Ir à praia é um ato presente na bagagem cultural do brasileiro. De Norte a Sul, o litoral do País é famoso pelas belezas naturais e por ser ambiente, em princípio, sem barreiras, configurando um espaço comum à população. Nas últimas semanas, um barraco envolvendo a atriz Luana Piovani, o jogador de futebol Neymar Jr. e outras figuras públicas jogou luz sobre um projeto político - envolvendo as tão preciosas praias -, que tramitava sem alarde até então, mas que agora pode sofrer mudanças na rota.
No caso Neymar vs Piovani, a “treta” teve repercussão na política, mais especificamente em uma Proposta de Emenda à Constituição, a chamada PEC das Praias (ver quadro). Mas para além da questão das praias, o episódio levantou um debate sobre a “fofocalização” da política. O exemplo é cristalino: um tema que pode impactar o dia a dia, como a cessão de terrenos de Marinha, não comoveu e mobilizou por si só, até tornar-se alvo de fofoca e picuinha entre famosos e, assim, ser pautado e questionado em maior escala.
O POVO ouviu especialistas em política e comunicação sobre os desdobramentos do fenômeno da “fofocalização”, o papel que influenciadores e artistas desempenham e em que medida isso pode ser benéfico ou maléfico para a dinâmica do debate público.
Monalisa Soares, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia da Universidade Federal do Ceará (Lepem-UFC) destaca que, embora haja debate sobre o quanto a política estaria se tornando “tiktorizada” (termo referente à rede social TikTok, mas que faz alusão à dinâmica de outras redes sociais), vê por um viés benéfico a participação de figuras públicas em debates que antes se restringiam a canais e atores mais formais.
“De modo geral, não leria como algo puramente negativo. Acho relevante, em alguma medida, que figuras com poder de influência tragam à cena temas que podem passar na dimensão opaca da política. Há um universo de temas que ficam nessa órbita da discussão interna e que para chegar à população dependem de visibilidade. Por muito tempo quem fez esse papel, e ainda faz, é a imprensa, mas ela sozinha não dá conta de apresentar tudo”.
Soares aponta que, a priori, não seria ruim que nenhuma pessoa com influência e repercussão, seja por qual canal for - mesmo que não seja um intelectual ou jornalista -, possa chamar a atenção para determinados temas e cita o caso Piovani como exemplo.
“Essa dimensão da Luana Piovani com o Neymar não parece ter ficado nesse nível da fofocalização. Ainda que algumas páginas tenham dado ênfase apenas na intriga, foi muito relevante Luana ter trazido à tona a discussão. Impulsionando uma busca para compreender melhor e a própria imprensa foi levada a pautar e esclarecer o tema. Houve repercussão até mesmo no jogo do Legislativo, com o próprio relator (da PEC das Praias) afirmando que fará alterações no projeto e já circula a ideia de que sequer pode ser votada”.
A professora analisa que do ponto de vista do debate público houve uma "boa contribuição" a partir do agendamento da mídia e dos atores políticos. "Quantas coisas que passam, mudanças que ocorrem e que sequer têm visibilidade por conta dessa dimensão opaca da política. O parlamento precisa criar novos canais de diálogos com a sociedade. Então essas ações têm sua importância, seja dos influenciadores, da mídia tradicional ou de um cidadão comum”.
Já Paula Vieira, cientista política e professora do Centro Universitário Christus, avalia que embora o fenômeno seja capaz de gerar visibilidade, também é capaz de esvaziar a pauta em si. “Pode ter como consequência essa pressão, contra aprovação do projeto, gerando uma pausa nas discussões. Mas apesar dessa interferência, para falar a verdade, eu não sei se as pessoas que acompanharam a treta (Piovani vs Neymar) estão sabendo dessa consequência (engavetamento da PEC)”, explica a professora.
Nesse sentido, ela entende que houve um esvaziamento da pauta. "Não houve debate público qualificado, discutindo o que era o projeto, o que significava, de que ponto a ponto seria afetado. A gente não viu a discussão se aprofundar em conteúdo, ficando na superficialidade da briga e da fofoca. Mas ao mesmo tempo, sim, o assunto chegou nas pessoas”, conclui.
O tema divide opiniões mesmo entre especialistas. Ao longo do tempo, casos similares ocorreram e tiveram repercussões positivas e negativas. Um desses, ocorrido em fevereiro de 2022 no início da guerra entre Rússia e Ucrânia, envolveu a influenciadora Rafa Kalimann. Ela usou as redes sociais na tentativa de “resumir” o contexto que envolve o conflito armado. A repercussão negativa abriu debate sobre a prática de influenciadores falarem, muitas vezes, sobre algo que não tem domínio a fim de gerar engajamento.
Em contrapartida, no mesmo contexto de guerra, o streamer Casimiro Miguel abriu uma live em seu canal onde entrevistou o professor Tanguy Baghdadi, mestre em Relações Internacionais, para explicar os motivos que levaram ao início do conflito na ocasião. Atitude bem recebida à época.
A discussão envolvendo a atriz Luana Piovani e o jogador de futebol Neymar Jr. mobilizou as plataformas digitais, tendo como pano de fundo a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que prevê a possibilidade de cessão dos terrenos de Marinha para um único dono, a chamada PEC das Praias. A treta entre os famosos começou com uma troca de farpas virtual e acabou mobilizando usuários das plataformas, políticos e imprensa a olharem mais atentamente para um assunto que até então não era pauta.
De forma resumida, o movimento começou quando Luana compartilhou vídeo de uma comunicadora socioambiental que falava sobre a PEC. A atriz chamou a atenção contra projeto que poderia “privatizar” as praias. Neymar foi parar na história após ter uma de suas empresas associadas a uma incorporadora que pretende executar um projeto de “Caribe brasileiro”, com imóveis de alto padrão no litoral do Nordeste. Luana criticou Neymar por, supostamente, apoiar a PEC e fez críticas pessoais ao jogador.
Fato é que a treta jogou luz sobre o projeto que já havia sido aprovado pela Câmara e caminhava na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Mais que isso, com a má repercussão pública a partir da mínima referência à “privatização de praias”, o texto deve ser engavetado no Senado, segundo informou o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), por não ser prioridade e por não ter sido totalmente discutido.
O POVO conversou com especialistas sobre a mobilização iniciada a partir de uma futrica entre famosos. Paula Vieira, cientista política e professora do Centro Universitário Christus, explica a relação entre o tamanho da mobilização a partir de uma análise sociológica da prática da fofoca.
“Quando me perguntam sobre o porquê da treta e da fofoca mobilizarem tanto, lembro logo da perspectiva sociológica da existência da fofoca, que é a criação de vínculos. Nem que seja para se diferenciar de um outro grupo. As pessoas aderem à fofoca, que se torna uma forma de socialização e também um elemento de distinção de um grupo para o outro”, diz.
Vieira considera curioso que o alvo deste caso tenha sido um projeto de privatização. “Quem é esse outro que está dentro desse projeto e que foi motivo de posicionamentos públicos? Mas é essa a dinâmica. Nela a fofoca tem muito mais aderência pelos elementos de quem é um e de quem é o outro, de para quem vai a torcida do que necessariamente para a publicização da pauta que estava sendo discutida”, comenta, acrescentando que o próprio alimentar da treta é uma forma de posicionamento estratégico dos envolvidos.
“Teve todo esse burburinho, conversa, criação de vínculos porque é por onde as pessoas se conectam e constroem afetos, afetos no sentido de mexer com as emoções. A treta traz isso, muito mais do que simplesmente se colocar a favor ou contra um projeto”, conclui.
A PEC das praias prevê a autorização da cessão de terrenos de Marinha a entes privados ou estados e municípios, a depender do caso, que já estejam ocupando as respectivas áreas. A propriedade dos lotes não seria mais compartilhada entre a União (que detém 17% do valor dos terrenos) e os ocupantes (que pagam taxas específicas ao governo federal), como ocorre hoje, e passaria a ter possibilidade de ter um único responsável. Ao mesmo tempo, áreas que já foram concedidas a prestadores de serviços públicos, como portos e aeroportos, e aquelas que não foram ocupadas não seriam afetadas pela PEC.
Entende-se por terreno de Marinha aqueles que ficam a uma faixa de 33 metros depois do ponto mais alto que a maré atinge: ou seja, não abrange praia e mar, área frequentada por banhistas. No entanto, o acesso ao local pode ser dificultado, já que grandes redes hoteleiras e resorts poderiam construir muros ou barreiras nas áreas adquiridas.
Embora a proposta original não preveja uma “privatização” da faixa areia a partir da restrição de acesso, isso poderia ocorrer na prática; isso porque com a cessão dos terrenos, construções como muros, cercas e outras estruturas poderiam ser levantados, dificultando ou até mesmo impedindo acesso do público geral aos ambientes de praia.
O relator do projeto, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), defende a proposta e nega que haja espaço para privatização das praias, argumentando que a proposta visa acabar com as taxas pagas pelos proprietários à União para terem os imóveis nestes terrenos. Estima-se que cerca de 500 mil imóveis no Brasil estão nos chamados terrenos de marinha.