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"Nossa Cara": entenda as candidaturas coletivas e o que levou ao fim da ‘mandata’ em Fortaleza
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"Nossa Cara": entenda as candidaturas coletivas e o que levou ao fim da ‘mandata’ em Fortaleza

Candidaturas coletivas enfrentam impasses na legislação, mas a existência segue como forma de resistência ao modelo tradicional do parlamento
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MANDATO coletivo Nossa Cara foi formado por Louise Santana, Adriana Gerônimo e Lila M. Salu (Foto: BARBARA MOIRA, em 4/3/2021)
Foto: BARBARA MOIRA, em 4/3/2021 MANDATO coletivo Nossa Cara foi formado por Louise Santana, Adriana Gerônimo e Lila M. Salu

As eleições de 2024 marcam o primeiro pleito após uma experiência de candidatura coletiva eleita no Ceará: “Nossa Cara”, na Câmara Municipal de Fortaleza. Após quatro anos, o cenário segue incerto na legislação deste tipo de conjuntura e, no caso cearense, o grupo não concorrerá em conjunto no pleito deste ano.

A “mandata”, como as integrantes se denominaram em 2020, continha três mulheres negras na formação: Adriana Gerônimo, Louise Anne de Santana e Lila M. Salu. Destas, apenas Adriana concorre à reeleição e o grupo, como um todo, será dissolvido.

Ao O POVO, a candidata afirmou que um único mandato do Nossa Cara era o plano “desde o início”, em 2019. “A gente já trazia uma proposta de concluir um mandato coletivo e projetar três novos quadros de mulheres negras para a cidade”, explica.

“Então, não é o fim da ‘Nossa Cara’ é o encerramento de um ciclo, que foi muito vitorioso. A gente conseguiu, de fato, aproximar a população ao parlamento e levar as demandas dos movimentos sociais, de educação, de cultura, de moradia, para dentro da Câmara Municipal”, disse.

Segundo a vereadora, apesar de encerrada, a experiência do coletivo “mostrou que é possível fazer uma alternativa à política, uma coletividade para além da representação de quem compõe a chapa do mandato.”

Ela citou a participação popular, a formação de um projetos de leis a muitas mãos, como méritos do mandato.

O POVO tentou contato com Louise Anne de Santana e Lila M. Salu, integrantes do ‘Nossa Cara’, que informaram não ser possível conceder entrevista no momento.

Como funcionam as candidaturas coletivas

Adriana é a representante legal do mandato coletivo da ‘Nossa Cara’, enquanto as outras duas parlamentares são consideradas co-vereadoras de maneira informal. Ou seja, em 2020, era o nome de Adriana que constava no sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e, na Câmara, ela é a representante a comparecer presencialmente em todas as sessões e a poder discursar no plenário.

No entanto, o intuito dos mandatos coletivos é que as decisões sejam discutidas entre o grupo e tomadas em conjunto, por duas ou mais pessoas. A hierarquização ocorre devido à falta de regulamentação eleitoral deste tipo de candidatura. O sistema não permite que mais de um nome seja cadastrado e concorra com um mesmo número.

No Parlamento, a atuação dos coletivos também não se difere de um parlamentar único. Apenas um representante comparece e participa das sessões.

Ou seja, a única diferença no processo eleitoral e na atuação, legalmente, é a possibilidade de presença de um “nome coletivo”, apenas, conforme explica o advogado Fernandes Neto, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE).

“Mesmo que coletivo, a atuação é limitada àquele candidato principal que é registrado. No aspecto do Direito, não existe candidatura coletiva no Brasil. Se elege uma pessoa para estar lá”, afirma o especialista.

A divisão interna do mandato também não é definida por lei e fica a cargo de cada coletivo dividir (ou não) bens e funções. Recebe-se apenas um salário e, legalmente, nem mesmo a divisão é obrigatória.

“É uma eleição que existe na prática eleitoral, mas não tem reflexo oficialmente, não impõe nenhuma das candidatas que participaram ou a candidata eleita, a dividir, de partilhar mandato. O que existe é uma obrigação moral” afirma Fernandes Neto.

Candidaturas coletivas enfrentam impasses na legislação

Essa carência de definição legal existia nas eleições de 2020 e segue presente no pleito de 2024. Nos últimos quatro anos, chegou a ser discutida no Congresso Nacional uma regulamentação dessas candidaturas, mas nada foi concretizado.

A tendência no Legislativo é de ir contra os mandatos coletivos. A Câmara, em 2023, aprovou emenda à minirreforma eleitoral (PL 4438/23) que proíbe candidaturas coletivas. No Senado Federal, a tramitação está paralisada, o que permitiu a participação de postulantes nesse tipo de formato em 2024.

“No Brasil, as candidaturas proporcionais já são feitas dentro do coletivo partidário, a sigla participa do lançamento da candidatura. Então, estaríamos falando de um coletivo dentro de outro. Por isso, há resistência legislativa”, diz o advogado Fernandes Neto.

Na prática, os impasses na legislação afetam a atuação dos coletivos na Câmara. Adriana Gerônimo citou “maneiras criativas” que o coletivo encontrou de atuarem em meio às proibições. “Conseguimos cobrar ações, mostrando o vídeo das co-vereadoras no plenário, então não necessariamente era só a minha voz que o povo de Fortaleza escutava”, exemplifica.

Segundo a parlamentar, é preciso que a regulamentação ocorra a nível nacional, para que “ônus e bônus” sejam distribuídos de maneira fixa, no parlamento e dentro das coletivas.

“Temos muita esperança de que consigamos avançar, com reformas políticas que garantam mandatos coletivos, enquanto isso vamos com muita criatividade, garantindo que as pautas e a representação coletiva seja alcançadas”.

Por que existem candidaturas coletivas?

A existência dos coletivos em meio aos impasses legais ocorre, segundo Fernandes Neto, como forma de resistência à forma tradicional de fazer política no Parlamento brasileiro: individualidade e homogeneidade de candidatos.

“No Brasil, criou-se as candidaturas coletivas para dar condição a vários candidatos que não conseguiriam, unicamente, concorrer à eleição. Não teriam o dinheiro suficiente, por exemplo. Assim, conjuntamente, eles conseguem acessar o poder, com cargos proporcionais”, disse o advogado.

Ou seja, mesmo que legalmente os mandatos se diferenciem pouco dos tradicionais, na prática, as candidaturas coletivas trazem uma participação maior, uma descentralização do poder na mão de um único político, na tomada de decisões.

Para o advogado Fernandes Neto, essa característica não é apenas mais democrática, como aproxima a atuação parlamentar dos verdadeiros propósitos dela. “Há uma fonte de captação de interesses eleitorais muito mais diversificada do que seria com uma pessoa. Os coletivos são uma resistência à individualização das candidaturas no Brasil, principalmente dentro do aspecto das oligarquias partidárias.”

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