abomino as redes antissociais. Acho esses conteúdos deletérios. Acho que esses caminhos são muito frutíferos ao ódio disseminado pelo fascismo porque eles se dirigem diretamente a indivíduos atomizados, isolados. Que se bastam a partir desses caminhos. Eu acho que temos que fazer da rua nosso lugar de aprendizado. Temos que olhar a destruição tão veloz em apenas sete meses. Não há projeto de País, não há compromisso com o povo. Sejamos pois grandes denunciadores da misoginia, da homofobia, do racismo. Nós podemos semear tanta coisa bonita no mundo. A hora é de urgência e de resistência. Vejamos as últimas medidas em relação à cassação dos direitos de liberdade aos estudantes da Unilab, uma clara perseguição aos direitos dos transgêneros, uma comunidade não apenas excluída, mas historicamente criminalizada pelo atual governo. E as medidas flagrantes de cunho ultraliberal e privatizante do mal chamado projeto Future-se do Ministério da Educação. Tudo isso colabora no sentido de aprofundar as medidas de cunho não apenas autoritárias mas claramente fascistas. Entretanto, o chamamento não é de uma leitura passiva, é de organização em coletivos de resistência ativa. Nossas consciências devem ser interpeladas pelas grandes questões que atravessam o tempo presente no Brasil. Vamos lembrar de duas delas neste momento. A primeira é: quem mandou matar Marielle Franco e por que os crimes dos milicianos seguem impunes na atual conjuntura? A segunda é por que Lula continua preso quando se sabe que a operação policial da Lava-jato é uma das maiores fraudes judiciais da história do Brasil? Portanto, pela memória de Marielle e pelo desfraldar da bandeira de Lula Livre devemos interpelar nossa consciência histórica.
OP - Você viaja muito, conhece culturas diferentes, visita as mais diversas bibliotecas. Como, a partir dessas experiências, você analisa a nossa relação com a própria história e a conjuntura atual?
Adelaide - Eu viajo muito menos do que aquilo que gostaria. Mas aprendi que é possível ser viajante da utopia. Eu viajo também pelo século XVIII, XIX. Na viagem no sentido físico dos deslocamentos tem sido muito por dentro desses muito frutíferos intercâmbios. É possível dizer com preocupação que o ataque às universidades públicas não é apenas no Brasil, se dá em outros lugares. Aqui temos que lutar porque as conquistas são muito recentes e ainda precisam avançar muito. De modo que o que nós temos é fazer esse bom combate no plano das ideias. Primeiro, dizendo com todas as letras o que se passa no Brasil. Não podemos ter pejo e certas cautelas metodológicas ou teóricas. Estou agora completamente dedicada a leituras sobre o fascismo. O que vi nesse momento e me deixa animada, não no sentido raso da palavra, mas no sentido juvenil, é o enorme lugar do Brasil nos debates internacionais. Isso me encheu de esperança. Investigadores na Ciência Política, na Antropologia, na Sociologia, na História, Filosofia têm se dedicado, de fato, a compreender o que se passa no Brasil. Das últimas viagens, há também uma força que pode muito nos ajudar, o internacionalismo, a solidariedade internacional. Mas é uma nova capa de solidariedade internacional, essa que se faz cruzando pesquisas, fazendo estudos comparados, tentando reanimar o intelectual público.
OP - O Plebeu é quase como que uma extensão sua. Bem a sua maneira pela diversidade de cores, referências, autores. Como foi a concepção do Plebeu? Você acha que ele atingiu esse objetivo?
Adelaide - O Plebeu Gabinete de Leitura existe há quase sete anos, no Centro da Cidade. Como acervo, como biblioteca, tenta seguir o modelo das bibliotecas sociais como eram pensadas nessa utopia concreta dos salões operários, libertários, da leitura radical do século XIX. É um acervo que fui recolhendo ao longo da vida, é atualizado todo mês. Hoje é parte e filho dileto da Biblioteca da Associação Cearense de Imprensa, que alberga esse acervo. Homenageamos, incluso, a duas pessoas. A primeira é Nilton Almeida, diretor de bibliotecas da entidade. Pensamos em vir aqui ao Centro porque é um referente social do nosso apreço. É claro que, em termos de desejo e de utopia, eu gostaria imenso que tivéssemos salões de leitura nos bairros dessa Cidade, que as juventudes tivessem o acesso aos livros e à leitura. Ele é precisamente essa aposta na possibilidade no campo dos possíveis, na possibilidade dos livros e da leitura empenhada. Ademais preciso ressaltar que há aqui um desejo de tornar esse lugar mais frequentado, visitado pelos trabalhadores do Centro. O Plebeu, como o nome indica, é plebeu. Na disposição e na presença nesse lugar social. O nome foi dado de presente por Izabel Gurgel, uma frequentadora perene.
OP - Você citou que está pesquisando o fascismo. Que outras pesquisas faz?
Adelaide - Em contato com colegas grandes investigadores em Portugal e Espanha estou muito enfronhada nessas leituras como necessidade de aprofundamento para me apropriar com maior vigor dos estudos que vêm sendo feitos em vários lugares do mundo. As pesquisas que venho realizando, desde muito, voltei as minhas vistas para a história do impresso, para a cultura impressa, os jornais, os jornais de trabalhadores, os jornais operários, os jornais feitos por dentro da luta camponesa. Isto foi num crescendo para a história do livro e da leitura insubmissa. Nesse momento, me dedico à leitura das formas de leitura desde o Brasil dos trabalhadores sem terra. Neste momento, no Maranhão, temos para mais de 20 mil pessoas participando de um muito bonito programa de leitura de alfabetização nessa chave de aprender a ler o mundo para mudar o mundo. Então, as minhas pesquisas são muito suscitadas também a partir das necessidades e desse intercâmbio que vou estabelecendo com esses bons amigos e amigas. De todo modo, a última palavra que quero dizer é da minha imensa gratidão aos estudantes. Eu não teria feito as pesquisas, não teria me empenhado no meu perfil militante como pesquisadora social, como historiadora social não fosse a vontade e o desejo que encontro em sala de aula. Ensinei o que aprendi a partir dessas trocas, desse convívio.
Acervo aberto
O Plebeu Gabinete de Leitura, em funcionamento há sete anos, é localizado na Rua Floriano Peixoto, 736, 5º andar - Centro (na Sede da Associação Cearense de Imprensa). A biblioteca é aberta das 8 às 17 horas, de segunda à sexta-feira.
Herança
Adelaide é a filha mais velha de dona Vilanir e de seu Cesídio. O pai era barbeiro, um homem de poucas letras, mas de imenso amor aos livros e aos pássaros. "Os salões das barbearias são, por definição, um lugar de convívio, conversa e de 'leitura em voz alta' no sentido de onde se pratica um 'jornalismo falado'. Essa expressão sequer é minha, é de Alberto Galeno, um velho e respeitável escritor comunista de Fortaleza", ela explica.
Bastidores
A HISTORIADORA recebeu com entusiasmo o convite para a entrevista. Apesar disso, a primeira tentativa de conversa foi inviabilizada por uma viagem de última hora para realização de atividade acadêmica.