Movimentos recentes de ação e reação de líderes políticos mundiais indicam o avanço de uma espécie de "corrida armamentista" moderna. Na Europa, a iniciativa é apresentada como forma de superar dependência dos Estados Unidos, que perdura desde o fim da Segunda Guerra Mundial. As ações têm como pano de fundo a guerra entre Rússia e Ucrânia, que continua a provocar desdobramentos na região e no mundo mais de três anos após o seu início, em fevereiro de 2022.
O Military Balance, estudo anual divulgado pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS na sigla em inglês), ilustra a situação. Segundo o relatório, os gastos militares mundiais bateram recorde, chegando a US$ 2,46 trilhões (mais de R$ 14 trilhões) em 2024.
A Alemanha aumentou os próprios gastos com defesa em 23,2%, tornando-se o maior orçamento de defesa (US$ 86 bilhões) entre os europeus que estão na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). A Polônia, vizinha da Rússia, passou a ter o 15º maior orçamento (US$ 28 Bi); era o 20° no ano em que a guerra começou.
O aumento de gastos com defesa e os discursos que apontam nessa direção indicam preocupação dos governos com a segurança nacional. Declarações recentes das administrações dos Estados Unidos, da Rússia, da China, da França, da Alemanha e da União Europeia (ver quadro) têm enfatizado a necessidade de reforço da capacidade militar, mas tem implicações na estabilidade global e em questões diplomáticas.
O presidente francês Emmanuel Macron defendeu colocar o arsenal nuclear francês à disposição de aliados, incluindo a Ucrânia, citando o que chamou de “ameaça russa” à Europa e tentando se descolar dos americanos, que sob a gestão do atual presidente, Donald Trump, voltaram a colocar em xeque a vitalidade da aliança. Desde que o Reino Unido saiu da União Europeia, a França é o único país do bloco com arsenal nuclear.
A Alemanha também falou em aumentar os gastos na área da Defesa. Friedrich Merz, que deve ser o próximo chanceler alemão, sinalizou o desejo de garantir a independência europeia do poderio bélico dos americanos e já costura um acordo que deve garantir bilhões de euros em investimentos em Defesa e áreas correlatas. Ao falar sobre o tema, citou a urgência do tema frente à postura recente do governo americano.
Outros atores globais como a China e a Rússia também têm dado sinais de que vão investir mais em Defesa e armamentos. O POVO ouviu especialistas em relações internacionais sobre os porquês dessas movimentações de líderes mundiais, os impactos de um discurso mais armamentista na realidade mundial e o potencial disso gerar novos conflitos.
Lucas Leite, professor doutor de Relações Internacionais na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo, avalia que, embora os gastos tenham aumentado, um conflito direto e generalizado ainda é pouco provável. Leite entende que há “muita retórica” nas falas recentes de líderes europeus dado o cenário atual.
“Grande parte do arsenal nuclear da Otan é dos EUA, ou seja, é quem garante esse escudo aos europeus no contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia. A Europa enfrenta problemas de liquidez, países com dívidas públicas grandes. Não vejo ganhos para eles ao entrar diretamente na guerra”.
O professor destaca que eventual concessão de arsenal nuclear à Ucrânia representaria uma uma escalada do conflito e um risco para a Europa. “É possível que a Rússia fizesse um ataque preventivo. Moscou não vai permitir um equilíbrio nuclear com a Ucrânia. Nesse cenário, os europeus (França e Reino Unido) se colocariam numa posição perigosa”.
Sobre o aumento de gastos no mundo, em especial na Europa, Leite aponta o aumento de uma percepção que o continente teve ainda na primeira gestão Trump e que se ampliou no início do segundo governo do presidente americano.
“Que não se pode garantir a própria segurança dependendo de um país com a instabilidade política dos EUA e da vontade dos governos que assumem o país, para ter a aliança fortificada no longo prazo”, acrescenta.
“Esse projeto de busca por armamento sozinha, na Alemanha, na França, e na própria União Europeia, não necessariamente afeta as tensões no mundo, mas escancara uma nova percepção da Europa de olhar para a política internacional e sobretudo de como o continente passa a enxergar a Rússia, como um ator que não pode ser ignorado no jogo”.
Embora o aumento de gastos com defesa seja um reflexo da crescente frustração da França e de outros países ocidentais com a guerra na Ucrânia e com a incapacidade de impedir as agressões através de meios convencionais e diplomáticos, especialistas destacam um outro fator de instabilidade na percepção dos líderes mundiais sobre os rumos das garantias de segurança a seus países: O presidente americano Donald Trump.
Lucas aponta que a discussão sobre a dependência europeia dos EUA é anterior a Trump, mas que com ele na equação, o cálculo é outro. “Não existia o elemento Trump, que significa na prática que não há como confiar nos americanos, porque a depender do governo que entra na Casa Branca, essa cooperação com a Europa fica em risco”.
O analista internacional diz ainda que parte da questão passa pelo modo de agir do líder americano. “Para Trump, são questões de soberania a manutenção dos recursos do país, a não dependência de instituições alheias sobre o que os EUA podem ou não fazer; a pressão para que paises da Otan cumpram obrigações de financiamento. Trump tem esse efeito. O discurso do America First; ou seja, os EUA acima de todas as outras coisas”.
Embora se destaquem os gastos militares, o impacto desses movimentos globais podem refletir em temas econômicos, diplomáticos e, acima de tudo, estratégicos, moldando o futuro das relações internacionais nas próximas décadas.
Corrida para se armar
França: O presidente francês, Emmanuel Macron, levantou a possibilidade da França colocar suas armas nucleares à disposição de aliados europeus e enfatizou a necessidade do continente auxiliar a Ucrânia e fortalecer a própria defesa contra a “ameaça russa”, segundo as palavras de Macron. “O futuro da Europa não precisa ser decidido em Washington ou em Moscou. A ameaça volta a vir do Leste e a inocência dos últimos 30 anos, desde a queda do Muro de Berlim, acabou agora", disse Macron em pronunciamento.
Alemanha: O futuro chanceler alemão, Friedrich Merz, que está montando uma coalizão após vencer a eleição, costura um acordo político de centenas de bilhões de euros em gastos com defesa e infraestrutura. Parte do plano envolve a criação de um fundo de 500 bilhões de euros (R$ 3,4 trilhões) em infraestrutura e para afrouxar as regras sobre investimentos em defesa.
União Europeia: A entidade europeia propôs um empréstimo de até 150 bilhões de euros aos governos de países do bloco para colocar em curso um plano de rearmamento, no contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia e pelo estremecimento nas relações com os Estados Unidos após o retorno do presidente Donald Trump à Casa Branca. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, diz que o pacote de investimentos em defesa poderia mobilizar até € 800 bilhões (perto de R$ 5 trilhões) para o continente.
Rússia: Os russos têm rechaçado a postura de líderes europeus em relação à questão de apoio à Ucrânia e até mesmo sobre a “corrida armamentista” para atualizar seus poderios bélicos. Moscou considera que os planos da UE de aumentar gastos com defesa incitam a guerra com base no “mito inventado” de que países europeus estariam ameaçados.
Sobre a fala de Macron, presidente do único país da União Europeia que tem arsenal nuclear, o governo russo classificou como “chantagem” o que foi dito pelo líder francês. "Foi claramente perceptível um tom de chantagem nuclear no discurso de Macron. As ambições de Paris de se tornar o 'patrono' nuclear de toda a Europa vieram à tona, oferecendo seu próprio 'guarda-chuva nuclear', quase como um substituto para o americano. Isso não levará ao fortalecimento da segurança nem da própria França nem de seus aliados".
EUA: Desde que voltou ao poder, o presidente americano Donald Trump tem pressionado países europeus que fazem parte da Otan a cumprirem metas de financiamento do bloco aliado. Trump tem sinalizado que caso a destinação correta de valores não ocorra, os EUA não os defenderiam no caso de agressão de outras nações. A mudança de postura dos americanos com o bloco europeu é parte da estratégia trumpista do América First (América primeiro). colocando os interesses americanos acima de alianças históricas e outras questões. A Europa respondeu com sinalizações de investimentos massivos em defesa para descolar da dependência dos americanos, abrindo uma nova visão para o futuro.
China: A China vai aumentar o orçamento de defesa em 7,2% neste ano, consolidando aumento de um dígito pelo décimo ano consecutivo. A Agência Xinhua noticiou que gastos planejados com defesa serão de 1,784665 trilhão de yuans (US$ 249 bilhões), de acordo com um projeto do relatório orçamentário submetido à legislatura nacional para deliberação. O país tem o segundo maior investimento em defesa do planeta, atrás apenas dos EUA. A China tem tido um alinhamento com a Rússia nos últimos anos em questões de cooperação contra avanços de potências ocidentais. O país deve tentar estreitar relações nesse sentido, embora especialistas destaquem que o intuito é manter suas zonas de influência locais.
Gastos com defesa dos principais países da Otan no ano anterior à guerra Rússia x Ucrânia e em 2024.
EUA:
Alemanha
França
Reino Unido
Fonte: Military Balance (IISS).
China amplia gastos militares, mas está aquém de outras potências apontam especialistas
O governo chinês projeta a ampliação do orçamento da defesa em 7,2% neste ano, com o montante chegando próximo de US$ 249 bilhões, de acordo com agências internacionais que noticiaram a apresentação de um relatório preliminar que será deliberado no Legislativo. A porcentagem é a mesma dos dois anos anteriores (2023-2024).
A China é uma das potências mundiais em ascensão que rivalizam com os Estados Unidos em diversas searas. Na questão militar, os chineses vêm ampliando seu poderio ao longo das últimas décadas, mas especialistas apontam que a força militar do gigante asiático ainda está aquém da capacidade militar americana e que Pequim teria mais interesses locais e intuito de manter a força em zonas de influência que já ocupa.
Embora os chineses tenham o segundo maior orçamento de defesa do planeta, os americanos continuam na liderança do ranking de investimentos desse gênero, respondendo por 40% dos gastos totais no mundo em 2024. Iago Caubi, pesquisador do núcleo de pesquisa de Geopolítica, Integração Regional e Sistema Mundial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GIS-UFRJ), explica parte do contexto dos gastos chineses.
"A China vem aumentando gastos militares desde o início dos anos 2000. É importante perceber que o país já foi invadido e teve o território ocupado por várias vezes. Dessa forma, um dos objetivos estratégicos é assegurar o crescimento econômico e político, mas também restaurar a influência na região através do seu empoderamento militar", diz.
Caubi cita também o avanço da China em questões de tecnologia militar. "Quando estamos falando dos gastos chineses, estamos falando de tecnologia militar própria. Nas últimas décadas a China era vista como um país que apenas copiava tecnologia americana ou soviética, hoje em dia estão disputando na fronteira tecnológica em vários setores".
Dito isso, o pesquisador aponta que os principais atores que buscam impedir a ascensão militar chinesa são países que compõe o Mar do Sul da China e áreas de disputa. "Assim como a Índia que possui fronteiras que foram estabelecidas ainda no período colonial e que nem o lado chinês nem o lado indiano reconhecem, causando um impasse", explica. Caubi aponta que os Estados Unidos têm "grande preocupação" com o avanço da China, "devido à sua zona de influência nos países do sudeste e leste asiático, como Filipinas e Japão".
Para Lucas Leite, professor de relações internacionais da FAAP, o aumento de gastos em defesa da China é uma estratégia contínua para se consolidar como uma potência global.
"Ainda precisamos comparar os números, seja de armas nucleares, de investimentos em armamentos, de bases espalhadas pelo mundo. Isso tudo ainda está aquém dos Estados Unidos. A China tem a capacidade de garantir a própria segurança e de gerar equilíbrio, mas no tocante ao cenário global não está consolidada da mesma forma", destaca.
Leite cita ainda o tensionamento entre China e Taiwan, mas projeta que Pequim tem como intuito a manutenção do status quo na região. "A questão de Taiwan, para a China, acredito que o mais interessante seria a manutenção das coisas como estão. É improvável que a China queira entrar em conflito militar direto, passando a ser contestada por outros países por algo que não faz sentido nesse momento. O foco tem sido a expansão comercial e a manutenção do crescimento. A China tem um peso importante, mas duvido que entre diretamente em qualquer conflito em curso no mundo", ressalta.
Para o professor, os chineses têm papel de apoio a aliados no contexto de conflitos globais. "O que a China pode fazer, é o que já faz no caso da guerra da Rússia, garantindo suprimentos e itens e até ajudando em questões de transações financeiras. Indiretamente ela se torna uma alternativa, especialmente para países que têm contenda com o Ocidente".