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Regras para uso de arma de fogo por policiais causam polêmica e dividem governadores
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Regras para uso de arma de fogo por policiais causam polêmica e dividem governadores

Na noite da publicação do decreto, uma jovem de 26 anos foi baleada na cabeça por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) enquanto ia para a casa de parentes comemorar o Natal em Niterói, no Rio de Janeiro. No Ceará, 116 mortes causadas por intervenção policial foram contabilizadas de janeiro a novembro de 2024
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Governo Federal quer regular uso de armas por policiais (Foto: AdrianoMagela/adobestock)
Foto: AdrianoMagela/adobestock Governo Federal quer regular uso de armas por policiais

No ano de 2024, 760 foram mortas por policiais no Estado de São Paulo. A média supera duas pessoas por dia. Desse total, 640 mortes foram ocasionadas por policiais em serviço. Nas demais, eles estavam de folga. O crescimento em relação a 2023 foi significativo. Um ano antes, foram 460 mortes provocadas por policiais. A alta foi de 65%.

A situação paulista chama atenção nacional, mas não é o único problema. No Ceará, foram 189 mortes em 2024, 28% a mais que os 147 do ano anterior.

No fim de 2024, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) publicou decreto que estabelece novas regras para atuação dos agentes de segurança pública no País. O texto determina que a utilização de armas de fogo ocorra apenas como último recurso. A decisão causou polêmica, em particular entre governadores, responsáveis pela gestão das polícias.

Governadores de direita são contra

Governadores de direita reagiram ao decreto. Entre eles estão os chefes do Executivo do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL); de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil); e do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).

Parte das críticas gira em torno do possível impacto do decreto para os repasses financeiros aos estados. Mesmo que a adoção das medidas pelos estados não seja obrigatória, as regras nortearão o repasse de verbas do Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), especialmente na aquisição de equipamentos.

"O repasse de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional para ações que envolvam o uso da força pelos órgãos de segurança pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios está condicionado à observância do disposto na Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014, e neste Decreto", consta no artigo 9º do documento.

Além disso, esse grupo de governadores entende que a medida engessa as forças policiais. Eles compreendem que reduzir a atuação da polícia com as armas de fogo aumentara a criminalidade.

O governador do Rio de Janeiro disse que entraria com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para cassar o que considera um "absurdo". Cláudio Castro afirmou o caso era um "presentão de natal para a bandidagem".

Já o do Distrito Federal avaliou o caso como uma "interferência total". À CNN Brasl, Ibaneis Rocha argumentou que "quem faz segurança pública são os estados. "Uma pena que o governo federal, ou melhor, o presidente Lula não saiba seu espaço".

Enquanto isso, o chefe do Executivo de Goiás, Ronaldo Caiado afirmou que condicionar o decreto aos repasses do FNSP é "uma chantagem explícita contra os estados, que acaba favorecendo a criminalidade".

"Enquanto o crime organizado avança como uma metástase sobre todos os setores do País, o governo federal trabalha, dia após dia, para enfraquecer os mecanismos de defesa da nossa sociedade. Isso vai além da omissão: é conivência", escreveu nas redes sociais.

Governadores do Nordeste apoiam decreto

Em contrapartida, todos os nove governadores do Nordeste divulgaram nota oficial apoiando o decreto. O grupo de gestores estaduais afirma que a medida está alinhada às práticas já adotadas na Região, que priorizam o uso da força letal como último recurso.

"É importante destacar que o Decreto 12.432/2024 não altera a autonomia dos estados nem as normativas já estabelecidas. Ao contrário, ele reafirma a centralidade da prudência, do equilíbrio e do bom senso no exercício da atividade policial. Além disso, sublinha a necessidade de constante modernização das técnicas de atuação, promovendo mais segurança tanto para os profissionais quanto para a sociedade, sempre com a preservação da vida como prioridade absoluta", consta em trecho da nota.

O texto destaca também investimentos contínuos na modernização das práticas operacionais, incluindo o uso de tecnologias, técnicas menos letais e inteligência, visando maior eficiência e segurança para agentes e sociedade.

Mortes e repercussão 

Na noite da publicação do decreto, uma jovem de 26 anos foi baleada na cabeça por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), enquanto ia para a casa de parentes comemorar o Natal em Niterói (RJ).

Pouco mais de um mês antes do decreto, em 20 de novembro, um estudante de medicina de 22 anos foi morto com um tiro à queima-roupa disparado por um policial militar de São Paulo. O caso ocorreu durante abordagem na escadaria de um hotel na Vila Mariana, Zona Sul da capital paulista.

Em junho, um adolescente de 17 anos morreu baleado na cabeça em tentativa de assalto na Recreio, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Outro jovem também foi baleado no braço. Eles estavam em um veículo que era dirigido por um policial penal, que reagiu à abordagem e trocou tiros com os assaltantes.

Na terça-feira, 6 de janeiro, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) arquivou 17 das 22 investigações que apuram mortes provocadas por policiais militares na Operação Escudo, na Baixada Santista, em 2023. Conforme a Agência Brasil, a informação foi compartilhada pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF).

A ação foi deflagrada após a morte de policial militar em 27 de julho daquele ano, contudo, a operação culminou na morte de 28 pessoas. O governo apontou, na época, que a ação serviria para combater o tráfico de drogas na área.

Conforme o Geni, nenhum dos 64 policiais escalados para a ação foi morto e apenas um foi ferido. Entidades de direitos humanos apontaram que as vítimas não tinham envolvimento com a criminalidade.

No Ceará, as 189 mortes causadas por intervenção policial não são consideradas intencionais, pois possuem excludente de ilicitude, que é quando se exclui a culpabilidade de condutas ilegais em determinadas circunstâncias. Isso é o que aponta relatório da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

No último novembro, um subtenente da Polícia Militar foi denunciado pelo Ministério Público Estadual (MPCE) por balear um jovem no bairro Jangurussu em 7 de maio de 2024. A vítima, de 24 anos, ficou tetraplégica.

No mês anterior, o Sindiônibus recolheu coletivos que circulam no residencial Cidade Jardim II, no bairro José Walter, após o homicídio de um homem de 22 anos que, segundo moradores, foi morto durante abordagem policial.

Em Ubajara, um policial foi morto após disparo de outro agente. O caso ocorreu durante uma ocorrência policial em janeiro de 2024. 

Colaborou Lucas Barbosa

O que estabelece o decreto

Sob o número 12.341/2024, o decreto sobre uso de armas de fogo por policiais foi assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. O documento regulamenta a Lei 13.060/2024, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

O artigo 3º do decreto versa que a força deverá ser utilizada de "forma diferenciada", com a seleção apropriada do nível a ser empregado, em resposta a uma ameaça real ou potencial, com vistas a minimizar o uso de meios que possam causar ofensas, ferimentos ou mortes.

O documento prevê, ainda, duas situações em que o uso de arma de fogo não é permitido: "pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros; e veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros".

Além disso, sempre que o uso da força resultar em ferimento ou morte, será necessária elaboração de relatório circunstanciado seguindo parâmetros estabelecidos em ato do ministro da Justiça e Segurança Pública.

Um dos ponto expostos no decreto é de que, para implementar tais medidas, os agentes das forças de segurança passarão por capacitação obrigatória, com periodicidade anual e realizada no horário de serviço. O conteúdo deve abordar os “procedimentos sobre o emprego adequado de diferentes tipos de armas de fogo e de instrumentos de menor potencial ofensivo".

Outra diretriz é que os agentes não podem agir de forma discriminatória em relação a cor da pele, identidade de gênero e orientação sexual. As medidas do decreto servem como condição para o repasse de verbas do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), especialmente na aquisição de equipamentos. A publicação do decreto, ocorrida em 24 de dezembro de 2024, ocorreu em meio a casos de violência policial que ganharam repercussão nacional.

O que dizem os especialistas

"A atuação policial é diferente da dos demais componentes da Justiça ou do Ministério Público, que avaliam a ação após o ocorrido de forma fria, tal qual um VAR (Árbitro Assistente de Vídeo, em tradução livre) em uma partida de futebol", considera o coronel da Polícia Militar Plauto de Lima.

Para ele, que é mestre em Políticas Públicas, há um "grande equívoco" em tentar colocar um "produto enlatado" de segurança aos estados. Os fatos, conforme Plauto, ocorrem em uma velocidade diferente das "salas refrigeradas dos julgadores e acusadores", tornando difícil discernir qual seria o último recurso.

O coronel da PM aponta ainda que a "insegurança jurídica" é um dos fatores que inibem a atuação policial. O decreto, entende ele, amplia essa situação e "enfraquece" a ação policial. "Um policial que tem insegurança para agir não tem como oferecer segurança para a população", projeta.

Plauto também analisa que a violência é um "fenômeno local, ou seja, se manifesta de forma diferente em cada estado ou cidade". "Trazendo aqui para o Ceará, utilizando a Capital como exemplo, a violência difere nos bairros, onde em alguns predomina crime contra a vida, em outros predomina crime contra o patrimônio", complementa.

Do outro lado da moeda, a antropóloga Jânia Perla Aquino, pesquisadora do Laboratório de Estudo da Violência da Universidade Federal do Ceará (Lev-UFC), considera o decreto fundamental para consolidação da democracia.

"Não dá para dizer que um país é democrático com policiais que matam tanto e, assim, que usa a arma de fogo, em muitas situações, sem que haja um protocolo em meio a um crescente uso de força. Esse decreto é muito importante para dar um salto na qualidade da atuação das nossas forças de segurança pública".

Quanto aos recursos, ela concorda com o estabelecido no texto. Caso contrário, projeta Jânia, pode não haver efeito na redução de mortes pelas polícias em contexto nacional.

"Nós não podemos esquecer, nossos governadores e gestores estaduais de segurança pública também, de que a nossa forma constitucional de punição é o encarceramento. O abate, a morte não pode se tornar o meio empírico, um meio de punição recorrente", acrescenta.

A antropóloga ressalta que as polícias têm preparo e capacidade de se adequarem ao decreto. "É uma oportunidade de melhorar a atuação das nossas polícias, que podem ter uma função mais técnica, mais função educativa. A investigação policial e a inteligência podem ganhar protagonismo", pontua Jânia.

Argumentos a favor e contra o decreto

Contra o decreto:

Engessamento das forças policiais;

Intervenção do governo federal sobre o governo estadual;

Interferência em repasses de verbas do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).

A favor do decreto:

Redução de casos de violência policial;

Investimento em capacitação e inteligência;

Valorização da vida.

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