Logo O POVO+
O vaivém da direita e da esquerda na política sul-americana
Politica

O vaivém da direita e da esquerda na política sul-americana

Disputa entre projetos da esquerda e da direita tem sido marcada por alternância de poder. Em alguns casos, as mudanças ocorrem de uma eleição para a outra, sem que os governantes consigam emplacar continuidade ou eleger sucessores
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
RIO de Janeiro (RJ), 18/11/2024 - Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva recebe o presidente da Argentina Javier Milei, durante cumprimentos aos líderes do G20. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República (Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República)
Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República RIO de Janeiro (RJ), 18/11/2024 - Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva recebe o presidente da Argentina Javier Milei, durante cumprimentos aos líderes do G20. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Na última década, a América do Sul registrou uma verdadeira dança das cadeiras entre políticos da esquerda e da direita em diferentes países. Guardados os devidos contextos locais, apresenta-se um padrão que vem ocorrendo em países-chave da região como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Uruguai. Nestes locais, foram registradas mudanças de rumo - e governos -, num recorte histórico mais recente (ver gráfico).

Na América do Sul essa alternância não chega a ser um fenômeno raro ou recente. Nos momentos de democracia e sem a vigência de golpes militares na região, foram registradas as chamadas "ondas" de esquerda ou de direita ao longo do tempo.

Em alguns casos, as mudanças ocorrem de uma eleição para a outra, sem que os governantes consigam emplacar uma reeleição ou mesmo fazer sucessores. O exemplo mais recente foi no Uruguai, onde o candidato da Frente Ampla (esquerda) Yamandú Orsi venceu o direitista Álvaro Delgado, candidato apoiado pelo atual presidente Luís Lacalle Pou.

O POVO ouviu especialistas em Relações Internacionais e cientistas políticos sobre os motivos que levam a este vaivém entre esquerda e direita, com projetos tão distintos disputando na região.

Brasil e Argentina, principais economias da América do Sul, são exemplos cristalinos. Em 2016, a presidente Dilma Rousseff (PT) sofreu impeachment, após cerca de 13 anos da esquerda no poder. Michel Temer completou o mandato nos dois anos e meio restantes e foi sucedido por Jair Bolsonaro (hoje no PL), face da direita radical no País que chegou ao Palácio do Planalto em 2018 ao derrotar Fernando Haddad (PT). Bolsonaro não emplacou o segundo mandato e perdeu em 2022 para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), marcando o retorno da esquerda.

Na Argentina, cenário similar. Cristina Kirchner, representante de centro-esquerda do peronismo, era presidente e não conseguiu fazer o sucessor, Daniel Scioli, que perdeu para Mauricio Macri, da direita. A vitória de Macri pôs fim a 12 anos de kirchnerismo.

Depois de Macri, o peronismo retornou à Casa Rosada quatro anos depois com Alberto Fernández, que, ano passado, também falhou em emplacar o sucessor Sergio Massa e perdeu para o ultradireitista Javier Milei, atual presidente argentino.

O professor Fabio Gentile, PhD em Filosofia e Política pela Universidade L’Orientale de Nápoles e pós-doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), aponta fatores que influenciam na movimentação em cada país.

Para Gentile, ocorre um desgaste de projetos e do sistema de governo predominante. “Um fator a ser considerado é que a América do Sul tem um perfil institucional de presidencialismo de coalizão. Um modelo, que na minha opinião não funciona muito bem aqui, não garante governabilidade, gera problemas e conflitos entre os poderes. É algo que pode impactar também nestas mudanças de pouco em pouco tempo, gerando guinadas”.

O especialista destaca a “personalização” da política como um problema. “Estamos numa época em que há uma personalização exacerbada da política. Essa personalização limitou bastante aquilo que era a dialética esquerda e direita. Existiam duas visões de mundo diferentes, mas com a personalização o eleitor escolhe, muitas vezes, o líder político antes de avaliar a coalizão de esquerda ou direita. E o presidencialismo facilita isso”, reforça.

As mudanças de comando frequentes sinalizam ainda uma dificuldade de governos em emplacar os respectivos projetos. Por outro lado, mostra que quando estão na oposição, os espectros políticos têm, aparentemente, mais facilidade em dialogar com a população.

“Todos os governos, de direita ou esquerda, falharam em alguma medida. Parece que com algumas diferenças, todos estão numa lógica de austeridade e corte nas políticas públicas”, explica Gentile. E segue: “Isso gera populismo e, quando se está na oposição, fica mais fácil criar a narrativa de que quem está no poder é corrupto, ineficaz. Mas quando se chega ao poder é necessário seguir lógicas e agendas que não tem como burlar”, conclui.

Iago Caubi, mestre em Relações Internacionais e pesquisador do Núcleo de Estudos de Geopolítica, Integração Regional e Sistema Mundial (GIS), vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entende que “sempre é mais fácil” fazer oposição do que governar independentemente da ideologia. “A dificuldade dos partidos tradicionais se comunicarem com o eleitorado se dá por diversos motivos, como, por exemplo, o surgimento das redes sociais como principal espaço de difusão de ideias. Até pouco tempo atrás, partidos, sindicatos, espaços públicos e as relações pessoais eram a principal ferramenta de difusão ideológica vinculada à realidade diária das pessoas”.

Além disso, Caubi destaca que quem vence a eleição não se torna, necessariamente, dominante. “A polarização alcança grande parte das democracias ocidentais e a vitória de um sobre o outro geralmente se dá por distâncias pequenas, além disso, no caso do Brasil, a vitória eleitoral para o Executivo não é necessariamente uma grande vitória, uma vez que o Congresso guia as despesas e pode dificultar ou facilitar a vida do governo vencedor”, finaliza.

 

 

Alternância é reflexo de insatisfação generalizada com partidos, diz pesquisador

As trocas corriqueiras e em curto espaço de tempo em países da América do Sul chamam a atenção pelo padrão que vem se repetindo em diferentes países. Sobre a movimentação, O POVO conversou com Iago Caubi, mestre em Relações Internacionais e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Geopolítica, Integração Regional e Sistema Mundial (GIS-UFRJ).

O POVO - Ultimamente diversos países do mundo vem registrando movimentos de alternância de poder em curto espaço de tempo. Na América do Sul não é diferente. Ao que você atribui essas mudanças de rumo de modo geral?

Iago Caubi - O rumo do eleitorado não segue uma dinâmica descolada do debate econômico e produtivo internacional. Desde a crise de 2008, a economia no ocidente não se recuperou completamente. O deslocamento produtivo e industrial rumo à China, a desindustrialização em países europeus, o desemprego, a emergência climática e a ascensão da extrema direita são alguns fatores que ajudam a explicar a dificuldade de discursos políticos tradicionais em propor mudanças com as ferramentas institucionais. Não por acaso, o discurso antiestablishment ganhou muita força nas últimas décadas. A América do Sul, inserida em uma Divisão Internacional do Trabalho sofre deste mesmo processo econômico, social e político, salvo suas características próprias. Desta forma, é possível compreender que esta alternância não é necessariamente ideológica e sim reflexo de uma insatisfação generalizada com as instituições e partidos de ambos os espectros ideológicos que falham em garantir o bem-estar social.

OP - Cada país tem seu contexto próprio, mas o cenário se repete. Na região temos exemplos claros no Brasil e na Argentina, onde projetos extremamente opostos alternam poder recentemente. Existe um padrão? Por que se dá?

Caubi - Essa alternância de projetos não se deu apenas na última década, mas historicamente. É assim nas repúblicas latino-americanas por uma série de fatores. São repúblicas com forte influência da instituição militar, que por diversas vezes tomou o poder em prol de projetos personalistas e pouco vinculados a projetos reais de desenvolvimento social e econômico. Além disso, as elites econômicas formadas nesses países também estão fortemente vinculadas aos interesses econômicos europeus e americanos, muitas vezes faltando reflexões e projetos nacionais de desenvolvimento que realmente busquem suprir as demandas da maioria da população e assegurar bem-estar social. A Argentina possui a especificidade de sua economia dolarizada e dificuldade em sua cadeia produtiva e exportadora de garantir moeda internacional que corresponda à sua demanda. Tanto a esquerda quanto a direita vêm falhando em construir saídas para estes problemas.

OP - Até que ponto a percepção do que ocorre em países da vizinhança pode afetar a realidade política de um país e a preferência de seus eleitores?

Caubi - "Os países não estão isolados nas relações internacionais, uns possuem influência nos outros, seja através da economia, da geopolítica, da cultura ou do conjunto desses fatores. Em países vizinhos, essas relações estão ainda mais interconectadas".

Lições valiosas da eleição uruguaia

A vitória de Yamandú Orsi no 2º turno das eleições presidenciais do Uruguai, no último domingo, trouxe novo ânimo às forças de esquerda na América do Sul. Além de marcar o retorno da Frente Ampla - coalizão de centro-esquerda que governou o país por 15 dos últimos 20 anos -, a eleição de Orsi representa uma bem-vinda injeção de ânimo nas esquerdas sul-americanas, que amargaram reveses eleitorais importantes em 2023 no Paraguai, Equador e, sobretudo, na Argentina.

O entusiasmo com o resultado uruguaio alimenta expectativas sobre uma possível retomada de um ciclo progressista na região. Com a posse de Orsi, seis dos doze países sul-americanos estarão sob governos de esquerda, um dado relevante, mas insuficiente para sugerir o retorno de um "giro à esquerda" nos moldes da chamada Onda Rosa, termo pelo qual ficou conhecido o período inaugurado pela vitória de Hugo Chávez, em 1999, e marcado por sucessivas vitórias eleitorais de candidatos vinculados à esquerda.

Mais do que ciclos ideológicos, a política sul-americana tem sido marcada por uma tendência de voto anti-incumbente, uma dinâmica também evidente em outras partes do mundo, como nos Estados Unidos, no Reino Unido e na França. Intensificada pela pandemia, essa lógica reflete o descontentamento crescente com o aumento da desigualdade, da pobreza e a percepção de ineficácia dos governos em lidar com essas questões.

Embora o voto de protesto possa, em tese, ser interpretado como sinal de vitalidade democrática - ao punir governos impopulares -, o que se observa na prática é que essa insatisfação frequentemente favorece lideranças de extrema direita, que exploram fragilidades institucionais para minar os pilares do sistema democrático.

Nesse contexto, o pleito uruguaio se apresenta como uma singularidade que oferece lições valiosas. O processo eleitoral no Uruguai destacou-se pela normalidade: debates programáticos, respeito às instituições e ausência de tensões ou rupturas. Esse cenário contrasta com episódios recentes de instabilidade na região, como a tentativa de golpe no Brasil, a escalada de violência no Equador, os impasses na Venezuela e o estilo histriônico de Javier Milei na Argentina.

A Frente Ampla, por sua vez, soube aproveitar o período na oposição para renovar sua estrutura, fortalecer suas bases sociais e ampliar sua capilaridade. O partido conseguiu recuperar espaço na sociedade sem renunciar a propostas progressistas para enfrentar temas sensíveis, como previdência social e segurança pública - desafios comuns a governos de toda a América do Sul.

Neste sentido, embora os contextos locais imponham limites aos compromissos e agendas possíveis, o triunfo de Orsi mostra que as possibilidades da política permanecem maiores do que os diagnósticos pessimistas frequentemente sugerem.

O que você achou desse conteúdo?