Os termos "política" e "espetáculo" têm mais em comum do que a classe gramatical dos substantivos; ambos são espaços de visibilidade, projeção e poder. Ao longo de décadas um fenômeno se consolida: a transição de personagens do campo do espetáculo — como artistas, apresentadores, influenciadores, comunicadores, desportistas e outros —, para o campo da política partidária e eleitoral.
Espaço de decisões e disputas, a política é um palco atrativo aos nomes do espetáculo. Há diversos exemplos, dentro e fora do Brasil: Silvio Santos, Donald Trump, Gretchen, Zelensky, Romário, Arnold Schwarzenegger, Luciano Huck são alguns dos nomes dessa fusão de campos inicialmente distintos.
O caso de destaque mais recente envolve o cantor Gusttavo Lima, que manifestou interesse em concorrer à Presidência em 2026, na tentativa de se viabilizar como alternativa à polarização entre esquerda e direita no País. O movimento dos artistas supracitados não é novidade, tampouco incomum (ver quadro).
Por vezes, os representantes do espetáculo adentram na vida política trajados como um Jesus moderno, emplacando imagens de potenciais salvadores da pátria ao passo em que vendem o campo do espetáculo como algo à parte da política. Alguns deles alcançam o objetivo e vivem uma transição de carreira, fincando-se no campo da política profissional.
O POVO conversou com estudiosos sobre os motivos que levam à ocorrência desse fenômeno e até que ponto pode ser benéfico, ou não, para o debate público. Juliana Fratini, cientista política e organizadora da obra Campanhas Políticas nas Redes Sociais: Como fazer comunicação digital com eficiência, lembra que o movimento não é novo.
"Já tem algumas décadas, não é de ontem. Com o advento das grandes mídias, desde a TV e o rádio, a evidência dessas personalidades ficou mais elevada. Quando vem o digital, o protagonismo até daquele que não tinha acesso à grande imprensa, também muda. Ele passa a ser uma pessoa de evidência, como os influenciadores", analisa.
Juliana vê como natural que esses representantes do campo do espetáculo adentrem à política. "São perfis que gostam de estar em evidência, então é absolutamente natural para quem é do mundo das artes fazer essa instrumentalização e se engajar na política. Para esses artistas é mais fácil bancar o heroi, porque geralmente eles já têm um manejo público e uma opinião com mais peso. Isso acaba se tornando um facilitador", explica.
Outro ponto levantado pela cientista política é o funcionamento do sistema partidário brasileiro, que faz com que os próprios partidos busquem, por vezes, personalidades públicas como potenciais puxadores de votos, sobretudo em disputas por vagas no Legislativo.
"Os partidos optam por nomes conhecidos, de artistas, para fazer bancadas. Para, no momento do quociente eleitoral, conseguirem um número maior de representantes. Os partidos buscam esses nomes por causa desse manejo com o público. Para eles também acaba sendo interessante. Podemos citar a senadora Leila, do Vôlei; a deputada Leci Brandão (São Paulo) que é sambista; o Romário senador pelo Rio de Janeiro", lista.
Porém, há os que buscam além de mandatos legislativos. Gusttavo Lima fala em concorrer a presidente, assim como Silvio Santos pretendeu no passado e Luciano Huck cogitou mais recentemente. Nenhum levou projeto adiante.
Pesquisa AtlasIntel divulgada na última semana avaliou eventual cenário político onde Guttavo Lima seria candidato a presidente. Em um dos cenários, o cantor aparece com 1,3% das intenções de voto. Em outro cenário, ele aparece com 4,3%. Nos cenários, Lima enfrentaria nomes como Lula, Tarcisio, Pablo Marçal, Eduardo Bolsonaro, Sergio Moro e outros.
A professora Paula Vieira, cientista política vinculada ao Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídias (Lepem-UFC), ressalta as diferenças dos perfis que migram do campo do espetáculo para a política, sendo alguns eleitos por reflexo de uma descrença popular com a política e outros pelo capital social adquirido em outras arenas de poder.
"O Romário, por exemplo, já fez uma transição praticamente do futebol e daquela visibilidade para esse campo político. Temos a Débora Soft como um exemplo local, que foi um dos primeiros casos das cotas de mulheres, e o que se estudou a respeito na época é que tratou-se de uma candidatura laranja; O Tiririca, que foi na linha de uma brincadeira com a própria candidatura dentro da campanha", lembra.
Vieira avalia que, por vezes, o eleitorado adere a essas candidaturas como forma de protesto, mas também por serem figuras com vivência prévia na cena pública.
"Às vezes os eleitores aderem como um voto de protesto, como forma de sinalizar que para essa pessoa estar nesse espaço é porque a política está risível. Uma aderência por descrédito", comenta.
E completa: "Mas, às vezes, é por entender que ali não está apenas um profissional do espetáculo, mas o representante de uma classe ou segmento que tem seus interesses e agendas próprias".
Da fama para a urna
Silvio Santos
Um dos maiores comunicadores do País, Silvio Santos tentou ser candidato na primeira eleição presidencial, com voto direto, após a ditadura militar, em 1989. A candidatura do então dono do SBT acabou barrada pela Justiça Eleitoral. Silvio disputaria pelo extinto Partido Municipalista Brasileiro (PMB) e campanha relâmpago durou apenas dez dias. Silvio Santos morreu no ano passado, aos 93 anos
Donald Trump
Empresário renomado nos Estados Unidos, Donald Trump está na cena pública muito tempo antes de entrar na política. Além do sucesso no ramo imobiliário, ficou famoso por apresentar reality shows na TV e foi proprietário da empresa organizadora dos concursos de beleza Miss Universo. Foi eleito presidente em 2016, não reeleito em 2020 e agora, novamente eleito em 2024
Gretchen
Maria Odete Brito de Miranda, a Gretchen, é outro exemplo de alguém intimamente ligada ao campo do espetáculo midiático e que se aventurou na política. A "rainha do bumbum" chegou a ser candidata a prefeita da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, nas eleições municipais de 2008, mas acabou não eleita, obtendo somente 343 votos à época
Volodymyr Zelensky
Presidente da Ucrânia, país que está em guerra com a Rússia há quase três anos, Zelensky tem trajetória no humor, tendo participado de grupos de improvisação e comédia. Ele chegou a fundar a própria produtora e se tornou bastante conhecido entre os ucranianos
Tiririca
Cearense, de Itapipoca, o humorista Tiririca foi o deputado federal mais votado do Brasil em 2010, na sua primeira eleição. Tiririca fez uma campanha repleta de sarcasmo e ironia. "Pior do que tá não fica, vote no Tiririca" era um dos slogans. De lá para cá, seguiu se reelegendo para a Câmara, mas o "voto de protesto" registrado em 2010 não se repetiu ao longo dos anos. Em 2022, Tiririca foi o deputado eleito com menos votos em São Paulo
Romário
O tetracampeão do mundo Romário é famoso pela personalidade e trajetória que construiu dentro dos campos de futebol. Teve seu auge na carreira futebolística em 1994, quando foi campeão do mundo com a Seleção Brasileira. Romário se elegeu deputado federal pelo Rio de Janeiro em 2010 e, posteriormente, senador pelo mesmo estado. Cargo que ocupa atualmente, após ser reeleito senador em 2022 pelo RJ para mais um mandato de 8 anos
Arnold Schwarzenegger
Lenda do fisiculturismo e dos cinemas, Arnold foi governador da Califórnia pelo Partido Republicano entre 2003 a 2011, o astro hollywoodiano é filiado ao partido ainda hoje e chegou a declarar voto em Kamala Harris na disputa contra Donald Trump no ano passado.
Luciano Huck
Apresentador da TV Globo, Luciano Huck ainda não chegou a concorrer a cargos eletivos, mas esteve bem perto de se lançar candidato a presidente em 2022. Ele não negou as pretensões, tendo participado ativamente do debate político no País à época. Nos bastidores, Huck ainda é cotado como uma possibilidade para eleições futuras
Gusttavo Lima
O cantor sertanejo Gusttavo Lima publicizou a intenção de se candidatar à Presidência em 2026. Lima havia declarado apoio a Jair Bolsonaro (PL), mas disse que uma eventual candidatura não está vinculada a ideologias. "Chega dessa história de direita e de esquerda. Não é sobre isso, é sobre fazer um gesto para o país, no sentido de colocar o meu conhecimento em benefício de um projeto para unir a população"
Deborah Soft
Edviânia Matias Goes, mais conhecida como Déborah Soft, foi uma stripper conhecida em Fortaleza que chegou a se eleger vereadora em 2004, na eleição municipal daquele ano. À época, recebeu 11.590 votos. Posteriormente, Deborah tentou se eleger novamente, em 2012, mas não repetiu o desempenho, recebendo menos de 350 votos no pleito daquele ano