Outrora à margem da sociedade, principalmente no que diz respeito ao cenário político, a temática do autismo ganhou visibilidade nessas eleições municipais de 2024, em Fortaleza. Praticamente todos os candidatos a prefeito da capital cearense têm propostas focadas em pessoas inseridas no Transtorno do Espectro Autista (TEA), o assunto tem sido tratado nas redes sociais dos candidatos, em inserções diárias nas mídias sociais e veículos de comunicação, e até nos debates a causa tem pautado parte dos embates entre as candidaturas.
Na pesquisa Datafolha encomendada pelo O POVO e publicada no último dia 13 de setembro, os eleitores foram questionados sobre quais propostas na área da saúde são avaliadas por eles como as mais importantes. A maior nota dada foi justamente para propostas de criação de espaços para crianças autistas, com 9,4 em uma escala de 0 a 10.
O resultado talvez ajude a entender os motivos pelos quais os candidatos demonstrem hoje um maior interesse para a questão das pessoas com TEA. Mas será que essa bandeira autista é genuína?
O POVO conversou com Daniela Botelho, presidente da Associação Fortaleza Azul (FAZ), uma associação sem fins lucrativos que se caracteriza pela união para a realização e a consecução de objetivos e ideais em comum para a causa das pessoas com TEA. Ela tem uma visão nada otimista desse foco dado pela classe política. "O autismo está em alta, é falado, divulgado, coisa que não acontecia há cinco ou seis anos. Virou palanque, até porque a comunidade autista é muito grande. Parece que agora todo mundo quer levantar a bandeira do autismo, já aconteceu na eleição há dois anos, novamente agora, mas só aparecem em época de eleição, vislumbram os votos da comunidade. Depois somem", esbraveja.
Ela afirma que muitos pedem apoio durante o período eleitoral, mas a instituição é apartidária e não realiza esse tipo de ação. Há, no entanto, alguns políticos que buscam a instituição com o real intuito de ajudar, fora do período eleitoral, mas esses poucos não buscam qualquer exposição, nem pedem algo em troca, explica.
Para Daniela, também houve um aumento no número de candidaturas para vereador com foco na comunidade autista. "Alguns nós sabemos que estão nessa área há tempos, na luta, mas há muita gente nova, que não tratava desse assunto, ou está tentando entrar agora na política", explica.
A presidente da FAZ vê um crescimento da temática no período eleitoral em todas as capitais brasileiras, com menos alcance em cidades do Interior. "Está todo mundo querendo ganhar às custas do autismo", reclama.
O neurologista infantil André Cabral concorda que há um crescimento no interesse da classe política pelo autismo. O médico ressalta haver exceções, mas no geral não são bandeiras da maioria fora do período eleitoral. "A questão das pessoas autistas deve sir ser muito levantada, todos têm um filho, parente ou conhecido dentro do espectro. É necessário que se invista na causa, em campanhas de informação, em formação de profissionais capacitados e em inovação", explica.
O que os candidatos a prefeito propõem para pessoas autistas
André Fernandes
Capitão Wagner
Eduardo Girão
Evandro Leitão
George Lima
Sarto
O tamanho do problema
O neurologista André Cabral destaca que, apenas em Fortaleza, há cerca de 22 mil crianças e jovens dentro do espectro autista, o que faz com que muitas ações, anunciadas por gestores públicos como importantes para a comunidade, tenham na verdade um alcance mínimo em relação à toda a comunidade que necessita de amparo.
No mundo todo há registro de aumento de casos. Em 2000, os Estados Unidos registravam um caso de autismo a cada 150 crianças observadas. Em 2020, houve um salto para um caso a cada 36 crianças, segundo análise publicada em 2023 pelo órgão de saúde Centers for Disease Control and Prevention (CDC).
No Brasil, estima-se em pelo menos 2 milhões o número de pessoas diagnosticadas com TEA. Entretanto, estudos paralelos consideram que essa população possa chegar a 6 milhões.
Segundo a jornalista e deputada estadual Andrea Werner (PSB-SP), menos de 15% das pessoas autistas no Brasil, mesmo com plano de saúde, têm acesso a mais de 10 horas de terapia por mês. Segundo ela, operadores de plano de saúde admitiram, em relatório para a Agência Nacional de Saúde (ANS), que 95% dos beneficiários fazem até três sessões por semana, considerando Terapia Ocupacional (TO), fonoaudiologia, terapia e psicologia. No SUS, quem consegue alguma coisa faz, no máximo, 30 minutos por semana, em grupo.
Para André Cabral, a maior parte das crianças com TEA tem acompanhamento insuficiente no âmbito público, menos de cinco horas de terapias por semana. "O autismo é muitas vezes visto pela classe política apenas como uma fila que tem que ser diminuída. É necessário que haja uma conciliação entre as partes envolvidas no processo, as famílias atípicas, os profissionais de saúde, os planos de saúde e o poder público", sublinha.
Caminho a seguir
O neurologista infantil André Cabral destaca ser necessário um trabalho que esteja dentro das escolas, conscientizando, ensinando. Ele acredita ser necessário buscar parcerias com a iniciativa privada e fazer investimento em soluções inovadoras. "Ou se pensa fora da caixa ou não se resolve nada. Os problemas dos autistas não são combatidos apenas com a construção de grandes prédios", acrescenta.
Cabral defende que se busque inspiração em bons exemplos fora do país, como nos Estados Unidos, onde crianças autistas têm acesso a 20 horas semanais de terapias no ambiente escolar, por exemplo.
Para a presidente da FAZ, Daniela Botelho, as propostas apresentadas não trazem nenhuma novidade. "Só vejo proposta copia-cola, nada que não seja óbvio e já solicitado há muitos anos. Tivemos muito pouca evolução nos últimos tempos, e perigamos inclusive ter retrocessos, há quem queira tirar direitos tão duramente conquistados", afirma.
Parecer 50/2023
Em janeiro de 2024, o Conselho Nacional de Educação (CNE) apresentou o parecer 50/2023, uma atualização do parecer originalmente criado em 2013. O documento traz diretrizes que envolvem o processo de educação de estudantes autistas, e teve participação de educadores externos e internos à comunidade do autismo.
Segundo Daniela Botelho, a homologação do parecer seria de grande importância para a comunidade autista, pois ele trata de parcerias com terapeutas, aplicação de terapia ABA, inclusão de assistente terapêutico (AT) nas salas de aula, dentre outras conquistas.
O contraponto, destaca Daniela, é que essas implementações geram aumento de custos, o que faz com que essa homologação não seja fácil. Segundo ela, o ministro da Educação, Camilo Santana (PT), comprometeu-se a homologar o parecer em abril, mas não o fez e as discussões estão paradas. "Há uma campanha de bastidores contra o parecer, manipulando informações. As instituições de todo o Brasil que lutam pelo autismo estão revoltadas", lamenta.
Há, inclusive, uma campanha nas redes sociais, com milhares de assinaturas, que visa pressionar Camilo Santana a homologar, puxando pela hashtag #homologacamilo.