As eleições de 2024 já são um marco na história dos debates eleitorais no Brasil. Com o acirramento político entre candidaturas de espectros opostos, - que aumenta ano a ano -, episódios inusitados e até casos de violência entre candidatos e seus staffs se multiplicaram (ver quadro). O que transfigurou um espaço antes destinado a proposições e discussões sobre temas da vida real e que impactam diretamente no cotidiano das cidades.
O fenômeno, visto sobretudo na disputa pela prefeitura de São Paulo, escancara uma crise no modelo de debate, que pode se agravar a partir da introdução de novos perfis e posturas de candidatos, que introduzem elementos de caos a fim de produzir os famosos “cortes”, trechos para se autopromover em seus respectivos perfis nas plataformas digitais. O POVO ouviu cientistas políticos e especialistas em comunicação para entender o fenômeno e o que pode ser feito para que o debate atinja seu objetivo primordial, informar o eleitorado.
Rodrigo Prando, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, avalia a nova realidade e destaca o quão nociva pode ser para os objetivos da política. “A política tem se tornado o espaço do espetáculo, cuja forma é pensada para gerar cortes, memes e lacração, mas é vazia de conteúdo; perdendo, portanto, sua essência. Essa violência é resultado de uma sociedade hiperconectada em rede (...) Um dos candidatos em São Paulo (Marçal) entende muito bem a lógica e começou logo no início a provocar outros candidatos e isso desestabilizou o ambiente, culminando no episódio da cadeirada”, lembra.
O professor argumenta que a prática é nociva porque afeta toda a dinâmica dos debates. “O debate existe para apresentação de ideias, trajetórias e propostas. Figuras como o Marçal conseguem que não só eles não apresentem nada de propostas, mas que outros candidatos façam o mesmo, devido ao clima gerado. Quando um debate degenera para a violência, ele se torna a ausência da política, a antipolítica”, conclui.
Eugênio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), faz um comparativo entre o modelo de debates no Brasil e o que é aplicado nos Estados Unidos. “Debates entre candidatos nos Estados Unidos contam com a presença de uma mediação jornalística muito mais atuante do que o que vemos aqui. A cultura brasileira e nossos políticos veem o papel do jornalista como uma espécie de mestre de cerimônia; alguém que dá a palavra, controla o tempo, explica as regras”, avalia.
E segue: “Nos debates dos EUA, o jornalista e seu suporte estão conferindo as afirmações (ditas pelos candidatos) e se o sujeito está contando uma mentira factual ele é desmentido. Ele pode ser contestado (pelo mediador). E o debate, com isso, ganha mais. Mas nós não temos essa tradição, em boa parte porque não temos essa cultura”, encerrou durante webinar promovido pelo Observatório da Imprensa na semana passada.
Apesar do empobrecimento dos debates, os eventos têm gerado bastante engajamento sobretudo nas redes sociais. Prando cita estudo divulgado, neste ano, pela Universidade de São Carlos em parceria com pesquisadores da USP sobre o “engajamento pelo ódio”.
“Os pesquisadores sabem que existe um descrédito na política, mas perceberam um aumento nas filiações partidárias e eles quiseram entender o porquê. Chegaram ao conceito de engajamento pelo ódio e constataram que uma parte substancial dos que se filiam não fazem por questões de valores, agenda ou ideologia, mas se engajam com um partido porque odeiam o outro. É uma situação complexa, e esses episódios nos debates geram atenção. Esse engajamento não é propositivo, é um engajamento que acirra e polariza”.
Prando cita ainda um paradoxo criado por determinados personagens em debates. “Marçal encarna a pós-verdade porque trata com as emoções da opinião pública, distanciando-se da realidade. Quando se tem figuras que se apresentam para um debate desrespeitando as regras, você cai no paradoxo da tolerância que é: ‘devemos ser tolerantes com aqueles que são intolerantes? Devemos abrir espaço, à luz do preceito da liberdade de expressão, para aqueles que têm discurso de ódio e fake news?’ É uma garantia democrática, mas ele usa o espaço antidemocraticamente para amesquinhar a política”, conclui.
Os especialistas ouvidos pela reportagem projetaram ainda que, a partir dos episódios vistos, sobretudo em São Paulo, é possível que instituições repensem a lógica e as regras do debate e que em algum momento a Justiça Eleitoral poderá criar mecanismos para coibir figuras que não tem apreço pela democracia e tentem gerar tumultos nos debates.
Ponto de vista: Debates eleitorais e a experiência democrática
A realização regular das eleições no Brasil legou-nos expectativas quanto àquilo que é próprio do “tempo da política”. Assim, tão logo o período eleitoral se anuncia, observamos, do ponto de vista legal, a realização de convenções, registro de candidaturas, formalização de coligações; do ponto de vista político, contudo, o que se espera são os debates entre os candidatos, entrevistas, divulgação de pesquisas de intenção de votos e sabatinas, tudo isso acompanhado da midiatização da esfera pública, que passou a impor a gramática da publicidade às disputas eleitorais.
Os debates televisivos, assim, se estabeleceram como componentes indispensáveis do jogo eleitoral. Não custa lembrar a edição do debate da TV Globo entre Lula e Collor, em 1989, e sua edição que, para alguns, determinou o resultado daquela eleição. A emissora, inclusive, detém até hoje o monopólio, a cada eleição, da realização do último debate antes do dia do voto.
Em 2014, logo após a realização do debate no SBT, a então presidente Dilma chegou a quase desmaiar em cadeia nacional. Isso sem falar em personagens que viralizaram, mesmo antes da lógica das redes que nos rege, como respostas que saíram do script formal que a política parecia exigir (“ah, você quer me calar?”, “chupa aqui pra ver se sai leite”).
Debates, embora não sejam itens obrigatórios à democracia, se tornaram exigências das eleições. Envolvem planejamento, realização e, sobretudo, repercussão. Ali estão os candidatos sozinhos, com o que sabem sobre a cidade e com seu próprio ethos, enfrentando adversários e intentando produzir imagens de preparado, forte, qualificado etc.
Até 2022, contudo, os debates ficaram restritos, quanto à sua realização, aos grandes grupos de comunicação, sobretudo as TV´s, prática que foi consideravelmente alterada pela entrada em cena das redes sociais, que transformaram a esfera pública, pluralizando as possibilidades de cobertura da eleição. Aí veio 2024 ... e, com ele, Marçal e a eleição da cidade de São Paulo.
Sem a obrigatoriedade de convidá-lo, as emissoras optaram pela aposta na repercussão que sua presença traria às imagens produzidas pela performance agressiva do ex-coach. O que vimos foi uma circulação em massa de mentiras, violência verbal e física a adversários e jornalistas. Sem falar na cadeirada e sua tentativa frustrada de mitificação.
O formato dos debates se engessou; por vezes, os muitos convidados não permitem respostas elucidativas, sobrando espaços aos montes para ataques e fugas do que está em questão. E até para agressão. Os realizadores precisam munir-se de estratégias que, na condução do debate, force os candidatos ao respeito às regras do jogo, em especial à veracidade de informações e ao decoro democrático.
Por Emanuel Freitas, Professor de Teoria Política (Uece) e pesquisador do Lepem-UFC
Quadro: A nova realidade dos debates em 2024
Em meados de setembro, durante debate com os candidatos à Prefeitura de São Paulo o candidato José Luiz Datena (PSDB) agrediu o candidato Pablo Marçal (PRTB) com uma cadeirada após uma série de provocações. A organização do debate, a cargo da TV Cultura, interrompeu a transmissão após o ocorrido.
Marçal provocava Datena citando uma denúncia de assédio sexual (arquivada). Datena rabeteu e então Marçal voltou a provocar. "Você não respondeu à pergunta. A gente quer saber. Você é um arregão. Você atravessou o debate esses dias para me dar tapa e falou que você queria ter feito. Você não é homem nem para fazer isso. Você não é homem", disse.
Instantes depois, as imagens mostraram Datena se aproximando por trás de Marçal e desferindo um golpe com uma cadeira que estava posicionada no púlpito ao lado do candidato do PRTB. Datena acabou expulso do debate e Marçal não retornou.
O debate seguinte, promovido pela Rede TV virou notícia antes mesmo de acontecer. Isso porque foi informado que cadeiras seriam parafusadas para evitar novos episódios de agressão como o visto no debate da TV Cultura. Datena e Marçal estiveram presentes, mas não houve novas ocorrências de agressão física.
Um assessor de Pablo Marçal desferiu um soco no rosto do marqueteiro da campanha do prefeito Ricardo Nunes (MDB) durante o debate do grupo Flow em setembro. Fato ocorreu após Marçal ser expulso pelo apresentador por infringir regras. O assessor de Nunes teve um corte no rosto e ficou sangrando depois da agressão. O debate foi interrompido e posteriormente retornou para um encerramento.
Debate promovido pelo O POVO contou com um momento de confronto entre os candidatos André Fernandes (PL) e George Lima (Solidariedade). Após Fernandes chamar Lima e outro candidato de "inexpressivos" e "puxadinho do PT", o candidato do Solidariedade reagiu. Em fala durante seu tempo no debate, contra-argumentou e soltou uma das frases mais emblemáticas da campanha: "Chupa aqui pra ver se sai leite". Posteriormente, Lima utilizou a fala como uma espécie de slogan de campanha.
Em agosto, o prefeito de Teresina e candidato à reeleição Dr. Pessoa agrediu outro candidato, Francinaldo Leão (PSOL), durante o primeiro debate deste ciclo, realizado pela Bandeirantes. O prefeito se aproximou do adversário durante uma dinâmica em que ficavam frente a frente. Quando o candidato do Psol iria responder, o gestor se aproxima e desfere uma cabeçada contra Francinaldo.
A estratégia de Marçal para tumultuar ambiente de debates ocorre desde o início do ciclo eleitoral. No primeiro debate em SP disse que parte de seus adversários era usuário de cocaína foi quando afirmou que dois de seus adversários são usuários de cocaína. Durante um debate fez um gesto, insinuando o uso da substância por um dos adversários. Ele não apresentou provas para embasar a alegação.
Em outro momento, Marçal provocou o candidato Guilherme Boulos (Psol) segurando uma carteira de trabalho na frente do adversário durante debate promovido pelo Estadão. O episódio começou durante o terceiro bloco do debate. Posteriormente, Boulos comparou a candidatura de Marçal à de Padre Kelmon nas eleições de 2022. "Veio para tumultuar", disse o psolista na ocasião.