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A exploração da fome como moeda de troca na política
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A exploração da fome como moeda de troca na política

| ASSISTENCIALISMO | Como os índices de fome estão relacionados com crimes eleitorais e como a população sabe que nenhum político manda na fome dela
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"O cara que trabalha com política é cruel", foi o que disse uma das pessoas ouvidas para esta reportagem, ao ser perguntada se já havia presenciado o crime eleitoral de compra de votos em troca de alimentos, em algum momento da vida. No relato, o homem, que preferiu não ser identificado, informou ter vivido a infância inteira em Meruoca, no Sertão de Sobral. Morava em uma casa de taipa, localizada em um bairro de classe baixa, esquecido pelo resto da cidade. Ou quase esquecido.

No período eleitoral, eram constantes as visitas de políticos, que chegavam oferecendo itens como "telhas" e "cestas básicas" em troca de votos. "Eram coisas simples, mas que as pessoas não tinham e muito por conta dos próprios políticos. Mas a gente não fazia essa associação. A pessoa que não tinha nada, mas passava fome, se o político desse uma cesta básica, ela votava nele. Achava que era uma pessoa boa", relata.

Apesar de lamentar a situação, em todo o relato ele não repreende os eleitores que aceitam os "acordos", especialmente em troca das cestas. O motivo é a imagem da própria mãe, preparando a comida diária. "Era farinha com açúcar, porque enchia. Eu nunca passei fome, mas já vi minha mãe dormir com fome para que a gente não passasse por isso. Nunca vou esquecer. A fome te obriga fazer qualquer coisa, ela dói".

Relatos como este foram onipresentes ao longo desta apuração. O POVO coletou oito histórias pessoais, que constam nesse material sem identificação de nomes — e em alguns casos, municípios —, para preservar os envolvidos. A mesma pergunta foi feita a todos: Você já presenciou políticos oferecendo alimentos em troca de voto?

As respostas afirmativas foram unânimes, com algumas variações: "Sim, mas vêm diminuindo", "Sim, mas é mais comum por dinheiro", "Sim, mas não comigo", ou, simplesmente, "Sim, desde sempre".

O homem citado, hoje habitante de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, afirmou que a experiência na infância mudou a forma dele de ver a política. "Voto em quem eu sei que vou ter acesso, mas ainda me oferecem muita coisa. Hoje eu penso: quer me dar dinheiro, alimento? Eu recebo. Mas eu voto em quem eu quiser."

 

Confira relatos de troca de votos por alimentos

As identidades dos autores dos relatos serão preservadas. Em alguns casos, também os municípios

Litoral Norte

"Trabalho com campanhas publicitárias de políticos. Você vê gente vendendo voto por pintura, para trocar torneira, por alimento. O problema é que a memória política do brasileiro é zero. Eu já trabalhei com políticos fodas, mas já vi muita coisa absurda. Em um município da zona norte do Estado, presenciei um político que comprou o voto de uma pessoa, em troca de um jumento. Um animal, ser vivo! Acho que compram porque a galera vende mesmo."

Litoral Oeste/Vale do Curu

Já presenciei troca de voto por alimento e material de construção. Mas o principal hoje é o dinheiro. Eu ouvia mais quando era mais novo(a). Já ouvi muito. A própria população vende seu voto."

Centro-Sul

"Eu sou filho de ex-vereador e, quando criança, costumava acompanhar meu pai em suas visitas na região. Tinha um caderninho e até hoje me lembro das anotações que fazia, com tudo o que ele oferecia em troca de voto: cesta básica, dentadura, botijão de gás, óculos da ótica no centro da cidade e por aí vai".

Cariri

"Na campanha de 2020, eu morava em um bairro relativamente popular. Presenciei a reunião de três famílias com uma candidata à vereadora. Ela chegou com cinco pacotes de cestas básicas e na junção das famílias dava mais de 20 pessoas. Ela disse que ia seguir ajudando caso votassem nela, ia conseguir emprego. Isso aconteceu em meio à pandemia, tava todo mundo de máscara. Eles retiram os títulos, inclusive, e essas pessoas acham que se você tirar o título, conseguem ver em quem você vota".

Vale do Jaguaribe

e Grande Fortaleza "Trabalho acompanhando entrega de benefícios aqui hoje, mas já trabalhei em Fortaleza e Caucaia. Sempre a mesma coisa. O usuário chega sem saber a diferença. O vereador indica a cesta básica no local, que já era dele de direito. O que falta é informação e coragem da gente também, de informar que não houve bondade nenhuma do político. Cesta básica é um direito. O problema é que culturalmente a assistência social é a caridade, com marcas eleitoreiras."

Ibiapaba

"Há muito tempo era muito comum ver trocas de cestas básicas. No Ceará, sempre foi comum por conta da seca. Mas hoje tem tanto programa que cesta básica se tornou uma coisa mínima. Hoje trocam voto por outras coisas, dinheiro principalmente. Vejo muito".

Sertão de Crateús

"Está tão banalizado. As próprias pessoas estão acostumadas a pedir coisas pequenas. Vejo muito isso no dia a dia, no meu trabalho. Então os políticos acabam indo. Acontece muito, mas não vejo como bondade. Eles têm muito a ganhar com isso, né? Mas acho que está muito naturalizado. As próprias pessoas já esperam isso."

Meruoca/Sertão de Sobral

"O cara que vive da política é cruel. Eu presenciei muito isso na minha infância. Eles chegavam no bairro e diziam: vou te dar um milheiro de telha. Vou te dar uma ajuda pra você fazer uma feira boa. A pessoa que não tinha nada, mas passava fome, e se o político desse uma cesta básica, ela votava nele. Achava que era uma pessoa boa. Muita gente aceita porque também perdeu muita fé nos políticos. Pensam: de que adianta eu não aceitar, se ele vai roubar do mesmo jeito? Comigo, se quiser me dar dinheiro, eu recebo, mas eu voto em quem eu quero."

As ações governamentais contra a fome 

A troca de votos por alimentos é resultado de anos de ausência de resultados das políticas de combate à fome. Após histórico de omissão, ações governamentais passaram a consistir em medidas compensatórias para remediar a situação, ou na distribuição direta de bens. Esse último caso é ainda permeado de características como a entregas de cestas básicas, utilizadas como maneira de angariar apoio, por figuras ou grupos políticos.

O fortalecimento da distribuição de cestas se deu, especialmente, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-1998), com ações como o Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos (Prodea), que teve o orçamento cortado em 2001, devido ao "caráter assistencial" da ação. No entanto, mesmo em vigência, as medidas eram vistas como insuficientes.

"Era tão pouco que só dava mais confusão. A frente emergencial só dava 900 e poucas cestas para nossa cidade de 30 mil habitantes. Se a gente chegasse em um sítio que tinha cinco vagas, a confusão era feita. Era melhor nem ir", comenta Manoel Filho, coordenador da ação nos anos 1990, em Acopiara, região Centro-Sul.

Na cidade, houve aumento no número de cestas apenas após manifestação de agricultores em 1997. Eles invadiram e levaram todo o estoque de alimentos da Prefeitura, por não aguentarem mais a escassez de comida, mesmo com a existência dos programas sociais. "Depois o Governo mandou mais. Passou para 5.932 cestas, não esqueço esse número", diz Manoel.

A falta de fomento ia de encontro a um quadro de insegurança alimentar grave no Brasil. Em 1990, 22% da população estava subnutrida, o que colocou o País no mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, em um quadro de moderado para alto. O País saiu do mapa em 2014, mas retornou em 2022, após a pandemia de Covid-19.

No Ceará, levantamento recente do IBGE informou que cerca de 3,4 milhões, dos 9 milhões de cearenses, ainda vivem em algum nível de insegurança alimentar.

 

O que pode ser feito contra os crimes eleitorais e à fome

Conforme o cientista político Kevan Brandão, a mudança no quadro dos crimes eleitorais precisa passar por uma reformulação da cultura política, que deve envolver a educação e o desenvolvimento econômico. É preciso haver um esforço entre diversas frentes, como a Justiça Eleitoral, o Ministério Público — com a fiscalização — e mesmo instituições de iniciativa privada. "Acho que conseguimos ver nas diferentes esferas de poder uma omissão, uma procrastinação dos governantes para contornar esses problemas inadmissíveis no dia de hoje. Imagina, estamos em 2024", afirma.

O procurador de Justiça, Emmanuel Girão, do Ministério Público do Ceará (MPCE), afirmou que uma grande dificuldade no combate é a captação de provas, tendo em vista a participação do eleitor.

"Muitas vezes, ele não vai falar que realmente recebeu vantagens. O eleitor responde criminalmente também. Geralmente, é mais fácil quando captamos em flagrante." Segundo o procurador, o MPCE está trabalhando na capacitação dos promotores eleitorais, por meio de palestras e oficinas, além da contratação de 25 novos profissionais.

Já o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE), atribuiu a atuação da Justiça Eleitoral ao próprio MPCE. "Existe um trabalho, tanto da Secretaria de Eleições, quanto do próprio MPCE, que faz esse acompanhamento. Analisar se os programas, os recursos estão sendo aplicados de forma impessoal. Denúncias de capacitação chegam à Justiça Eleitoral através do MP", disse Tiago Dias, supervisor do laboratório de inovação do TRE-CE.

 

Breve histórico do combate à fome

Século XIX

Atribuía-se as secas a condições naturais ou vontade divina, o que era usado pelos governantes

1910's

Na estiagem de 1915, o governo de Benjamin Liberato Barroso criou o primeiro campo de concentração

1930's

No governo do presidente Getúlio Vargas (1930-1945), o governador Roberto Carneiro de Mendonça ampliou os campos de concentração em Fortaleza e pelo Ceará

1970's

Governo Federal criou as Centrais de Abastecimento, delegando a distribuição varejista para Estados e municípios, que incrementaram e ampliaram a rede de varejões e sacolões.

1980's

Em 1986, no governo José Sarney, destaca-se o Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes (PNLCC).

1990 - 1995

Com Fernando Collor, houve esvaziamento das despesas do governo com a agricultura e a União procurou promover políticas compensatórias. Houve extinção de políticas como os programas de suplementação alimentar dirigidos a crianças menores de 7 anos, e enfraquecimento de ações como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Programa de Alimentação do Trabalhador e o Inan (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição). Em 1993, no Governo Itamar Franco, foi criado o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). 

1994-1999

Consea foi extinto em 1995, com a posse de Fernando Henrique Cardoso. Houve a manutenção do programa de distribuição de cestas básicas de forma instável e sujeito ao calendário eleitoral. Em 1998, inclusive, ano eleitoral, o governo distribuiu recorde de 30 milhões de cestas básicas, segundo o jornal Folha de S.Paulo. Houve ainda o Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos (Prodea).

2000's

Prodea teve o orçamento cortado em 2001, devido ao “caráter assistencial” da ação. Em 2003, no governo Lula, foi implementado o programa Fome Zero e reativado o Consea, impulsionando a organização de muitos conselhos estaduais, como no Ceará, em 2003. Foi criado também o Bolsa Família. Em 2004, foi criado o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

2010's

No Ceará, foi criado em 2011 o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional, instituído nacionalmente em 2006. Em 2012, foi criado o Plano de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan) do Estado. Em 2017, foi regulamentada a Política de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar do Estado do Ceará. No plano nacional, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, em 2014, no governo Dilma Rousseff. O Consea foi desativado pelo governo Jair Bolsonaro, em 2019. O MDS passou a ser integrado no Ministério da Cidadania.  

2020's

Em 2022, com Bolsonaro, o Brasil voltou ao Mapa da Fome. Em 2023, no terceiro mandato de Lula, foram retomados o MDS e o Consea Nacional. No Ceará, em 2023, foi criado o Programa Ceará sem Fome.

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