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60 anos após golpe, presença dos militares na política ainda causa instabilidade na democracia
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60 anos após golpe, presença dos militares na política ainda causa instabilidade na democracia

No sexagéximo aniversário do Golpe Militar, o País ainda se depara com uma questão central: as várias dimensões de interferência das Forças Armadas na democracia brasileira. Por vezes, estes movimentos dispõe de respaldo popular
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 Bolsonaro, então presidente, com comandantes e ministros das Forças Armadas (Foto: EVARISTO SA / AFP)
Foto: EVARISTO SA / AFP  Bolsonaro, então presidente, com comandantes e ministros das Forças Armadas

O golpe militar de 1964 completa 60 anos neste domingo, 31 de março, no momento em que generais brasileiros são investigados pela tentativa de outro levante golpista. O de 1964, exitoso em cumprir o objetivo de retirar João Goulart da Presidência, instaurou um regime que permaneceu no poder por 21 anos e não teve responsáveis punidos. O mal-sucedido, de 2022-2023, é investigado pela Polícia Federal (PF) com o desenrolar da operação Tempus Veritatis, nome em latim que significa “hora da verdade”. A investigação mira o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), assim como membros de seu governo. O capitão reformado do Exército levou os militares de volta ao poder, em 2018, daquela vez pela via eleitoral. Mas, os sinais apontam que ele não estaria disposto a sair da mesma maneira.

A se confirmar a linha de apuração da PF, a trama que visava a manutenção de Bolsonaro no cargo, com ápice na depredação de Brasília em 8 de janeiro de 2023, foi engendrada com a adesão de militares do alto escalão das Forças Armadas. Participaram os generais cearenses quatro estrelas Estevam Cals Theóphilo e Paulo Sérgio Nogueira, este ex-ministro da Defesa. Outros dois de mesma patente foram Walter Braga Netto, candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro na campanha presidencial, e Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) sob Bolsonaro.

A Guerra do Paraguai (1864-1870) foi o marco da organização do Exército, deflagrando o processo que levaria à Proclamação da República, em 1889. Os dois primeiros presidentes foram militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. O poder foi devolvido aos civis, com duas exceções de militares eleitos presidentes pelo voto direto — Hermes da Fonseca (1910-1914) e Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). Ao longo da primeira metade do século XX, fomentou-se a idealização de um governo militar, a partir da ideia de que as Forças Armadas seriam as únicas capazes de colocar ordem no Brasil.

"O Exército foi uma instituição que assegurou, pela violência, o regime escravocrata. Nesse processo do Brasil imperial, há uma série de acontecimentos, sobretudo com o fim da Guerra do Paraguai, que mostram processo de decadência do modelo escravocrata. Desde 1850, já havia o início da construção de uma imagem dos militares como superiores moralmente às elites oligárquicas, aos políticos liberais. A imprensa militar na década 1850 passa a ajudar a construir essa imagem de superioridade em relação aos civis", explicou ao O POVO Rodrigo Lentz, professor de Ciência Política e autor do livro República de segurança nacional – Militares e política no Brasil (Expressão Popular).

Pesquisador do Instituto Tricontinental e advogado, Lentz destaca haver uma dimensão social decisiva para que as Forças Armadas mantenham seu traço autoritário: as classes dominantes as enxergam como braço armado da manutenção ou da alteração de uma ordem vigente. Na esteira dessa compreensão vem a militarização da política.

“É a dimensão social do Exército que produz essa função: ‘Se for militarizada a escola vai melhorar’. O Exército brasileiro levando água onde as populações não têm água, levando telhas. Nós temos ações de defesa civil onde o Exército está embrenhado. Nós temos um processo social que legitima isso”, adiciona o pesquisador.

“Há uma mentalidade de que alguns assuntos devem ser de autonomia de militares, de que eles são uma força política legítima e de que devem ser incluídos como grande partido político. Por fim, esse cenário produz a política do atual governo que não compreende que o mundo não é mais o mesmo e que usa a mesma estratégia com os militares. Essa estratégia que deu errado continua hoje”, complementa.

Ao final da ditadura militar, a presença política das Forças Armadas passou a ser condenada, resultado dos desgastes das décadas de poder e repressão. Seguiu-se uma geração de governantes que haviam sido perseguidos do regime: Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff.

Mas, antes mesmo da eleição de Bolsonaro, havia sinais de recrudescimento da intenção de interferir em questões políticas. Há seis anos, em 2018, o então comandante do Exército Brasileiro, general Eduardo Villas Bôas escreveu no Twitter mensagem ao Supremo Tribunal Federal (STF) em tom de ameaça. Os ministros se preparavam para julgar o habeas corpus preventivo impetrado pela defesa do réu Luiz Inácio Lula da Silva, atual presidente do Brasil. Formou-se maioria de 6 a 5 pela negação do benefício ao político, que seria preso em 7 de abril por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

"Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais", escreveu o militar no dia 3 de abril de 2018, na véspera do julgamento. Mais tarde, a condenação seria anulada por atuação parcial de Sergio Moro, conforme entendeu o STF.

A partir de 2019, os militares passaram a ocupar o centro do Poder Executivo como somente havia ocorrido de 1964 a 1985, na ditadura. Em 7 de março de 2019, na cerimônia de aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais no Rio de Janeiro, o então presidente Bolsonaro afirmou que "democracia e liberdade" só existem quando suas respectivas Forças Armadas assim o querem. Hoje, confrontados com as investigações sobre planos golpistas, os bolsonaristas passaram a pregar a aprovação de anistia aos acusados de crimes contra a democracia.

Para Lentz, o passado autoritário brasileiro deve ser confrontado. Contudo, em nome da composição e da desmobilização de uma categoria abertamente hostil ao que o atual governo representa, o presidente Lula aposta no apaziguamento sem levar adiante reformas que mexam com a autonomia militar.

Questionado se a conduta conciliadora de José Múcio Monteiro, ministro da Defesa de Lula, permite projetar a tese da anistia ganhando corpo, o pesquisador responde negativamente. “Veja, Múcio é um funcionário do presidente da República. O Múcio se comporta com anuência do presidente. Evidente que o Múcio tem, por decisão do presidente, um perfil de interlocutor com uma força que o presidente tem como absolutamente hostil a ele. O Múcio vai ter sempre essa postura de porta-voz e um negociador do governo e vice-versa”, analisou Lentz.

“Esses movimentos seguem essa tradição de impunidade a militares de alta patente. Acontece que 8 de janeiro instaurou algo inédito na República, um ataque frontal aos símbolos da República. Em razão disso, eu não acredito que vá prosperar entre as elites políticas a ideia de anistia”, afirmou o pesquisador, acrescentando que vê no Judiciário disposição de romper com uma tradição da República, “que é a impunidade e a falta de responsabilização de militares que ocupam o alto escalão”.

Militares e o poder político, uma linha cronológica

A trajetória das Forças Armadas e da política brasileira por vezes se aproximaram e até mesmo se confundiram. Confira a seguir os principais períodos históricos em que os militares operaram na política

Guerra do Paraguai, 1864-1870

A Guerra do Paraguai, na qual Brasil, Argentina e Uruguai uniram forças contra o Paraguai, fortaleceu o Exército como instituição nacional e marcou a ascensão das ambições de poder político. A guerra foi resultado da impossibilidade de conciliação dos interesses políticos e econômicos que as nações tinham durante os anos 1860. O conflito, ao mesmo tempo em que consolidou, organizou e deu poder às Forças Armadas, contribuiu para o enfraquecimento da Monarquia e uma de suas principais instituições, a escravidão.

Proclamação da República, 1889

A queda da Monarquia mediante levante militar, em 15 de novembro de 1889, foi resultado da articulação entre militares e civis. Militares estavam insatisfeitos com salários e carreira. Também queriam ter direito de manifestar posições políticas. Havia adeptos do positivismo, e defensores de um Estado laico. Eles tinham compreensão de que eram tutores do Estado brasileiro. Desta forma, desejavam manifestar opiniões políticas publicamente. Além disso, houve conflitos entre militares e governo que deterioraram as relações. Com o golpe republicano, o primeiro presidente foi o marechal Deodoro da Fonseca. Renunciou e foi substituído pelo vice, o também marechal Floriano Peixoto.

Hermes da Fonseca, 1910-1914

21 anos após a proclamação da República e 16 anos após o fim do mandato de Floriano, um militar voltou à Presidência, e eleito pela primeira vez com voto direto. Sobrinho de Deodoro da Fonseca, Hermes era marechal. Havia sido ministro da Guerra no governo Affonso Penna (1906-1909). Ele derrotou Rui Barbosa que liderou a "campanha civilista", contra a eleição de um militar para presidente.

 

Tenentismo, 1920 a 1935

Movimento de militares de média e baixa patente contra a hegemonia das classes produtoras rurais brasileiras. Os militares envolvidos com o movimento se punham favoráveis às tendências políticas republicanas liberais. Eles pediam reforma constitucional capaz de estabelecer parâmetros mais justos no ambiente político: o pedido por voto secreto vinha não raro acompanhado de acusações de fraudes em eleições anteriores. Existiam militares no movimento de variadas orientações ideológicas.

Revolução de 1930

Processo que conduziu Getúlio Vargas à Presidência da República, pondo fim à República Velha. A desavença entre São Paulo e Minas Gerais, aliados que se revezavam no poder, abriu a fresta por meio da qual os estados Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraíba e Rio de Janeiro lançaram a Aliança Liberal. Vargas perdeu a eleição para Júlio Prestes e viu no golpe a saída para a situação. Encontrou apoio dos oficiais de baixa patente, tenentes em sua maioria, oriundos do movimento que agitou o Brasil na década anterior. O estopim para que a revolução ganhasse apoio popular foi o assassinado do candidato a vice na chapa de Vargas, João Pessoa.

Eurico Gaspar Dutra, 1946-1950

Após a queda da ditadura do Estado Novo, foi eleito, pelo voto direto, Eurico Gaspar Dutra, general e ex-ministro da Guerra do governo ditatorial de Getúlio Vargas. Dutra participou da deposição de Vargas, mas concorreu com respaldo das duas siglas organizadas pelo ditador deposto: PSD e PTB.

Manifesto contra Vargas, 1954

Documento assinado por 82 coronéis e tenentes-coronéis durante crise sobre o aumento do salário mínimo atacava fortemente o governo Vargas e externava disposição e possibilidade de um golpe militar contra o governo. Em fevereiro de 1954, militares assinam o intitulado "Manifesto à Nação", idealizado pelo cearense Juarez Távora. Militares e UDN pediam a renúncia dele. Em 23 de agosto, o vice-presidente Café Filho rompeu com Vargas e reforçou o isolamento do presidente. As tensões culminaram com o suicídio de Vargas, que atirou contra o próprio coração, em 24 de agosto de 1954.

Ditadura militar: 1964-1985

Sentimento anticomunista ganhara cada vez mais proporção nas ruas com as reformas de base que o governo João Goulart queria implementar no País: fiscal, administrativa, universitária e agrária. Jango era um representante do legado getulista-trabalhista. A partir dos quartéis, o governo foi deposto. O Congresso declarou a vacância da Presidência quando Jango ainda estava no Brasil. Castello Branco foi eleito presidente pela via indireta. A ditadura durou 21 anos.

Jair Bolsonaro, 2018-2022

Os anos que anteceram 2018 foram marcadamente negativos para o sistema político brasileiro, com eclosão da operação anticorrupção Lava Jato, em 2014. O PT sentiu o desgaste de modo intensificado, já que ocupara a Presidência da República por 13 anos (2003-2016). Lula foi preso em abril de 2018, ficando de fora do jogo eleitoral em razão da lei da Ficha Limpa. Deputado federal havia 28 anos, Bolsonaro se tornara famoso por suas declarações contrárias à comunidade LGBTQIA+ e de saudosismo à ditadura militar. Assumiu a dianteira nas pesquisas de intenção de voto e ganhou a disputa contra Fernando Haddad (PT), escolhido por Lula e pelo PT para disputar aquele pleito. Os militares votaram ao poder pelo voto direto.

General Villas Boas tuíta, 3 de abril de 2018

Então comandante do Exército, o general Villas Boas foi ao Twitter para tecer comentário sobre o destino jurídico de Lula antes de ele ser condenado. A publicação teve tom de ameaça. "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais."

Jair Bolsonaro, 2022

As acusações infundadas contra o sistema eletrônico de votação brasileiro foram a principal bandeira discursiva do então presidente Jair Bolsonaro (PL) durante o ano de 2022. Após a derrota eleitoral, apoiadores acamparam em frente a quartéis do Exército, com pedidos de "intervenção". Operação da Polícia Federal intitulada Tempus Veritatis foi deflagrada para esclarecer detalhes da tentativa de usurpação do Estado Democrático de Direito que tinha como objetivo a manutenção de Jair Bolsonaro (PL) no poder por meio da decretação de Estado de Defesa. Membros do alto escalão das Forças Armadas estariam envolvidos nesta trama.

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