Conexão e pertencimento são alguns atributos que as conhecidas páginas de bairro nas redes sociais proporcionam aos seguidores. Com denúncias dos problemas e trazendo dicas e sugestões, os perfis são seguidos por milhares de pessoas e extrapolam até a quantidade de moradores dos bairros. A maioria das publicações tem teor humorístico, seja com os famosos memes ou com situações do cotidiano. Mas também há espaço para críticas políticas e até posts feitos em colaboração com políticos.
O alcance dessas páginas já tinha sido provado com o perfil do Fortaleza Ordinário. Criado por Diego Jovino em 2018, tem quase 2 milhões de seguidores no Instagram. É como se mais de 80% da população da Capital seguisse. A página chegou até a ser sequestrada por um hacker em 2019. Na época, as publicações foram sumindo simultaneamente à exigência de pagamento em bitcoins.
Desde a popularização do perfil, surgirem canais específicos de vários bairros, geralmente criados por moradores. Algumas das páginas se limitam a compartilhar temas humorísticos ou situações do cotidiano dos moradores. Há interações com o público com perguntas sobre praças do bairro ou problemas com postos de saúde ou eletricidade. Neste ponto, chamam a atenção as publicações feitas em colaboração com vereadores.
É o que acontece no João XXIII Ordinário, que ostenta mais de 130 mil seguidores. O número é mais de seis vezes maior que o número de moradores contabilizados pela prefeitura de Fortaleza, em torno de 20 mil. O administrador é Fadson Sampaio, 33 anos, que criou, em meados de 2020, a página na esteira, justamente, do Fortaleza Ordinária.
“Antes de eu criar o João XXIII Ordinário, já existiam algumas páginas ordinárias de bairros, e, como não tinha a página do bairro João XXIII, resolvi criar. Hoje é a maior página ordinária dos bairros de Fortaleza”, explicou. Ele conta que era motoboy e a empresa em que trabalhava, na época da pandemia, fez uma demissão em massa. A página se tornou a fonte de renda.
A estruturação do perfil garantiu a contratação dos serviços de divulgação: algumas marcas fecham parcerias fixas que pagam de forma mensal para aparecer em postagens. O próprio administrador aparece como protagonista de propagandas ou comentando sobre fatos que acontecem na região. Uma das figuras presentes é o vereador Eudes Bringel (PSD), que chegou a ter o trabalho divulgado duas vezes na semana nos stories e uma vez no feed do Instagram.
Em conversa com O POVO, o administrador da página disse que a divulgação do trabalho de Bringel era uma parceira de confiança. "Eudes é meu amigo e me ajuda quando eu preciso de algo para a melhoria do bairro João XXIII e adjacências", comentou.
Eudes era presença constante até fevereiro. De lá para cá, quem tem sido presença mais frequente é o suplente de vereador Danilo Ribeiro. Ele aparece em postagens e também interage nos comentários em públicações.
A aparição de vereadores também foi encontrada em outras páginas deste modelo, como do Bairro Ellery, em que aparece Márcio Martins (União Brasil), e do Montese, com Germano He-Man (Mobiliza). Já no Conjunto Ceará e Vila Velha, ambos bairros com grande densidade demográfica, os próprios administradores são pré-candidatos.
Ney Maia administra a conta do Conjunto Ceará desde 2022 e ressalta que fez mudanças na "cara" da página em comparação com a gestão anterior. O perfil, assim como os demais, surgiu na onda do Fortaleza Ordinária. “Em 2022 quando assumi, fizemos uma onda empreendedora para ajudar os comércios locais sempre de uma forma descontraída, inspirada também em outras páginas de sucesso”, afirmou.
O perfil tem força nas redes sociais e mobiliza 70 mil seguidores com uma equipe de oito pessoas, sendo deles, cinco só focados na produção de conteúdo audiovisual. Este ano, ele anunciou que tentará ser vereador, filiado ao União Brasil.
“Recebi o convite do presidente do União Brasil aqui no Estado, Capitão Wagner, e resolvi sair do sofá da sala para ajudar na construção da nossa cidade e muito especial do nosso Conjunto Ceará”, disse. Questionado sobre se há divisão entre ele como pré-candidato e a página, ele ressaltou que “as demandas da população estão sendo publicizadas como sempre foram feitas”.
“A força do Conjunto Ceará Ordinário já ajudou a resolver diversos problemas, posso citar inclusive o reparo do guarda corpo da ponte do Bonsucesso e o aumento dos ônibus transporte escolar da Escola João Nunes. Posso garantir que vai continuar nessa pegada independente da nossa candidatura”, apontou ao O POVO.
Já no Vila Velha, Dantas Júnior aceitou o convite feito pelo presidente estadual do Avante, o secretário da gestão de José Sarto (PDT) Rodrigo Nogueira. Criada em 2020, a página começou postando apenas vídeos engraçados, mas passou a incluir reinvidicações e reclamações da população. Nos registros mais recentes, o proprietário aparece pessoalmente cobrando melhorias no bairros. "Sem saber já fazia o papel de vereador, de certa forma chamei a atenção do secretário e já tive três reuniões, a primeira fui resistente, mas amadureci a ideia é hoje sou um pré-candidato", disse.
Usar as rede sociais para divulgar o trabalho de parlamentares não se enquandra como delito eleitoral. A estratégia pode ser adotada, contanto que não peça votos explicitamente e não use palavras como "preciso do seu apoio", "sua adesão à nossa luta", "vem comigo nessa caminhada". É o que explica o advogado Pedro Neto, com atuação voltada para o direito constitucional, processual e eleitoral, além de prestar assessoria a agentes públicos.
Ele aponta que as páginas, por não serem concessões públicas, como as rádios e TVs, têm liberdade pra manifestar predileção a um candidato, seja detentor de mandato ou não. "O cuidado deve ser com o 'impulsionamento' das postagens, pois o gasto excessivo com esse tipo de mídia pode configurar um outro tipo de ilícito, que seria o abuso de poder econômico", alerta.
O advogado explica ainda que o pedido de votos antes do período eleitoral configura a propaganda eleitoral antecipada, que seria um ilícito eleitoral, mas não configura um "crime eleitoral" (natureza penal). A consequência é a aplicação de multa.
"O candidato pode expor ideias, propostas ou qualidades pessoais, mas não pedir votos, ainda que de forma disfarçada, que a jurisprudência costuma chamar de "com uso de palavras mágicas", como "preciso do seu apoio", "sua adesão à nossa luta", "vem comigo nessa caminhada", afirmou.