Os meses após as eleições são, para muitos, sinônimo de “ressaca eleitoral”. A emoção da campanha ficou para trás, os resultados foram divulgados e o novo governo ainda não começou. Quando o prefeito é reeleito, o impacto é menor. Caso não, a gestão “amorna”: não há mais tempo para grandes projetos ou renovações. Vive-se quase um “limbo” entre o passado, o presente e o futuro.
Para os representantes do poder público, no entanto, o período é de preparação de terreno. Em caso de troca de gestão, mesmo que entre aliados, não se pode simplesmente largar o cargo no dia 31 para que outro assuma no dia 1º. Com as eleições ocorrendo em outubro, os meses de novembro e dezembro tornam-se períodos de transição, nos quais os dois governos dialogam e planejam.
Ou, ao menos, é o que deveria acontecer. Nos últimos anos, ganharam força, no Brasil e no mundo, discursos infundados de descrédito do sistema eleitoral, com reivindicações de vitórias que nunca ocorreram. E, mesmo entre os que respeitam os pleitos e entregam os cargos, muitos o fazem destruindo o que construíram ou dificultando o trabalho do sucessor, especialmente quando ele integra grupos opositores.
Pelas prefeituras do Ceará, não são de agora situações de desmontes no Interior e na Capital, e a corrida pela garantia da continuidade de serviços públicos e da manutenção da democracia. Além de situações reais, que não são poucas, há reclamações que configuram, também, tentativa de desgastar politicamente o adversário.
O período é naturalmente tenso, aponta Paula Vieira, integrante do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídias (Lepem-UFC). "Muda a forma de gerir, a prioridade. E isso ocorre até em processo de reeleição. O plano de governo pode se renovar para continuar ou para ampliar o escopo do plano original. Aí que vem os choques".
A mesma visão é reforçada por Rodrigo Chaves de Mello, professor da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA) e colunista do O POVO+. Ele considera “impossível que um político enjoe do poder”. O poder seria a matéria-prima do trabalho do político, ou seja, quanto mais força e influência ele(a) acumular, maior a capacidade de mobilização e interferência no comportamento dos indivíduos daquela localidade. “Se ele abre mão do poder, se desiste de ter poder, ele está desistindo de ser político”.
Assim, o processo de transição é, simbolicamente, complicado para o político, especialmente o que passa a cadeira para o opositor. Por meio do voto, o projeto de continuidade foi publicamente rejeitado. Não há sinal mais claro da vontade do povo, insatisfeito e em busca de mudanças. Cabe a quem está no poder aceitar e deixar o posto.
É neste ponto que a transição se torna estratégia política, para Paula Vieira. A pesquisadora cita esvaziamento de aparelhos públicos e/ou troca de secretários como táticas utilizadas para prejudicar o acesso a informações e a passagem do cargo.
“Há um distanciamento, exatamente para que quem está assumindo tenha essa dificuldade inicial de acessar as informações. São planos de governos diferentes. Conflitos acontecem por esse jogo político de acesso às informações”, expõe.
Atritos são comuns em Fortaleza; no Estado, vitória da oposição é raridade
Alternâncias conflituosas de poder em Fortaleza são registradas de tempos em tempos. Das dez eleições municipais após a Constituição de 1988, quatro contaram com transições entre opositores. Apesar de parecer, à primeira vista, diminuto, o número é muito superior à configuração no Governo do Estado, por exemplo, onde isso ocorreu apenas uma vez (de Lúcio Alcântara para Cid Gomes, em 2006).
O processo atual em curso na Capital, inclusive, é de troca de projeto político. José Sarto (PDT), derrotado na tentativa de reeleição, passará a faixa de prefeito para Evandro Leitão (PT). Ex-aliados e ex-colegas de partido, os dois protagonizaram grandes embates na campanha eleitoral e Sarto, diversas vezes, concentrou ataques em Evandro. No segundo turno, funcionários e mesmo secretários que declararam apoio ao petista foram exonerados.
Um dia após o resultado final, Sarto reconheceu a derrota e defendeu uma transição tranquila. O processo, todavia, é dos mais conturbados já vistos. Aliados de Evandro denunciam supostos desmontes na Prefeitura. O Ministério Público chegou a entrar com recomendação para que seja assegurada a continuidade dos serviços públicos essenciais. Houve ainda uma ação civil pública movida pela 137ª Promotoria de Fortaleza, em 7 de novembro, para que a gestão garanta o abastecimento de medicamentos e insumos em falta no Instituto José Frota (IJF). Até alimentação tanto para pacientes quanto para funcionários está em falta.
Em todas as três transições com alternância de poder anteriores à atual, houve críticas ao projeto derrotado e à transparência do processo. Curiosamente, os conflitos foram se intensificando ao longo dos anos. De desacordos nas equipes, as acusações passaram a circular dívidas milionárias e até ameaças cancelamento da festa de Ano Novo.
No Estado, não se vê um projeto de oposição ganhando desde 2006, quando Lúcio Alcântara (PSDB) perdeu a campanha de reeleição para Cid Gomes (PSB). Desde então, Cid passou oito anos e indicou Camilo Santana (PT) — eleito e reeleito. Camilo indicou Elmano de Freitas (PT), atual governador.
A passagem Lúcio-Cid, no Governo do Ceará, foi a única entre opositores, após a redemocratização do Brasil. Gonzaga Mota (PDS), eleito em 1982, apoiou Tasso Jereissati em 1986. Quatro anos depois, o tucano apadrinhou Ciro Gomes, que renunciou e deixou o cargo para Chico Aguiar (PSDB). Jereissati retornou em seguida, governou por oito anos e indicou Lúcio Alcântara. Até os opositores (Lúcio e Cid) eram aliados até meses antes da eleição.
"No Estado, de Cid para cá, não vejo um grande conflito. Vemos um ciclo político que, apesar de não estar mais com os Ferreira Gomes, o Cid conseguiu fazer a transição para Camilo, que fez para o Elmano", resumiu Paula Vieira, do Lepem.
Paz nas transições, no entanto, não significa estagnação nas conjunturas e alianças. A política em nível estadual se modificou muito de 2006 para cá. Três grandes protagonistas em 2006 — Lúcio, Ciro e Cid — estão em campos diferentes hoje. Um exemplo se deu em 2022, na última eleição para governador. Lúcio apoiava Capitão Wagner (União Brasil), Ciro apoiava Roberto Cláudio (PDT) e Cid, ainda que estivesse no PDT, hoje integra o PSB, da base de Elmano de Freitas (PT).
Alternâncias de poder em Fortaleza
Maria Luiza Fontelele (1985-1988) para Ciro Gomes (1989-1990)
Ciro até elogiava Maria, mas disse que recebeu uma Prefeitura sucateada, com folhas e contas atrasadas. A prefeita teria interrompido trabalhos da equipe de Ciro e designado uma comissão para intermediar a coleta de dados. O trabalho chegou a ser encerrado por um tempo, mas retornou. Apesar disso, a transição foi razoavelmente tranquila.
Juraci Magalhães (1990-1992; 1997-2004) para Luizianne Lins (2005-2012)
Ciro passou um ano e três meses na Prefeitura e saiu para concorrer a governador. Deixou no cargo o vice, Juraci Magalhães, que iniciou ciclo político que ficou no poder até 2004. Luizianne representou uma quebra de ciclo. Na transição, ela reclamou do acesso escasso às informações das contas da gestão. Uma equipe de transição foi designada, com 15 pessoas, mas segundo a prefeita eleita, o grupo não conseguia falar com os secretários. Juraci criticou a equipe de Luizianne e disse que a petista não tinha plano de governo. O relatório da transição apontou dívidas não pagas da Prefeitura, entre outros problemas.
Luizianne Lins (2005-2012) para Roberto Cláudio (2013-2020)
Luizianne foi reeleita em 2008, mas não conseguiu emplacar o aliado Elmano de Freitas (PT) em 2012. O vitorioso foi Roberto Cláudio. Quatro dias depois das eleições, RC já reclamava da falta de iniciativa da Prefeitura com a transição. Houve uma reunião. O clima foi, a princípio, de tranquilidade. No entanto, pouco tempo depois isso mudou. Luizianne mudou a equipe de transição. Em 16 de novembro, o decreto com a nova equipe foi divulgado. Pouco depois, documentos com informações gerais foram tornados públicos. Em entrevistas, cada equipe dava informações antagônicas sobre o cenário da Prefeitura. RC disse que Luizianne deixou débito de R$ 375 milhões, que só deveria ser quitado em 2014. Luizianne alegou que o que deixou foram empenhos — que correspondem à primeira etapa da quitação da dívida. Ela ainda cancelou o Réveillon daquele ano. A festa acabou ocorrendo, realizada pelo Estado.
José Sarto (2021-2024) para Evandro Leitão (2025-2028)
Roberto Cláudio foi reeleito em 2016 e emplacou o aliado, José Sarto (PDT), em 2020, que, por sua vez, não conseguiu ir ao segundo turno em 2024. A disputa foi vencida pelo petista e ex-aliado de Sarto, Evandro Leitão. Um dia após a vitória de Evandro, Sarto deu os parabéns ao prefeito eleito e se disse disposto a uma transição tranquila. Porém, Evandro reclama da falta de informações e os problemas em serviços se acumulam.