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Segurança Pública: quem tem o papel e qual a responsabilidade cabe a cada ente federativo?
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Segurança Pública: quem tem o papel e qual a responsabilidade cabe a cada ente federativo?

O tema é arma política há anos entre Governo Federal, Governo do Estado e Prefeituras que trocam acusações sobre quem deve executar políticas públicas para o setor
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Esferas do poder trocam acusações e responsabilizam um ao outro sobre a segurança pública
 (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Esferas do poder trocam acusações e responsabilizam um ao outro sobre a segurança pública

Desde quando se desenhava em um passado nem tão distante o afastamento político e institucional entre o prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), e o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), uma pauta se repete na troca de acusações entre os gestores: segurança pública. Foi assim com as chacinas registradas nos últimos meses, com os índices de violência no último ano ou o assassinato brutal de um funcionário do Instituto José Frota (IJF).

O prefeito e seus aliados afirmam que cabe ao governo do Estado e à União a responsabilidade de executar ações de segurança pública, como combater as facções, investigar casos de violência, fazer o policiamento e a proteção da população. O governador por sua vez avalia que “segurança pública é uma dificuldade o ano inteiro e todo dia” e que é “o maior desafio de política pública do País, também é para o Ceará”.

O assunto chegou a ser pauta da reunião entre os dois em agosto do ano passado e tinha ficado acordado que seria tratado pelo grupo de trabalho entre a Prefeitura e o Estado. O prefeito informou, na época, que foi tratada a possibilidade de uma parceria da Guarda Municipal de Fortaleza com as polícias Militar e Civil. Uma das preocupações era com a segurança nas paradas de ônibus.

A criação do grupo não evoluiu e a relação entre os dois azedou de vez. A pá de cal na disputa foi a morte de um servidor no IJF, com acusações, do lado do prefeito, de “paralisia” e “cumplicidade” da gestão estadual com o episódio na unidade hospitalar e com o assassinato de um adolescente na Escola Municipal Delma Hermínia, no bairro Jangurussu. O governador rebateu a acusação e chamou o gestor municipal foi “oportunista” e “leviano”.

Mas, afinal: a quem cabe a responsabilidade para elaborar e executar políticas públicas para o setor? A Constituição Federal de 1988 no artigo 144 versa sobre o assunto.

“A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, sob a égide dos valores da cidadania e dos direitos humanos, através dos órgãos instituídos pela União e pelos Estados”, diz o texto.

A legislação estabelece que compete aos estados, na forma fixada em lei estadual, a “apuração das infrações penais, a preservação da ordem pública, a execução de atividades de defesa civil, os serviços penitenciários e de bombeiros”.

Para os municípios, fica que “poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações”. Além dessa função inicial, tais agente podem exercer funções de segurança pública da competência dos Estados, na forma fixada em lei estadual, assim como serviços de bombeiro.

Entra em campo, então, o que diz a legislação estadual, posta na Constituição do Ceará. São delimitados a função de cada corporação e como deve ser a pactuação com os municípios.

“A segurança pública, penitenciária e a defesa civil são cumpridas pelo Estado do Ceará para proveito geral, com a responsabilidade cívica de todos na preservação da ordem coletiva, e com direito que a cada pessoa assiste receber legítima proteção para sua incolumidade e socorro, em caso de infortúnio e calamidade, e garantia ao patrimônio público ou privado e à tranquilidade geral da sociedade”, diz o texto.

Pactuação não é tão preto no branco

A questão, no entanto, é que, como explica a promotora de Justiça, Juliana Mota, a divisão não é tão “preto no branco”, sendo necessário integração entre as esferas. “Pela Constituição, da indicação do que é responsabilidade do Estado, do Município e da União, existem órgãos de segurança do Estado, do Município e da União, mas pensar segurança pública como força de segurança é uma forma muito arcaica e primitiva de se pensar em segurança pública”, avalia.

A promotora, que é coordenadora do Centro de Apoio Operacional Criminal, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública (Caocrim) do Ministério Público (MPCE), ressalta que também faz parte do rol de políticas públicas na área questões como educação, saúde, além justamente das forças de segurança, como consta nas Constituições.

“Responder isso de uma forma muito fechada reduz muito o conceito, reduz muito a importância, a relevância e o que a gente pode fazer sobre isso. Porque se eu pensar em segurança pública só como forças de segurança, é só o Governo do Ceará pegar um número de policiais militares que é de 10 mil e aumentar para 20 mil e está resolvido o problema, mas não é isso que resolve. A gente não pode minimizar em uma ou duas respostas”, aponta a promotora.

Ela destrincha ainda sobre o que aponta a Constituição Federal e explica que há um entendimento “engessado” dos termos. “Quando ela coloca Estado, ela não coloca como Estado do Ceará ou Estado de São Paulo, ela coloca como um ente federativo, a partir do momento que ela coloca Estado é o Estado federal, estadual e municipal. A gente não pode compreender esse termo “Estado” apenas como o ente federado, a gente tem que pensar como o Estado Democrático como um todo”, ressaltou.

A promotora avalia ainda que há uma discussão política entre Governo e Prefeitura acerca das competências, mas que o MPCE “não deseja entrar” no embate. “É algo muito deles, muito pontual, o Ministério Público não deve se influenciar ou intrometer, porque é muito complicado e complexo porque nenhuma entidade sozinha consegue realizar política pública”, destacou.

Camilo e Bolsonaro viveram quatro anos em cabo de guerra

O tema já era engatilhado como fato político quando o hoje ministro da Educação, Camilo Santana (PT) era governador do Ceará. Ele enfrentou uma escalada de violência com ataques a ônibus e a instituições públicas, além de um motim da Polícia Militar. A gestão viu os níveis de violência dispararem.

Em 2019, uma onda de violência eclodiu no Estado, espécie de resposta do crime organizado ao endurecimento de regras de segurança nos presídios. Jair Bolsonaro (PL) estava em seu primeiro ano como presidente, eleito tendo justamente com a pauta da segurança como uma das bandeiras da campanha.

Camilo solicitou apoio federal para contornar a crise. O Governo Federal atendeu o pedido, mas não deixou de lado alfinetadas pelas gestões estarem em lados opostos politicamente. Bolsonaro falou em "incapacidade" de Camilo de resolver o problema e deu louros ao seu então ministro da Justiça, Sergio Moro, que teria sido "muito hábil, muito rápido e eficaz para atender, inclusive, um estado cujo governador reeleito é de uma posição radical a nós".

Em tom conciliatório, Camilo respondeu por meio de nota. "A eleição já passou. E os interesses da população do meu Estado sempre estarão acima de qualquer interesse pessoal ou partidário", disse.

Essa não seria a primeira vez que as partes trocaram farpas, em uma relação de quatro anos cheia de turbulências e desencontros em todas as áreas, passando, claro, pela Segurança Pública. Em meio ao motim da PM cearense no início de 2020, Bolsonaro renovou, a contragosto, a operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Ele reclamou mais uma vez de Camilo: "A gente espera que o governador resolva esse problema da PM do Ceará e bote um ponto-final nessa questão, porque GLO não é para ficar eternamente atendendo um ou mais governadores. GLO é uma questão emergencial", ressaltou Bolsonaro.

Camilo chegou a alegar, em 2021, que o governo Bolsonaro segurava a liberação de um financiamento para investimentos em prevenção na área de Segurança Pública para o Ceará. Camilo apontou que a atitude era tomada "por questões políticas". Havia uma reclamação de governadores que apontavam a ausência de Bolsonaro no campo da segurança, o que teria remanejado responsabilidades de controle e combate à facções e outros grupos criminosos para os estados.

As cobranças viraram afagos agora com o alinhamento dos sucessores, o governador Elmano de Freitas (PT) e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O gestor estadual dizia ter certeza de que o Pacto pelo Ceará Pacífico dialogaria com o que fosse debatido em nível federal para o novo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci).

 

A falta de uma política nacional de segurança pública

Doutores em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), os pesquisadores Maria Pia Guerra e Roberto Dalledone Machado Filho avaliam que as principais reformas na organização da segurança pública aconteceram durante a Ditadura Militar. Até então, a segurança pública era matéria de competência estadual e de organização preponderantemente civil.

A direção e o controle foram absorvidos pela esfera federal, ainda que a manutenção e a execução direta tenham sido mantidas em mãos dos Estados, resume a dupla. Eles também ponderam que a elaboração pecou em manter um entendimento militarizado de que cabia apenas às forças policiais, especificamente à Polícia Militar, toda a responsabilidade de garantir segurança. É um entendimento popular que virou legislação. 

"Organizações policiais são dotadas de um tradicional espírito de corpo, moldado, entre outros elementos, pela exposição compartilhada a situações de conflito, pela desvalorização social do policial, pela repetição de medidas simbólicas de autoafirmação (uniformes e fardas, passagens de comando, formaturas), as quais influenciam as expectativas do público e produzem uma visão de que "só o policial é capaz de entender o serviço de polícia", ressaltam. 

No Brasil, as dificuldades se somam à visão isoladas das políticas de segurança pública, ao baixo compartilhamento de dados e estatísticas, além da inexistência de um sistema de controle externo. A dupla é crítica ao que foi estabelecido por considerar que ficou "omisso" no que se refere às competências do governo federal e aos "mecanismos de controle e responsividade", como apontam em artigo compartilhado junto ao Senado Federal. 

Eles também retomam que foram poucas políticas públicas sólidas na área que foram tocadas pelo Governo Federal. Um "processo de retomada de responsabilidades" foi tocado no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), com o Plano Nacional de Segurança Pública e do Fundo Nacional de Segurança Pública, seguido e intensificado no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci).

O programa foi abandonado durante o governo de Dilma Rousseff (PT), mas foi relançado em 2023 no Lula 3. O Pronasci II tem em seus eixos prioritários o fomento às políticas de segurança pública com cidadania, com foco em territórios mais vulneráveis e com altos indicadores de violência; combate ao racismo estrutural; apoio às vítimas da criminalidade e o fomento às políticas de cidadania, com foco no trabalho e ensino formal e profissionalizante para presos e egressos.

Os eixos estão alinhados com o Plano Nacional de Segurança Pública, que prevê a redução da taxa nacional de homicídios para abaixo de 16 mortes por 100 mil habitantes até 2030; redução da taxa nacional de lesão corporal seguida de morte para abaixo de 0,30 morte por 100 mil habitantes até 2030; redução da taxa nacional de mortes violentas de mulheres para abaixo de 2 mortes por 100 mil mulheres até 2030; aumento de 185% do quantitativo de presos que exercem atividade laboral ou educacional até 2030. 

Referência 

GUERRA, Maria Pia; MACHADO FILHO, Roberto Dalledone. O regime constitucional da segurança pública: dos silêncios da Constituinte às deliberações do Supremo Tribunal Federal. Revista de Informação Legislativa: RIL, v. 55, n. 219, p. 155-181, jul./set. 2018.

Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/55/219/ril_v55_n219_p155.pdf 

As políticas públicas do Ceará na segurança pública

  • Distritos-Modelo, criado por Tasso Jereissati (PSDB), encerrado
  • Ceará Segurança Pública Moderna, criado por Lúcio Alcântara (União Brasil), encerrado
  • Ronda do Quarteirão, criado por Cid Gomes (PSB), encerrado
  • Em Defesa da Vida, criado por Cid Gomes (PSB), encerrado
  • Nova Estratégia de Segurança Pública (Nesp), criado por Camilo Santana (PT), encerrado
  • Ceará Pacífico, criado por Camilo Santana (PT), ainda em operação

O que diz a lei sobre cada função

POLÍCIA MILITAR

A Polícia Militar do Ceará é instituição permanente constituindo-se força auxiliar e reserva do Exército, subordinada ao Governador do Estado, tendo por missão fundamental exercer a polícia ostensiva, preservar a ordem pública e garantir os poderes constituídos no regular desempenho de suas competências.

Incumbe à Polícia Militar a atividade da preservação da ordem pública em todas as suas modalidades e proteção individual, com desempenhos ostensivos para inibir os atos atentatórios a pessoas e bens.

POLÍCIA CIVIL

Compete à Polícia Civil exercer com exclusividade as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto militares, realizando as investigações por sua própria iniciativa, ou mediante requisições emanadas das autoridades judiciárias ou do Ministério Público.

POLÍCIA PENAL

A Polícia Penal de natureza permanente, com função indelegável de Estado, vinculada ao órgão administrador do sistema penal da unidade federativa a que pertence, cabe a segurança dos estabelecimentos penais.

CORPO DE BOMBEIROS

A corporação tem como missão fundamental a proteção da pessoa, visando sua incolumidade em situações de risco, infortúnio ou de calamidade. No rol de funções, há

  • Prevenção e combate a incêndio;
  • Proteção, busca e salvamento humano e animal;
  • Socorro médico de emergência pré-hospitalar;
  • Proteção e salvamento aquáticos;
  • Pesquisas científicas em seu campo de atuação funcional;
  • Controle da observância dos requisitos técnicos contra incêndios de projetos de
    edificações, antes de sua liberação ao uso;
  • Atividades educativas de prevenção de incêndio, pânico coletivo, proteção ao
    meio ambiente e atividades socioculturais.
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