Um promotor idealista, uma jornalista de grande jornal e um advogado de esquerda, que foi professor de ambos, são personagens ficcionais escolhidos pelo desembargador Marcelo Semer para retratar a Lava Jato, no romance histórico Duas fotos: um romance do Brasil da Lava Jato.
O magistrado entrelaça a vida das três personagens com a trajetória da operação que marcou os últimos dez anos de política no Brasil, com os desdobramentos. Inclusive com as mudanças de percepção sobre os acontecimentos que se desenrolavam diante deles, em particular na perspectiva da jornalista.
Semer é criminalista, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), foi presidente da associação Juízes para a Democracia e crítico da Lava Jato. Escreveu várias colunas em veículos de comunicação sobre a operação, algumas das quais foram reunidas em coletâneas que viraram livros. Em Duas fotos, ele retorna à ficção, depois de 15 anos, para retratar os fatos políticos e jurídicos do momento.
Em conversa com O POVO durante a breve passagem a Fortaleza para o lançamento do livro, Semer analisa os erros da Lava Jato, a postura dos principais atores e também os aprendizados que ficam para a política, o Judiciário e a imprensa.
OP - O senhor usou três personagens para falar da Lava Jato: jornalista, promotor e professor. Imprensa e Ministério Público tiveram papel muito evidente na operação. Por que contar essa história dessas três perspectivas?
Semer - Existe um triângulo afetivo entre eles. O Camilo, que é o advogado, foi professor de ambos. A jornalista começa o curso de Direito e ela sai. Eu queria personagens que tivessem um ponto de contato. A gente vai contar a Lava Jato e o que continua. Então, vai ser algo em torno de uns dez anos da história brasileira. Lava Jato, o impeachment, depois o (Jair) Bolsonaro, pandemia.
A ideia era reunir personagens que pudessem se encontrar, pudessem travar o encontro deles no começo e que cada um fosse trilhar o seu caminho, entre seus encontros e desencontros. O professor é progressista, militante, petista, que faz uma crítica ácida à militância contrária. Já o promotor, Arthur, é do Estado de São Paulo. Embora ele não atue na linha de frente da Lava Jato, mas houve algumas intersecções.
Uma denúncia protocolada lá, a conexão com a Lava Jato e ele faz a figura do combatente da corrupção. Encarna não como uma falseta, mas como uma coisa do seu cotidiano mesmo. Acha que o Ministério Público defendeu muitas coisas interessantes, meio ambiente, menores e tal, mas ele vai se reunir com a sociedade quando combater a corrupção. É isso que a sociedade espera. São dois personagens, digamos assim, em campos opostos.
E a jornalista, Maria, faz uma coisa meio pendular. Ela é uma petista, jovem, ambientalista, passa a trabalhar num grande jornal, numa época em que há várias denúncias de corrupção contra o PT, o governo do Lula. Já começa a ficar um pouco arisca com o que ela pensava antes. E quando mergulha na Lava Jato, começa a ver uma série de inconsistências. Ela vai orbitar entre esses dois lados. É um pouco aquilo que a mídia acabou por fazer, porque foi um grande suporte à Lava Jato.
A nossa política dos últimos dez anos foi muito dominada por dois grandes agentes: o Judiciário e a mídia. Quase tudo que foi político no Brasil passou pelos tribunais ou passou pela imprensa fortemente.
E, quando a Lava Jato ruiu, estava lá a mídia também. Então acho que ela faz o percurso. A nossa política dos últimos dez anos foi muito dominada por dois grandes agentes: o Judiciário e a mídia. Quase tudo que foi político no Brasil passou pelos tribunais ou passou pela imprensa fortemente. Eu tinha de encontrar personagens que pudessem mostrar esse trânsito, o trânsito do promotor com o jornalista, o repúdio da esquerda com o jornal, que chamava de PIG, o partido da imprensa golpista.
"Não quero falar com você" etc e tal. E a própria dinâmica do jornalismo. A mídia foi um suporte da opinião pública, sobretudo na Lava Jato, no impeachment. Mas, por outro lado, quando chegam as informações, também ajuda a descortinar o que estava na sombras da Lava Jato. Eu acho que faz essa mutação.
OP - De um magistrado a gente normalmente esperaria um ensaio ou uma tese. Por que esse recurso do romance para fazer uma interpretação sobre esse fenômeno?
Semer - Durante o tempo da Lava Jato, impeachment, eu escrevi vários artigos. Eu tinha uma coluna no Terra Magazine, depois na revista Cult. Eu e colegas de coluna lançamos dois livros, Brasil em fúria e Brasil despedaçado. Era a nossa forma de entender a intersecção entre direito e política, o que estava acontecendo.
Mas, eu acho que isso é um tipo de leitura que esgota muito rapidamente. Primeiro, elas vão ficando datadas com o tempo. Aquele artigo sobre aquela coisa. Depois, tem um público muito restrito. O público daquelas pessoas que querem ler um ensaio sobre isso. E são ensaios muito fundamentados, a jurisprudência, a doutrina. Isso acaba sendo uma coisa que tem um público muito limitado.
A minha ideia era tentar passar esse Brasil a limpo dessa última década explicando algumas coisas que têm a ver com direito, explicando algumas coisas que têm a ver com a mídia, mas de uma forma que atraísse as pessoas para ler. Porque é a sua história. Todo mundo viveu. Lógico, quem é muito jovenzinho não vai ler o livro, mas todo mundo viveu isso. Mas, a gente teve tantos escândalos e processos que a gente já não lembra mais.
Eu tentei fazer um guia para a pessoa ver no seu cotidiano. Para isso, a ficção tem uma grande valia. Você constrói personagens e o leitor tem empatia com personagens, ele gosta ou ele desgosta e acompanha. Você tem uma trama e o eleitor quer saber o que vai acontecer. Várias várias pessoas que leram meu livro falam assim: "Eu não consigo parar de ler". Porque é uma trama. Não vou dizer que é um thriller. Mas é uma trama. O cara quer saber o que vai acontecer logo depois. É uma coisa que o romance, eu tô acostumado a lançar livro jurídico, no direito.
Eu pensei: "Os caras não vão ler, é romance, vai deixar de lado". Exatamente o contrário, as pessoas estão, mais do que os outros livros sérios, jurídicos e tal. Porque, primeiro tem uma linguagem mais atrativa. O cara se afeiçoa a um personagem, quer saber o que vai acontecer, vai na trama. Essa parte ajuda a ganhar o leitor na sensibilidade. Vai ver pessoas, personagens que viveram aqueles momentos. Terá uma personagem que é assessora da Câmara, fulano que morreu de Covid. O outro morreu de não sei o quê. Aquele sentimento, as pessoas vão compartilhar.
Em um texto jurídico, ensaístico, não se consegue muito fazer isso. Você vai tratar das verdades, as posições. Aqui não, humanizam-se essas questões. Traz mais gente para a leitura. Tem essa ideia. Vou contar a história que aconteceu, mas eu vou fazer isso por intermédio de uma trama que vai interessar às pessoas, seduzir as pessoas, sensibilizar as pessoas e por isso elas vai ter um interesse maior para a leitura. Essa era a minha ideia. Qualquer um pode ler.
Um ensaio, o cara tem de ser do meio jurídico, ou político, ou sociólogico para entender. Aqui não, qualquer um pode ler. Vai entender e vai descobrir coisas que viveu, mas não lembrava. Eu tive cuidado de fazer uma pesquisa, eu lembrava de tudo, mas não lembrava exatamente do passo a passo. Ao construir a linha do tempo da Lava Jato e a linha do tempo do impeachment, por exemplo. Você percebe que as coisas acontecem no mesmo dia. Tem várias coisas acontecendo no mesmo dia. E aí, ainda mexendo com uma jornalista. Jornalista tem de cobrir a denúncia contra o Eduardo Cunha ao mesmo tempo que a fase tal da apreensão de não sei o quê. É no mesmo dia que isso aconteceu e a gente não lembra disso tão claramente.
Eu procurei trazer esses recortes para a gente lembrar como essa história foi construída. A gente viveu, mas passou muito tempo. O Brasil tem isso, a gente tem um escândalo a cada mês, a cada dois meses. A gente esquece muito rápido para trás. Eu acho que não tem jeito de a gente se conscientizar sem ter memória. E eu acho que uma das coisas que o romance histórico pode fazer é trazer, é cultivar essa memória.
OP - Por falar em acontecimentos simultâneos, em maio, na mesma semana, as condenações da Odebrecht foram anuladas, o inquérito da Lava Jato sobre Renan Calheiros e Romero Jucá foi arquivado e o TSE rejeitou a cassação do Sergio Moro. A Lava Jato já teve um poder, até se falou que emparedou o STF. O momento me parece ser de esquecer o que aconteceu.
Semer - Passar uma borracha.
As pessoas perderam o respeito ao Supremo, o Supremo é visto como um inimigo da pátria e, portanto, eu não vou aceitar o resultado que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) deu, eu não vou aceitar.
OP - Pode ter outro refluxo futuro, uma reabilitação?
Semer - Politicamente, pode até ser. Engraçado você tocar nesse assunto. Na semana em que eu lancei pela primeira vez, em São Paulo, o livro, tinha acabado de acontecer o afastamento de quatro juízes pelo corregedor do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Minha esposa falou: "Você ganhou de presente, explodindo a Lava Jato".
Meu editor queria publicar em março, ela faz dez anos. Acabou saindo em abril. Curiosamente, você tem razão, decisões do (Dias) Toffoli (ministro do STF), parece que ela fez dez anos e deu uma reenergizada em relação a isso. Há frase captada pela Vaza Jato, do Deltan Dallagnol, profética. Estão discutindo questão processual, imunidade. Ele fala o seguinte: "A gente só perde se perder a opinião pública". É uma frase profética.
A Lava Jato, houve um momento em que galvanizou a opinião pública e ninguém contrapunha a ela, nem o Supremo. Mas ela gradativamente foi perdendo esse lastro na opinião pública. Não dá para dizer diretamente. Mas a gente sabe que as duas coisas aconteceram. Houve um desgaste na opinião pública e houve uma mudança do Supremo. É possível que ela seja resgatada no futuro? Pode ser.
Em termos de processo, eu acho que não vai não vai sobrar. Em termos de prestígio político, sabe que eu acho que não. Porque a Lava Jato continua. O modus político. Principalmente, eu acho que a figura nesse caso é o Deltan Dallagnol, a partir do momento em que ele começa a ver o Supremo — eu conto isso no livro — questionando a competência eleitoral.
A segunda turma (do STF) começa a dar uma decisão: isso aqui é crime eleitoral (o que anulou condenações e transferiu o processo para a Justiça Eleitoral), ele e Diogo Castor, os dois que saíram do Ministério Público, eles fazem artigos duríssimos contra o Supremo. "Ah, vem aí a operação abafa". Esses artigos foram os primeiros que chamaram atenção do Toffoli, que mais tarde vai juntar com os bolsonaristas para abrir o inquérito das fake news.
Essa luta que o Deltan Dallagnol, sobretudo ele, vai fazendo com o Supremo, e vai desprestigiando o Supremo, vai xingando, vai estimulando as pessoas contra o Supremo, já há versões bem avalizadas na ciência política de que isso é foi um combustível para o 8 de janeiro. As pessoas perderam o respeito ao Supremo, o Supremo é visto como um inimigo da pátria e, portanto, eu não vou aceitar o resultado que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) deu, eu não vou aceitar.
Esse pessoal da Lava Jato, não vou dizer que todos, lógico, algumas pessoas se desgarraram. Mas, sobretudo, essa linha mais extremista do Deltan Dallagnol, eles levaram isso até o extremo. Eu acho que tem uma participação, acaba tendo uma responsabilidade, inclusive, na depreciação dos poderes que leva ao 8 de janeiro. Não vou dizer que ele queria que acontecesse isso, mas esse estímulo que ele deu para a depreciação dos poderes foi importante. E ele continua.
Agora se aferrou ao Elon Musk, lá nos Estados Unidos, porque não via mais outra guarida. Isso acabou enfraquecendo a questão política da Lava Jato. Você falou do Sergio Moro. É curioso, o Deltan foi para um lado, que é o lado do confronto absoluto. O Sergio Moro foi para o lado da conciliação. Desde que ele está com esse processo lá, ele foi conversar, foi na sabatina do Flávio Dino. Deu um abraço, tomou cacetada dos bolsonaristas. Mas ele foi lá, fez questão de dar um abraço.
Ele foi conversar com o Gilmar Mendes. Foi um episódio humilhante, o Gilmar Mendes o chamou de ladrão de galinha na cara dele, mas ele foi lá. Acabou a decisão agora (contra a cassação), ele elogiou. Enquanto o Deltan fez um percurso de confronto e foi cassado, o Sergio Moro fez um percurso de conciliação. A mensagem que o Moro passa ao governo é o seguinte: "É ruim comigo, é pior sem mim".
Porque pode vir um bolsonarista muito forte, especulava-se até que a Michelle (Bolsonaro) poderia ser candidata ao Senado (pelo Paraná, numa eventual nova eleição para a vaga, no caso de cassação de Moro). Acho que tudo isso pesa. Tem dois fronts, acho que separaram bem essas situações. O Deltan foi ao confronto e o Moro foi para a conciliação.
Não à toa, o Deltan foi cassado e o Moro não foi cassado. Havia motivos para cassar o Moro? Havia motivos para cassar o Moro, mas não é uma infringência à lei escrita, mas uma jurisprudência, o tribunal fez essa avaliação. Acho que é uma decisão possível, mas outra visão também era possível. Mas eu acho que o prestígio da Lava Jato como teve antes, eu acho que não volta. Porque uma parte daquelas pessoas que prestigiaram a Lava Jato entrou no bolsonarismo radical.
Sei lá se dá para dizer no bolsonarismo radical, mas entrou num extremismo de querer acabar com os poderes, não confiar nos poderes. Isso acabou se atritando. Saíram de uma disputa política da normalidade democrática. Tentativa de golpe, que parece bem caracterizada. Aqueles atores lá, eles tomaram caminhos diferentes e eu acho que aquele prestígio não volta mais. E também tem essa questão do que eles fizeram.
O Sergio Moro, no auge da coisa, ele larga mão de ser juiz para ser ministro do Bolsonaro, que mais hora ou menos hora vai acabar preso. Queria ser ministro do Supremo. Colocou a vaidade e o projeto pessoal dele na frente daquilo. Eu acho que aí começou o desgaste da Lava Jato.
OP - Essa vinculação ao governo Bolsonaro, o Dallagnol saindo para se candidatar também, isso é determinante para essa perda da opinião pública?
Semer - Eu acredito que sim. Primeiro, o Sergio Moro larga o processo em andamento. Tanto é que teve a decisão que foi dada pela juíza ( Gabriela Hardt), não foi por ele. Ele foi ser ministro do candidato que ganhou a eleição porque o Lula foi preso. Não sei se o Lula ganharia a eleição naquele momento, mas ficou uma coisa assim: "Olha, eu prendi o Lula e virei ministro". A imprensa estrangeira deu isso, inclusive. ("Bolsonaro nomeia juiz que ajudou a prender Lula", foi o título do Financial Times). A impressão não foi boa.
Depois ele foi para a imagem de o caçador de corruptos, o grande combatente da corrupção, trabalhar com o Bolsonaro. O Bolsonaro e a família Bolsonaro, os interesses do Bolsonaro eram inconciliáveis. O Bolsonaro passou uma carreira inteira a custa de rachadinhas, botando os filhos na política. Era muito difícil você unir as coisas. A ideia que o Bolsonaro tinha era de que o Moro era o xerife que ia limpar a sua imagem.
Mas, corre o governo, não é isso que acontece. Uma das primeiras coisas que o Moro faz antes de tomar posse, mas já indicado, é dizer que Bolsonaro não tem nada de se explicar mais com relação à questão do Queiroz. Isso foi em dezembro de 2018. Ele acabou tendo de entrar. E quando está ministro da Justiça, ele mandou perseguir o porteiro não sei da onde, mandou o aparelho de segurança nacional contra alguém que falou do Bolsonaro.
Ele foi obrigado pelas circunstâncias, assinou o projeto, acabou não vingando, para a ideia do excludente de ilicitude, ou seja, para aumentar a letalidade policial. Acabou assinando, coonestando aquela farra das armas. O Moro foi perdendo aquele prestígio da mídia, na opinião pública. Isso que fez com que a Vaza Jato tivesse respaldo.
Se a Vaza Jato chega na hora em que ele está por cima, a imprensa vai ignorar. "Isso aqui é prova ilícita, não vale, isso aqui é criminoso". Mas ela chega quando ele já está meio balançando. Quando sai a Vaza Jato, dois ou três dias depois, o que o Bolsonaro faz? Como o Moro vai retomar sua imagem? O Bolsonaro leva o Moro a um jogo do Flamengo lá em Brasília. Uma coisa tosca, né. O Moro é do Paraná. Deve torcer, sei lá, para o Coritiba ou o Athletico. Veste uma camisa do Flamengo como se fosse um populista. Que ele não é. O Bolsonaro é um líder carismático, ele pode fazer isso. Ele faz toda hora. Mas o Moro não é.
Então, ele ficou numa situação muito fragilizada, foi se fragilizando. Qual a resposta que ele deu para a Vaza Jato? Olha, eu não sei se isso é verdade, mas, se for verdade, está normal. Quer dizer, usou duas possibilidades, fragilizou sua defesa também. Foi indo abaixo, até a hora em que o Bolsonaro quis se livrar dele, já não interessava mais ele no governo.
Essa vaidade de querer tocar o seu projeto político acabou fragilizando. Porque eles são incompatíveis, na verdade. Um projeto jurídico e um projeto político são incompatíveis. A mesma coisa de você falar assim: olha, o Alexandre Moraes sai candidato a presidente. Ele perde totalmente o sentido, a moral e o respeito como juiz. Porque vai ficar: "Ah, ele fez tudo isso porque ele queria ser..." Você tem de fazer uma escolha.
E essas escolhas são incompatíveis. Quem tem de fazer essa escolha foi o Flávio Dino, né? E eu acho que a escolha ficou: eu vou para o Judiciário ou eu vou para a Presidência. As duas coisas eu não consigo fazer, ninguém consegue fazer isso. Porque o Judiciário exige um certo grau de imparcialidade que é impossível ter com uma atuação política tão contundente.
OP - Esse foi o grande vício da Lava Jato?
Semer - Eu acho que a Lava Jato teve dois grandes vícios. Eu gosto de explicar assim: primeiro, o vício que acontece nas sombras, que é o fato de eles terem feito uma equipe. Basicamente, o promotor e o juiz faziam dobradinha. Eu costumo falar o seguinte: o processo, de verdade, corria no Telegram.
Lá eles conversavam sobre quando fazer a operação policial, quem colocar na denúncia, qual o tamanho da denúncia, quem devia ser testemunha, como se portar na audiência, qual o tipo de alegação, que recurso fazer, como se portar com a mídia. Lá eram tomadas as decisões. Isso foi escondido. Embora a gente pressentisse que estava acontecendo, que o Moro estava sendo parcial, ainda não tinha esses detalhes tão contundentes.
Quando aquilo mostra, a gente vê que grande problema foi que, como o juiz desde o começo se une à Polícia e ao promotor, ele não tem capacidade de julgar. É um processo que nasceu morto. Acho que esse foi o maior problema. A outra perversão não aconteceu na sombras, ela aconteceu nos holofotes. Houve um excesso de visibilidade. Por quê? Porque o Moro, que já tinha estudado a operação Mãos Limpas (na Itália).
Ele escreveu um artigo sobre operação Mãos Limpas em 2004, dez anos antes da Lava Jato. Ele fala que o que deu certo lá foi que todas as prisões foram imediatamente transpostas para a mídia, para a imprensa e foram gerando outras prisões. Ele aprendeu com aquilo lá que a mídia, a imprensa, podia fortalecer a opinião pública e quebrar a resistência dos outros poderes, do Judiciário lá em cima, do Poder Legislativo, etc.
Então, o que o Moro faz? Ele joga com a mídia desde o começo. Todo processo famoso, vocês (jornalistas) vão atrás, não tem jeito. As pessoas querem saber, vocês vão atrás. Mas, na Lava Jato, a mídia não foi penetra no processo, ela foi uma convidada vip. Porque ela ajudou com os vazamentos. Os vazamentos, eles foram construindo uma narrativa. Vazar isso aqui agora, vazar aquilo agora, aquilo lá. E o que ele não queria que vazasse, ele não lavou.
Eu vejo isso como uma traição ao Judiciário, pegar a mídia para fortalecer a sua decisão. Como o Moro conseguiu enfrentar o Supremo? No começo, o Teori Zavascki deu uma liminar em habeas corpus para o Paulo Roberto Costa. O Moro, como juiz, tem de fazer a informação. Ele fez uma informação que mandou para a mídia. O jornal publica e tal. O Teori Zavascki ficou meio comprimido. O cara fez uma resposta, uma defesa do ato. Ele voltou atrás. "Não, tudo bem".
A partir daí, ele foi contando com a mídia e com a opinião pública. A opinião pública estava francamente favorável. Tem de lembrar. Isso se viu na rua. Faziam aqueles bonecos dos ministros do Supremo. Uma perversão foi o que eles fizeram escondido, a união do promotor com o juiz, impedindo que houvesse Justiça.
Não há Justiça quando o juiz está com uma das partes. E a outra coisa foi o que eles fizeram à luz do dia, um excesso de mídia para fortalecer a decisão do juiz. Quando isso vai caindo, se vê as falhas da decisão do juiz, ela cai. Há um momento de tanta euforia que ninguém consegue barrar, nem o Supremo conseguiu barrar. Supremo foi margeando, para cá, para lá. Não decidia. Por exemplo, a questão da competência.
A competência estava toda errada. De repente, um processo que era de corrupção de uma empresa do Rio de Janeiro e feita pelos políticos de Brasília. A competência era Curitiba, porque lá eles pegaram o doleiro que seria o delator. Doleiro que, preso, foi grampeado na cela e essas informações foram utilizadas. Desde o começo, isso deveria ter sido anulado.
Esse grampeado na cela não é brincadeira, tem um inquérito que concluiu isso, mas não conseguiu chegar em quem foi, quem fez. Quando a Lava Jato foi ruindo, houve uma grande disputa jurídica. Edson Fachin dizendo: "A Lava Jato errou na competência". Vamos anular. E o Gilmar falou: "Não, errou na suspeição". No fim, ganhou o Gilmar, pegou na suspeição. Mas, na verdade, era uma coisa conjunta. A competência era do Moro porque ele era suspeito. É porque ele estava conluiado que tudo ficou na mão dele. Todos os processos foram ficando na mão dele. Ficou uma coisa gigante.
Quando começa a análise jurídica, isso vai saindo. Aí começou a discussão do MPF criticando o Supremo. O que o Supremo falou? Espera aí, vocês estão xingando a gente e o bolsonarismo está indo junto. Aí fizeram o inquérito das fake news. E aí começa essa briga. Começa com as críticas da Lava Jato, sobretudo o Deltan Dallagnol e o Diogo Castor, que estavam querendo impedir que o Supremo fizesse uma análise jurídica da questão da competência. Supremo enrolou para fazer isso. Pra cá, pra lá. Aí sentou para fazer.
E quando fez, os processos começaram a ser anulados, indo para a questão eleitoral. O cara estava dando dinheiro para a campanha de deputado, para a campanha de não sei o quê. E aí eles perceberam o que ia começar. E aí entraram em uma luta desenfreada. Mas, com a Vaza Jato, foi impossível não ver que havia erros cruciais. E aí não tem como manter um processo se o juiz está aliado com uma das partes. Não tem como. Vai ter não vai ter condição para julgar um processo desses.
OP - Como foi acompanhar tudo isso de dentro da magistratura? Em algum momento o senhor viu perspectiva de algo de bom?
Semer - Desde o começo, eu achei que havia vários erros. O primeiro deles é que todas as delações estavam baseadas na prisão preventiva ou na ameaça de prisão. Você está baseando praticamente todo o seu processo em delatores, sendo que o delator tem um grande estímulo para delatar. Porque, se ele delata, ele não vai preso. Criaram esse sistema a gente falava na época: "Olha, isso aqui é prisão para delação". Não pode fazer isso.
O segundo, que chamou muita atenção, foi a condução coercitiva. Fizeram a condução coercitiva do Lula. Quando eu me deparei com isso, fui criticar no Twitter, alguém falou: "Não, doutor, isso aqui já tem mais de 100 conduções coercitivas". É um absurdo isso, isso não existe na lei. A gente faz condução coercitiva de uma testemunha que não quer vir. Então, a gente manda lá: "Faça a coerção para ela vir".
Mas não faz isso com indiciado, porque ele pode vir ou não vir. E não, jamais, de alguém que não foi intimado. Eles faziam isso não para ajudar o processo, mas para quebrar a perna da defesa. Fazia ao mesmo tempo várias pessoas, enquanto fazia busca e aprensão, leva o cara para falar. Ele nem sabe o que foi apreendido, o que não foi. Era uma pegadinha. Uma coisa que não está na lei e vai contra a defesa é inconstitucional.
O Supremo foi dizer isso mais para frente, mas ele demorou para dizer isso. E quando ele diz isso, fala assim: "Não, vou olhar só para frente, eu não vou olhar para trás". Já era o caso de dizer: fez condução coercitiva? Anula o processo. Já podiam ter feito isso lá atrás. Foram várias. A questão da competência, a questão da condução coercitiva, a questão da prisão para delação. Eles faziam acordo para a pena e esse acordo não estava lastreado na lei.
Aplica a pena bem mais baixa, está fazendo a defesa. Por que isso é errado? Porque dá um benefício que não existe na lei, um benefício além da lei, que é muito forte para o cara querer delatar a outra pessoa. Falando assim, "comprando" a delação com uma coisa que é irregular. Tudo isso era um conjunto de coisas que mostrava. E aí, essa questão da mídia opressiva, ou seja, os vazamentos. Toda hora tem vazamento, tem vazamento aqui, tem vazamento ali. Tudo isso que a gente ouviu é ilegal. Até a hora em que o Moro divulga a conversa. É aí que eu começo o livro.
Quando ele divulga a conversa da Dilma com o Lula. Eu vou contando a história dos personagens, correndo todo mundo junto para aquele dia. Naquele dia, o que os três fizeram. Chega a ser absurdo. A gente sabe que essas coisas vazam. A Polícia manda, o promotor manda. Mas a gente nunca sabe, porque o jornalista é isento. Recebeu, ele publica e ele não fala de quem, porque não tem obrigação de declarar a fonte. Mas, naquele caso, o Moro passou. Ele fala isso, que passou.
OP - Ele tirou o sigilo.
Semer - Ele tirou o sigilo e mandou lá para o Jornal Nacional, a gente sabe muito bem disso. Passou de todos os limites, mas ele apostou o seguinte: Isso vai fazer com que a Dilma caia. E fez com que a Dilma caísse. Porque o Gilmar Mendes deu uma decisão proibindo o Lula de toma posse. Quando você vê a conversa toda, o Lula está sendo convencido a entrar num barco porque, com o Lula lá, o pessoal acalma. E com a Dilma, as pessoas não confiavam nela.
Mas, a imagem que passou é: o Lula está indo lá para tentar escapar do Sergio Moro. E aí criou-se toda uma outra narrativa. Quando a gente soma tudo isso, vê que existiam questões políticas partidárias envolvidas no meio. Aí não dá para se juntar. Você não pode julgar e fazer política partidária ao mesmo tempo. É inconciliável.
Os procuradores, naquela conversa da da Vaza Jato, eles denunciam lá: "O Moro está lançando, uma semana antes da eleição, a delação do (Antonio) Palocci. Vai influenciar a eleição". Tem muita gente com consciência naquele grupo que estava lá. "Eu não gostei disso", entendeu? A gente foi vendo toda essa questão, mas a mídia central, ela foi ignorando, foi ignorando. Hoje não ignora mais.
OP - O que ficou de legado para o sistema de Justiça, para a sociedade e para a imprensa?
Semer - Para o Judiciário, que é o que mais me interessa, eu acho que ficou de legado o seguinte: nós não fazemos parte de equipe. A jurisdição é solitária. Não tem essa de o juiz discutir com promotor para fazer alguma coisa. Não. Segundo, nós temos uma função contramajoritária. Portanto, nós não podemos nos render à opinião pública. Às vezes dá uma decisão de que as pessoas gostam. Às vezes dá uma decisão de que as pessoas não gostam.
Quando eu entrei na carreira, 34 anos atrás, o pessoal dizia o seguinte: "Olha, você vai dar uma decisão, uma das partes não gosta. Às vezes as duas" (risos). Você não vai ficar querido pelas suas decisões. O juiz não é para ser querido. Ele tem de ter esse poder decidir contra a maioria. Contra a maioria não quer dizer: exatamente porque o povo quer, eu quero outra coisa. Não. É não se subordinar. O que a Vaza Jato ensinou é exatamente isso: a opinião pública leva o Judiciário e o Judiciário pode se unir a outros no combate à corrupção. Essas duas coisas, a gente tem de tirar no nosso vocabulário.
Aliás, o legislador fez isso também. Primeiro, com a lei do abuso de autoridade, para dizer os limites do que o juiz pode fazer ou não. Segundo, o juiz de garantias. Vão ter dois juízes diferentes. Aquele que vai mexer no inquérito não vai julgar o processo. Por que? Porque ele está contaminado. O grande exemplo disso é o Sergio Moro.
O Sergio Moro estava contaminado por outros motivos, mas é um exemplo que a gente pega. Para a sociedade, combate à corrupção não é a luta do bem contra o mal. Toda vez que a gente olha a corrupção como uma perversão moral, dá errado. A gente vai tratar pessoas como heróis e pessoas como bandidos. Você pega o bandido, ele é tão bandido que você não dá direito de defesa para ele. Então, lá na frente, o processo vai ser anulado. E o herói, você desculpa tudo dele. E porque você desculpa tudo dele, porque ele não tem limites, ele vai te atrapalhar também.
Também vai fazer isso, como a gente viu em todo lugar. E acaba se engalanando, vira político. Não é isso que funciona. Como é que se faz o combate à corrupção? Estabelecendo mecanismos de transparência. Lei de Acesso à Informação, transparência, são os mecanismos que você usa para isso. O Moro foi ministro da Justiça e não avançou em nada disso, nada. Ele só pensou no processo judicial, querendo dizer o seguinte: "Eu vou aumentar a pena, eu vou tornar mais rigoroso, as pessoas não vão cometer crimes". Isso é uma infantilidade.
A mídia, eu acho que ela tem de aprender é o seguinte: não existe uma verdade absoluta que alguém te entrega de bandeja. A mídia tem de fazer aquilo que ela sabe fazer: desconfiar das suas fontes, ter outras fontes paralelas então. Quando você pega reportagem policial, era muito comum que a mídia se pautasse pelo que fala o delegado. O delegado falou, a polícia falou, acabou. Mas não é verdade. Tem o outro lado. Ela aprendeu a fazer isso. Mas, quando chegou o promotor e falou, "ah, aí não, foi o promotor". Não, mas tem outro lado também.
A mídia, não sei se ela aprendeu ou não, mas não glorificar as pessoas. A gente tem de ser contra a corrupção, porque ela esvazia a República. Mas um endeusamento também esvazia a República. O princípio da impessoalidade. Não existem pessoas perfeitas, todas têm de ter controle, todos têm de ter limites, cada um na sua função.
O juiz não é mais que o promotor nem que o delegado. São funções diferentes, cada um faz a sua. O juiz não tem que está com o delegado e dizer: "Olha, você vai fazer aquilo lá hoje, agora". Está errado fazer isso. Como vai discutir com o promotor como vai ser a denúncia. Não. Ele (Moro) chegava a dizer: "Essa delação eu não vou homologar". Ele só vai falar no final, depois que fizer acordo. Ele nem tem conhecimento antes. Talvez o que a gente tenha aprendido é: cada um tem de ficar no seu espaço.
A mídia ficar no seu espaço de ouvir os dois lados, fazer o contraditório, desconfiar das fontes. Lógico, é legal para o jornalista quando ele recebe uma informação exclusiva. Mas ele tem também de saber se não está a serviço de alguém. O Judiciário, a gente tem de aprender que o que a gente tem de mais valioso é a imparcialidade. Sem isso, não tem jurisdição. As pessoas têm de olhar para você e perceber: "Você é um juiz imparcial". "Ah, você tem uma posição". Não interessa tua posição, você é de direita ou é de esquerda. Isso pouco importa.
Quando você julga um processo, com as partes lá, você não está no meio de nenhuma das partes, você não está envolvido com nenhuma das partes. É isso que as pessoas têm de saber. Isso é essencial. E a gente não pode ir a reboque da opinião pública. Senão o juiz acaba sendo réu. O Moro, quando chega na hora de julgar, ele não podia absolver. Ele chegou num tal ponto em que ele não podia mais absolver. Estava lá, a expectativa era essa. Não pode ter expectativa. O juiz tem de julgar. Se a gente chega no fim do processo e, assim, não tem prova. Você tem de absolver.
Existem vários processos que quando chega lá, processos graves, mas não tem prova. A gente só sabe disso na sentença, quando a gente vai olhar com calma tudo que a defesa e acusação estão falando. Você olha e: "Não tem prova mesmo". Eu tenho de estar livre para fazer isso. Agora, se eu estimulei o público a sair na rua para essa condenação, como é que eu vou falar que não tem prova? Eu vou ser linchado. Acho que essas são as lições.
Duas fotos é o segundo romance de Marcelo Semer. Ele lançou, em 2008, Certas Canções, ficção ligeiramente autobiográfica que ele define como "diário político-sentimental de um estudante nos anos 80".
Semer é autor também de obras como Entre salas e celas: dor e esperança nas crônicas de um juiz criminal, Sentenciando tráfico: o papel do juiz do grande encarceramento, Crime impossível e a proteção aos bens jurídicos e Princípios penais no Estado democrático.
A entrevista, de pouco mais de meia hora, ocorreu no hotel na Beira Mar onde o magistrado estava hospedado, pouco antes do lançamento do livro. Ele chegou no sábado, conversou com O POVO e minutos após o check-in. Iria embora no sábado.