Em 2009, a legislação eleitoral foi alterada para deixar ainda mais clara a obrigatoriedade da apresentação de no mínimo de 30% e o máximo de 70% com candidaturas de um mesmo sexo nas chapas para eleições de deputados e vereadores. Apesar de 15 anos da mudança, em 22 municípios do Ceará, nestas eleições de 2024, pelo menos um partido não respeitou o que manda a lei.
Os dados foram extraídos de levantamento feito pelo Observatório Nacional da Mulher na Política da Secretaria das Mulheres da Câmara dos Deputados, com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O POVO teve acesso às informações e constatou o descumprimento da legislação em 22 municípios. Em três deles, mais de uma sigla não seguiu a cota: Itaitinga, Baturité e Pacatuba.
Os dados são contabilizados considerando as chapas apresentadas pelos partidos ao TSE. No Ceará, as candidaturas femininas foram 36,11% do total, com 4.413 candidatas em um universo de 12.222 pessoas concorrendo. Em 162 municípios, todos os partidos respeitaram a lei, gerando um percentual de 88,04% de cumprimento.
O partido que mais descumpriu no Estado foi o Agir. Deixou de alcançar a taxa mínima exigida em quatro municípios dos 17 em que teve chapa de vereadores. A seguir veio o Republicanos, com descumprimento em três dos 72 municípios em que lançou candidatos à Câmara Municipal.
Ao O POVO, presidente estadual do Agir, Carlos Kleber de Sousa Chaves, ressaltou que entrou em contato com os quatro diretórios e foi explicado que nenhum se encontra com pendências na Justiça Eleitoral nesse sentido. As instâncias explicaram que precisaram fazer substituições por desistências de candidatos e para adequação à cota. Segundo ele, todas as pendências foram corrigidas.
"O que foi aconteceu em dois municípios, quando foi feito o registro das candidaturas quando foi constatado (o desconforme), um homem fez a renúncia da candidatura para ajustar. Os ajustes ocorreram. Por isso, não estou entendendo, porque no TSE não está dizendo isso. Não está aparecendo essa inconsistência", afirmou. "Eu garanto que se houvesse, os diretórios municpais tivessem feito isso seriam penalizados", pontuou ainda.
O presidente do Republicanos, Chiquinho Feitosa, também foi consultado. O ex-senador ressaltou que o Republicanos está presente em 164 dos 184 municípios do Ceará. "Em todas essas cidades, participamos direta ou indiretamente das eleições, enquanto diretório estadual, tivemos o cuidado de orientar a todas as municipais em relação a formação de chapa", pontuou.
E seguiu: "Tivemos o mínimo de problemas possíveis, no entanto, a estudal não assume nenhuma responsabilidade pelas municipais".
A maioria dos partidos descumpriram em, ao menos, um município. União Brasil, Solidariedade, PSD, PSB, PP, Podemos, PL, Novo e MDB, além do próprio Agir e Republicanos, aparecem na listagem, assim como PT, Solidariedade, Cidadania, PSDB, Rede e PDT.
Não descumpriram a cota em nenhum município cearense: Avante, DC, Mobiliza , UP, PMB, PSTU, PRD, PRTB, PCdoB, PV e Psol. Esses partidos que não desrespeitaram a cota disputaram com chapas em poucos municípios.
O número de municípios em que algum partido descumpriu a cota cai para 19 quando são consideradas as federações em vez dos partidos de forma isolada. Um caso é o Cidadania em Fortaleza. De 17 candidatos, 5 foram mulheres e 12 foram homens, o que bateu a porcentagem em 29,4%, abaixo do mínimo de 30%. No entanto, quando se considera a federação formada com o PSDB, a meta é alcançada e o partido deixa de configurar o descumprimento.
O mesmo acontece com o PT em São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Dos 12 candidatos, apenas 3 eram mulheres, sendo, então, 25% das vagas ocupadas por elas. O partido é federado com o PCdoB e com o PV, que somam, cada um, dois candidatos, um homem e uma mulher. Assim, a federação contabilizou 16 candidatos, 5 mulheres e 16 homens.
Na prática, a junção beneficia os partidos na hora da distribuição das cadeiras nas casas legislativas. Os votos dos partidos que integram a federação são somados e aplicados os quocientes eleitoral e partidário. A federação ajuda legendas menores a superarem a cláusula de barreira e continuarem a existir. No entanto, os partidos, individualmente, perdem autonomia e passam a atuar quase como se fossem uma só sigla.
A questão é que o cumprimento da cota pela federação não "perdoa" o desrespeito pelos partidos que a compõem. O número mínimo deve ser atendido tanto pela lista de candidaturas da federação quanto individualmente pela lista de cada sigla que a integra, de acordo com resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovada em dezembro de 2021.
Em 2022, justamente a federação composta por PT, PV e PCdoB fez consulta ao TSE sobre a resolução. As agremiações perguntaram ao Tribunal: 1) como se daria o atendimento à cota de gênero caso uma das legendas unidas em uma federação decidisse lançar apenas uma candidatura para a eleição proporcional e 2) se o percentual mínimo de 30% poderia ser cumprido exclusivamente na lista da federação.
A resposta da maioria dos ministros à consulta foi o de que a legislação não “admite qualquer interpretação” que busque esvaziar a determinação constitucional de diminuir a disparidade de gênero no cenário político eleitoral brasileiro.
Afinal, o que acontece quando os partidos não cumprem o que manda a legislação eleitoral? Existem duas opções, como explica a advogada Lívia Chaves, mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. No processo da eleição, os partidos inscrevem na Justiça Eleitoral o Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap), um processo maior que junta todos os registros de candidatura de quem vai concorrer.
"Se o Drap, que é justamente para demonstrar regularidade daquele partido, ele não atesta que há de fato o cumprimento dos 30%, nem deferido ele vai ser. Cabe impugnação pelo Ministério Público, por outro candidato. Isso é discutido dentro desse Drap e, se verificar que não foi cumprido, ele é indeferido. Aqueles candidatos nem são lançados”, explica a advogada.
Ela aponta ainda que, mesmo sendo difícil, caso o Drap seja deferido, aquela chapa vai estar passível de ser alvo de ação.
O mais comum, explica Lívia Chaves, são partidos cumprirem a legislação, mas se valerem de candidaturas laranjas, o que configura fraude. A situação fraudulenta não se dá com partidos que, naqueles municípios, em princípio, descumpriram a cota. Normalmente a situação é identificada em siglas que aparentemente cumpriram a cota no município, mas se valeram de fraude para isso.
A advogada lembra que a cota em si existe desde 1997, quando foi estabelecido o mínimo de 30% de candidaturas de mulheres. Havia a obrigação da reserva de vagas, porém não do preenchimento. Assim, se o partido podia lançar 100 candidatos, tinha de reservar pelo menos 30 para mulheres. Porém, se lançasse 70 candidaturas de homens e nenhuma de mulheres, a regra era atendida.
A nova lei muda o termo “deverá reservar” para “preencherá”, reforçando a obrigatoriedade no preenchimento das vagas por candidatura de cada os sexo.
“O que se observou, com o tempo, foi uma tentativa, na prática, de burla à essa ação afirmativa, com o que se conhece pelas 'candidaturas laranja' ou fictícias. Então, observando isso, foi que a Jurisprudência do TSE foi evoluindo para começar a punir esse tipo de caso”, explicou.
O TSE definiu os requisitos que caracterizam a fraude e as suas consequências. "Quando se comprova, por meio de uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral, ou por meio de uma Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, que houve, de fato, fraude à cota de gênero, é de rigor a aplicação da penalidade pela Justiça Eleitoral, inexistindo qualquer medida por parte do Congresso que impeça ou vá de encontro a essa competência da Justiça Eleitoral", ressaltou.
Lívia Chaves aponta que o número de condenações tem sido “cada vez mais expressivo”. "A Justiça Eleitoral tem sido bastante firme na apreciação e julgamento de demandas que tratam do tema. Somente em 2023, nas sessões ordinárias presenciais, os ministros confirmaram a prática desse ilícito ao julgar 61 recursos", citou.
E seguiu: “Em julgamentos realizados no Plenário Virtual do TSE, de 23 a 29 de fevereiro, houve condenação em 14 municípios de seis estados do país”.
Critérios para avaliar se houve fraude à cota de gênero
Os 30% que constam na legislação acabaram sendo associados, no senso comum, à porcentagem destinada às mulheres nas chapas. Conforme a legislação, no entanto, isso não se confirma. Não há amarras para isso e, na verdade, as siglas são incentivadas a apresentarem mais que o número.
TSE obriga também os partidos a destinar pelo menos 30% dos recursos dos fundos Eleitoral e Partidário usado nas eleições às candidaturas de mulheres e negros. Essa regra se aplica a candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereadores.
O percentual mínimo de mulheres deve ser observado em cada município, mas a distribuição de recursos considera a proporção de candidaturas femininas e o total de candidaturas em nível nacional. O recurso destinado a uma candidata negra é contabilizdo nas duas cotas (sexo e raça). Não há percentual mínimo pré-estabelecido dos dois fundos para candidatos indígenas.
De forma geral, a participação feminina média nas candidaturas a câmaras municipais nos estados oscilou entre 34% a 36%. Em nota técnica, o Observatório Nacional da Mulher na Política (ONMP) três partidos com apresentarem as maiores porcentagens de mulheres em chapas de vereadores no Brasil foram UP (50,93%), PSTU (48,83%) e PCB (48,57%). Os números indicam uma política interna de incentivo à participação das mulheres.
A maioria dos partidos apresenta proporção média de candidaturas femininas acima dos 35%, um pouco a mais que a exigência. Partidos tradicionais como PT, PSDB, MDB, PV, PL e PSB mantêm proporções médias acima de 35%, mas chega a cair para cerca de 25% a 27% em determinados municípios que não alcançam a cota.
Partidos maiores que investiram em chapas em muitos municípios acabam descumprindo mais a legislação. PSDB, PT e PL foram os partidos que mais descumpriram a cota, em termos absolutos. Ocorreu, respectivamente, em 93, 83 e 58 municípios.
“No entanto, é preciso ressaltar que esses partidos lançaram candidatura em um grande número de municípios. Proporcionalmente, todos os três tiveram um grau de “descumprimento” baixo (inferior a 5%)”, ressalta a nota.