Os resultados da eleição para o Parlamento Europeu mostraram diferentes ângulos do que parece um continente disposto a mudar de rumos. As urnas apontaram para uma guinada à direita. Embora a ascensão de representantes da extrema direita tenha sido menor que o esperado, esse grupo mais radical obteve resultados importantes em países relevantes como França, Alemanha e Itália.
As urnas apontam que o Centro continua firme, com tendência mais à direita. Por outro lado, ambientalistas - os chamados verdes - perderam espaço, sinalizando câmbio. O POVO conversou com Uriã Fancelli, especialista em Relações Exteriores e mestre em Política e Cultura Europeia, sobre eventuais impactos desses resultados para o continente e para o mundo.
O POVO - Qual a principal história contada a partir do resultado da eleição para o Parlamento Europeu neste ano e o que devemos observar com mais atenção?
Uriã Fancelli - Agora, após os resultados das eleições para o Parlamento Europeu, muitos classificam como alarmistas ou exageradas as previsões anteriores sobre o possível crescimento da extrema direita. Eu discordo desta análise. Embora esse grupo não tenha crescido como esperado, a verdade é que ele cresceu. Esse crescimento não deve jamais ser subestimado, especialmente devido à possibilidade de ser contínuo, ou seja, que ainda esteja em ascensão e que possa se tornar mais relevante nas próximas eleições. Essas eleições também servem como um termômetro para aquelas que ocorrem em nível nacional, indicando uma ascensão real do nacionalismo e do nativismo, especialmente nos países da Europa Ocidental.
OP - Houve avanço da extrema direita em países como França, Alemanha, Itália e Áustria; Embora não tenha maioria no parlamento, esse avanço é significativo? A que se deve esse avanço dos extremistas em países "de peso"?
Fancelli - A análise é extremamente relativa. Embora a União Europeia tenha 27 membros, França, Itália e Alemanha representam, juntas, cerca de metade da população do bloco, metade do Produto Interno Bruto (PIB) e um terço dos 720 assentos do Parlamento Europeu. O fato de pelo menos 40% dos franceses terem votado em partidos de extrema direita e de um terço dos italianos terem apoiado o Fratelli D’Italia, sigla da primeira-ministra Giorgia Meloni, cujas raízes estão no Movimento Sociale Italiano, fundado em 1946 por membros do Partido Fascista Nacional de Mussolini, é preocupante. Esse partido ainda usa símbolos tricolores do MSI, reconhecidos na Itália como uma conexão com o passado. Na Alemanha, apesar de a Alternative für Deutschland (AfD) ter ficado em segundo lugar, isso ocorreu em um contexto de alta participação eleitoral, com 64,78%. Na Itália, a participação foi de 48,3% e na França, 51,5%. Esses dados destacam a preocupação com o crescimento de movimentos de extrema direita em países chave da União Europeia.
OP - Nesse contexto, o presidente Emmanuel Macron dissolveu o Parlamento na França. Quais os impactos dessa medida, que, apesar de prevista na Constituição, gera repercussões no mundo todo? Não seria um risco para o presidente fazer isso agora?
Fancelli - O termo que tem sido utilizado para descrever a atitude de Emmanuel Macron é “aposta”. Ele pode ter tomado essa decisão para tentar formar uma coalizão ampla, que tem sido chamada de “Frente Republicana”, com o objetivo de mobilizar os eleitores que não votaram — que são quase metade do eleitorado do país — para conter o extremismo e, assim, renovar a legitimidade de seu governo, já enfraquecido pela derrota nas urnas. No entanto, também é possível que essa ação resulte em uma maior mobilização da extrema direita, o que poderia levar Jordan Bardella, pupilo de Marine Le Pen e com apenas 28 anos, ao cargo de primeiro-ministro. Se isso ocorrer, Macron perderia o controle sobre temas cruciais da política interna francesa, já que essas responsabilidades passariam para o novo primeiro-ministro, restando a ele apenas as áreas de defesa e política externa.
OP - O que pode mudar no Parlamento Europeu com a queda dos verdes? Até que ponto as questões ambientais perdem espaço? Ou a manutenção daquele Centro democrático, tanto à direita como à esquerda, mantém um status quo no Parlamento?
Fancelli - Certamente. Um dos maiores derrotados nessas eleições foi o grupo dos partidos verdes, apesar de terem tido um desempenho razoável em alguns países do norte da Europa. Essas questões ambientais podem perder um espaço significativo, tanto em termos de adesão a demandas nos acordos comerciais, que exigem que os países signatários cumpram certos pré-requisitos ambientais, quanto em relação às ações internas do próprio Parlamento Europeu, que será responsável por estabelecer novas metas de emissões de carbono até o ano de 2040. Esse papel poderia ser parcialmente assumido pela centro-esquerda e centro como um contraponto ao aumento do número de extremistas. Possivelmente até conseguindo resultados positivos, já que, historicamente, os partidos da direita radical no Parlamento Europeu têm enfrentado dificuldades de organização, frequentemente votando de forma divergente em diversos temas. No entanto, isso pode mudar agora, dependendo da maneira como esses grupos se estruturarem.
OP - Em relação à Rússia, o que pode mudar na política europeia num contexto de guerra e tensões constantes, mas também dependência?
Fancelli - Grande parte das políticas externas e militares da União Europeia são responsabilidade dos governos nacionais dos 27 Estados-membros, o que significa que as decisões não são centralizadas, mas resultam de acordos entre esses países. Embora alguns partidos de extrema direita tenham uma inclinação pró-Rússia, como o Rassemblement National, de Marine Le Pen, e a Alternative für Deutschland, que enfrentou escândalos envolvendo ligações com agentes russos, os resultados das eleições europeias não devem ter um impacto imediato no apoio à Ucrânia. Até agora, a Ucrânia recebeu mais de US$ 150 bilhões em ajuda, conforme dados do Conselho Europeu. As decisões conjuntas sobre sanções e auxílio militar são amplamente influenciadas pelos estados individuais, que também são as principais fontes de financiamento da assistência humanitária. No entanto, enquanto o apoio da UE à Ucrânia pode não mudar imediatamente devido à estrutura descentralizada de tomada de decisões, o aumento do apoio a partidos de extrema direita com posturas pró-Rússia pode sinalizar uma possível mudança no futuro, caso esses partidos cheguem ao poder a nível dos governos nacionais, potencialmente alterando o equilíbrio das decisões políticas dentro do bloco europeu.
OP - E no campo das políticas migratórias, quais seriam os efeitos? Estas podem sofrer algum tipo de retrocesso a partir da nova configuração parlamentar?
Fancelli - O Parlamento Europeu exerce uma influência significativa nas políticas de imigração da União Europeia, atuando de forma conjunta com o Conselho da União Europeia no processo legislativo. Ele tem o poder de aprovar, rejeitar ou propor emendas a projetos de lei relacionados à imigração. Além disso, desempenha um papel crucial na supervisão da implementação dessas políticas, exigindo relatórios e organizando audiências públicas para garantir a aplicação justa e eficaz das leis de imigração. O Parlamento também influencia a alocação do orçamento da UE, direcionando recursos para programas de gestão de fronteiras e integração de migrantes. Ele adota resoluções que moldam a opinião pública e pressionam por mudanças políticas, além de aprovar acordos internacionais sobre migração, assegurando que estejam alinhados com os valores da UE.