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Inocêncio Uchôa: o defensor dos trabalhadores
Politica

Inocêncio Uchôa: o defensor dos trabalhadores

Líder estudantil, trotskista, preso, anistiado político, advogado e juiz do Trabalho, Inocêncio Uchôa foi protagonista de momentos decisivos da política e da Justiça no Ceará ao longo de mais de meio século. Ele conta essa história
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Inocêncio Uchoa, juiz do Trabalho aposentado e advogado (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Inocêncio Uchoa, juiz do Trabalho aposentado e advogado

Se for feita uma lista das mais importantes personagens da história do direito do Trabalho no Ceará, o nome de Inocêncio Uchôa precisa ser incluído com destaque. Na época em que os sindicatos começaram a se reorganizar, nos anos finais da ditadura militar, ele foi advogado de praticamente todos eles. Assessorou a reestruturação e apoiou as forças que saiam da clandestinidade no enfrentamento contra os "pelegos".

Nos anos de hiperinflação, esteve à frente da defesa dos mutuários ameaçados de perder a casa própria por não conseguirem pagar as prestações reajustadas muito além do que os salários podiam acompanhar, nos anos 1980.

Foi advogado dos juízes do Trabalho, da associação de magistrados, dos servidores da Justiça do Trabalho. Até se tornar ele próprio juiz do Trabalho, função na qual atuou ao longo de uma década. Entre as decisões de maior repercussão, a liminar que suspendeu o trabalho no comércio aos domingos, um marco das disputas que marcaram a década de 1990.

A história começa antes. Vem do Litoral Leste, como trazida pelo Aracati. Inocêncio nasceu na cidade que tira o nome do vento. Lá conviveu com conflito agrário, questão fundiária e ligas camponesas. Chegou a Fortaleza no período que antecedeu o golpe de 1964. Chegou à Faculdade de Direito, e ao movimento estudantil da Capital, com a ditadura militar instalada. Passou a militar em organizações trotiskistas. Foi presidente do prestigioso Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua. Era 1968, o ano que sacudiu o mundo.

Foi preso no histórico congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, o mesmo em que foram presos frei Tito de Alencar e José Dirceu, entre dezenas de outros. Sofreu torturas, foi condenado à prisão na ditadura, foi expulso da universidade, viveu na clandestinidade, até a anistia.

Chegou a ser candidato pelo velho PMDB, participou do processo para criação do Município de Icapuí. Tornou-se militante do PT e foi controlador-geral do Município na gestão de Luizianne Lins (PT) na Prefeitura de Fortaleza.

Inocêncio completou 80 anos em 31 de dezembro de 2024. Em conversa com O POVO, ele revisita a trajetória e conta um pouco da história do Ceará e do Brasil.

O POVO - O senhor começou a atuação política ainda em Aracati, como estudante?

Inocêncio Uchoa - Eu comecei a minha vida, comecei a ter alguma atuação autônoma mesmo no movimento estudantil lá do Aracati. Era uma coisa simples. Tinha o Centro Estudantal Aracatiense, que era filiado ao Centro Estudantal do Ceará. Na época era estudantal, não era estudantil. A gente realizava por ali alguma manifestação. Por exemplo, contra aumento do preço do ingresso cinema, coisa desse tipo. Não tinha muita coisa, mas na época eu já me preocupava um pouco com a questão social. Havia dois conflitos agrários lá no Aracati, dois conflitos de terra. Um agrário e outro e outro fundiário, que chamavam atenção da população local. Meu pai se interessava por aquilo. No Cabreiro e no Fortim (hoje município). Eu já acompanhava aquilo ali, mais ou menos. A algumas reuniões eu fui. Aquelas reuniões maiores, que ia gente de Fortaleza. Na época ia Blanchard Girão (jornalista e deputado estadual cassado pela ditadura militar), algumas pessoas de esquerda levavam jornais da época. A Classe Operária, que era do Partido Comunista. Brasil Urgente (jornal da esquerda católica). 

OP - O senhor chegou a Fortaleza já para estudar na Faculdade de Direito. Foi em 1965?

Inocêncio - Eu entrei (na Faculdade de Direito) em 1965. Na verdade, eu cheguei de 1962 para 1963. Foi o tempo que teve o golpe militar de 1964. Eu entrei na faculdade já em 1965.

OP - Chegou à universidade com a ditadura se instalando.

Inocêncio - Com a ditadura instalada, em 31 de março, 1º de abril de 1964. Eu entrei em fevereiro, março do ano seguinte. Um ano depois, eu entrei na faculdade, já estavam instalados. Os trabalhadores, o Brasil estava totalmente reprimido. O golpe militar cassou todas as grandes lideranças políticas do país, de esquerda ou democráticas, enfim, que não concordavam com aquilo. Cassou os dirigentes sindicais. Estabeleceu uma ditadura braba contra o movimento sindical, tirou as lideranças sindicais mais importantes, colocou os pelegos. E baixou um arrocho salarial brutal. Como os trabalhadores estavam todos manietados, estavam todos sob pressão, só quem podia ter algum tipo de mobilidade eram os estudantes, que eram de classe média, da universidade. E isso começou em 1965 mesmo. Quando eu entrei na faculdade, já começou o movimento para reorganizar a UEE, União Estadual dos Estudantes, na época. Era até o René Barreira, que depois foi reitor, que liderava. Ele e o Jânio, da Medicina. O Jânio se suicidou depois, não aguentou o tranco. Essas pessoas foram chamadas pela Polícia Federal, faz aquela pressão. Acabou que diminuiu. Mas veio 1966, 1967 até o ano 1968, que foi muito emblemático. Eu fui presidente do Centro Acadêmico lá da Faculdade de Direito. Eu fui todo o ano de 1968 presidente do Centro Acadêmico. 

OP - O senhor era vinculado a alguma organização?

Inocêncio - Não, não era. Eu só sabia da existência do Partido Comunista, inclusive. Não sabia nem da existência de outros grupos, como por exemplo o PCdoB, que nasceu de dentro do Partido Comunista. E as outras, ALN, VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), isso veio depois. Já foi dissidência da dissidência (risos). Você vai lutando por aquilo e nesse movimento, vai se aproximando das pessoas. Foi aí que eu comecei a ver as pessoas e as pessoas começaram a se aproximar de mim também. Eu comecei a me aproximar naturalmente do pessoal da Quarta Internacional, da linha trotskista, que estava entrando também na universidade naquele momento.

OP - Como era o convívio dos grupos?

Inocêncio - A Faculdade de Direito tinha partidos políticos. Havia três partidos políticos da faculdade: a Vanguarda Universitária, que era da direita, nucleava ali os estudantes de direita na época. Tinha a FAN, Frente Acadêmica Nacionalista, que nucleava os estudantes de centro. Os Barreira, Ubiratan Aguiar, que foi ministro do TCU (Tribunal de Contas da União). E tinha a FLA, Frente Libertadora Acadêmica, que nucleava os estudantes de esquerda: pessoal do PCB, pessoal do PCdoB, pessoal da AP (Ação Popular), independentes — também tinha uma esquerda independente — e os trotskistas. A gente fazia uma convenção da FLA e elegia aquele que seria o candidato a presidente da próxima eleição e depois compunha a chapa para o diretório a partir dos votos que cada grupo desses tinha, dentro da eleição interna, na convenção.

Em 1967, eu ganhei para ser candidato a presidente do Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua. O que aconteceu? O PCdoB rachou. “Não, Inocêncio a gente não apoia”. Olha só, era um processo que já vinha desde antes. “Não, não, não. Ninguém aceita, ninguém aceita”. Alegando as coisas mais estúpidas possíveis. Que não foi tão representativa a votação. Houve um racha grande, nós passamos dois ou três dias ali tentando. Acabou que eu renunciei à candidatura à presidência e nós aceitamos um terceiro presidente. Eu fiquei na vice e fui colocado um outro colega lá para a presidência. O que aconteceu? Rapaz, isso é antidemocrático. É uma forçação de barra. E golpe não dá certo. Resultado, a FLA rachou de uma vez. Quer dizer, em 1968 eu já fui candidato a presidente pelo meu grupo. Aliança Operária Estudantil Camponesa.

OP - Em 1967, o senhor ficou de vice. Aí, em 1968…

Inocêncio - Fiquei de vice em 1967. Em 1968, aí sim. Já me candidatei a presidente, mas não mais pela FLA. A FLA já não teve candidato. A FLA não tinha mais. Eu me candidatei pela Aliança Operária Estudantil Camponesa, com essa cara e com essa proposta. E ganhei a eleição do PCdoB com os apoiadores deles.

OP - Desses três partidos dentro da universidade, a FLA, da esquerda, era a maior, então?

Inocêncio - Sim, naquele momento era a maior. Já tinha sido minoritária no começo da ditadura. O centro acadêmico foi de direita durante algum tempo. Nós retomamos em 1966. Em 1967 teve esse lance. Em 1968 eu ganhei a eleição. 

OP - O senhor foi ao congresso da UNE, em Ibiúna, não é?

Inocêncio - Aí depois teve o congresso de Ibiúna (SP) em setembro. Eu fui como presidente do centro acadêmico. Nós éramos 40 e poucas pessoas do Ceará lá no congresso, de um total de cerca de 800 pessoas. Ninguém sabe exato, porque não tinha esse tipo de controle. Não se batia ponto, não se assinava lista. O congresso não aconteceu de fato, porque a Polícia acompanhou tudo. Nós, inclusive, trotskistas do Brasil todo, fomos contra o congresso ser ali. A gente achava que aquilo ali ia ser um problema danado. Todo mundo ia ser preso e ficava preso. Ia ter uma repercussão política grande, mas não passava disso. Foi o que aconteceu. Então, todos fomos presos, levados lá para o presídio. 

OP - Quem estava de cearense lá? Frei Tito estava lá, não é?

Inocêncio - Frei Tito estava também, não como estudante. Frei Tito foi um dos que ajudaram a organizar. Frei Tito foi o camarada que fez o contato com o dono da chácara, do sítio, originalmente, para depois acontecer o congresso. A igreja, especificamente os dominicanos, no caso do Frei Tito, apoiavam claramente o movimento, davam abrigo às lutas estudantis. Em 1968, o Frei Tito foi quem fez esse contato. Ele tinha feito movimento estudantil aqui, só que era um religioso. Não era ligado assim, organicamente, a nenhuma organização. Mas enfim, fomos presos todos e passamos acho que 10 dias presos. Fizemos uma greve de fome. O Brasil inteiro pegou fogo naquele momento. Manifestação no Brasil inteiro, o governo recuou, teve de nos libertar. Só que aquilo gera um processo penal militar, na Lei de Segurança Nacional. Contra quem? Não contra 800 pessoas, porque isso não funciona. Contra 70 estudantes no país e 10 eram do Ceará.

OP - O senhor era um deles?

Inocêncio - Eu era um deles. Volto para Fortaleza, todos nós voltamos. Eles pegaram todos os cearenses, botaram no ônibus, entregaram lá, mandaram deixar em Pernambuco, jogaram lá com na rodoviária do Pernambuco, “se vire,”. Nós chegamos e aí a coisa continuou, e logo em seguida foi decretada a prisão preventiva, porque aquilo gera um processo penal militar contra os 70, os mais importantes do país. Uma parte não saiu, Zé Dirceu. A auditoria militar de São Paulo decretou prisão preventiva de 70 estudantes do país, 10 eram do Ceará e eu era um deles. Da Faculdade de Direito eram uns quatro: Inocêncio Uchoa, Arlindo Soares que era trotskista, o Pedro Albuquerque e o Assis Aderaldo. Esses dois eram do PCdoB, tudo lideranças que estavam no congresso, e outros seis de outras faculdades, Ruth Cavalcante, o João de Paula, Bergson Gurjão Farias, o Patinhas, o Carlos Augusto, Patinhas, e Fausto Nilo, éramos dez. E aí o que que acontece? O reitor (Fernando) Leite (da Universidade Federal do Ceará, UFC), em razão dessa decretação de prisão preventiva, nos expulsou da faculdade, cassou as matrículas desses 10. E aí nós ficamos na faculdade com prisão preventiva e cassados da faculdade. E nós frequentávamos a faculdade, a gente não se entregava não. A Polícia Federal foi duas vezes na faculdade me pegar, saiu de porrada de lá, de porrada. E depois veio o AI-5. Com o AI-5 os caras invadiram o diretório e nós fomos total para clandestinidade. Também houve a desmobilização. O AI-5 foi no dia 13 de dezembro (de 1968), teve o fim das aulas e aí desmobilizou tudo. Nós fomos para a clandestinidade. Eu fui mandado para Pernambuco para militar lá na Zona da Mata açucareira. Onde tinha os conflitos de terra. Um ano depois eu fui preso lá em Pernambuco.

OP - Qual foi o ano em que o senhor foi preso?

Inocêncio - 1970. Fui preso no começo de 1970, em fevereiro, mais ou menos 20 e pouco. Fui preso pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Tem aquela primeira fase, aquela fase braba das torturas, do Dops. Todo o grupo foi preso. Nós éramos nove presos lá da Quarta Internacional. Tinha gente de São Paulo, do Rio Grande do Sul, alguns do Rio de Janeiro e aqui, Pernambuco e Fortaleza.

>>>>CASAMENTO

OP - O senhor foi levado para onde?

Inocêncio - Tinha havido aquele processo meu aqui, eu estava com prisão preventiva. O processo estudantil, da volta das aulas, o segundo processo. Eu fui trazido para cá (Fortaleza) para ser julgado. Nós fomos absolvidos, porque era um processo estudantil. Quando nós voltamos (Pernambuco), já me entregaram para a polícia do Exército, o quartel de artilharia, a 2ª Companhia de Guardas. Passei um tempo depois eles me tiraram, levaram para o Forte das Cinco Pontas, também do Exército. Eles diziam que ali era a cela em que foi preso o Frei Caneca. Eu estou dizendo o que me diziam na época. Porque na verdade só tinha uma cela mesmo.

Depois, eles me tiraram com o Aroeira. O Aroeira era do Rio Grande do Norte, estava preso também com a gente. Nos levaram, a gente algemado, com a cabeça enfiada aqui nas pernas. Aí pararam num certo momento, tiraram Aroeira, depois a gente viria a saber que foi no quartel lá de Olinda, e continuaram comigo e entraram na praia. Na areia da praia. E me fizeram um pelotão de fuzilamento. Eu fui fuzilado na praia. Os caras me tiraram, algemado, em pé. Eu olhava para o lado da terra e os militares olhando, atirando em direção ao mar. Que as balas que não me atingissem iriam para o mar. “Atenção, preparar e tal”. Aí escuto aquele clique. “Para, para, para”. Era uma encenação. Eu, se morresse ali, tudo bem. Só não ia morrer era reclamando. Morrer com dignidade. Acabou que me levaram para o Quartel das Cinco Pontas. Houve julgamento, depois eu fui levado para a penitenciária para cumprir pena mesmo. Ali era só presídio temporário.

Cumpri pena, fui solto normalmente e fui para onde? Vim para cá. Todo mundo tinha medo de mim, eu era terrorista, né? Quando a gente foi preso, aqui os jornais noticiaram que dois terroristas cearenses foram presos em Pernambuco queimando canaviais, que a gente estaria queimando. Então, todo mundo tinha medo de mim. Fui para Aracati, me escondi no Aracati, na casa de uma irmã minha durante um tempo, para saber o que a gente ia fazer da vida. A Ângela tinha terminado o Curso de Medicina, tinha ido para o Rio de Janeiro. E aí eu fui para o Rio de Janeiro. Casamos. Ela me apoiou desde o começo, desde a prisão, foi várias vezes lá, arranjou o advogado lá em Pernambuco também, com dificuldade para se deslocar para lá.

Tinha dificuldade com a família. Porque a família não aceita isso. Você cria uma uma menina arrumadinha, bonitinha, fazendo Medicina, para casar com um doutor e ela se engraça de um terrorista (risos), procurado, subversivo, procurado pela Polícia. Não tem pai que goste, né? Depois de algum tempo, o Superior Tribunal Militar (STM) aumentou a minha pena e o juiz expediu nova ordem de prisão. Aí já não foi prisão preventiva, era prisão mesmo para cumprir pena mesmo. Eu fiquei com uma clandestinidade mais forte, até que veio a anistia política.

OP - O senhor foi para onde? Ficou no Rio?

Inocêncio - Fiquei no Rio o tempo todo. Eu consegui trabalhar e até consegui me formar no Rio de Janeiro. 

OP - O senhor voltou para Fortaleza com a anistia?

Inocêncio - Volto com anistia. A anistia foi em 28 de agosto. Nós voltamos em dezembro de 1979. Eu já formado, tinha havido um congresso da anistia, julho e agosto de 1979, lá no Rio de Janeiro,

OP - O senhor atuou com vários sindicatos, na reorganização, na abertura.

Inocêncio - Quando eu chego, o Sindicato dos Bancários, que tinha sido retomado pela esquerda em agosto (de 1979), estava sem advogado. Eles queriam fazer o jurídico do sindicato dentro do sindicato. Não é que não tivesse, tinha o Tarcísio Leitão, mas era no escritório dele. Quando eu chego, e aí eles me convidaram, A (Maria da) Natividade, que era presidente, me convidou e eu criei o jurídico do Sindicato dos Bancários. Esse sindicato, esse jurídico, foi uma escola de advocacia até para mim mesmo, mas para essa nova geração que veio, toda ela. Vários presidentes de sindicato, de tribunais, procuradores da República, juízes federais, estaduais, promotores passaram pela minha mão, inclusive o Elmano (de Freitas, governador), que esteve no meu aniversário.

OP - Foi o começo dessa atuação sindical.

Inocêncio - Naquele momento, tinha havido a greve operária de São Paulo, em que surgiu o Lula da Silva, em 1979, nas grandes greves operárias de São Bernardo. No Brasil todo estava o movimento crescendo. Isso trazia muita gente querendo retomar suas lideranças sindicais. Eu ajudei a quase todas, não digo todas, mas acho que 99% das oposições sindicais que lutaram para recuperar o sindicato das mãos dos pelegos, quem ajudou foi eu. Claro que gratuitamente, trabalho voluntário. Depois da Constituição de 1988, quando foi permitido, porque, na época (da ditadura), o servidor público não tinha direito a sindicato, Com a Constituição de 1988 isso foi conseguido. Aí é que apareceram o sindicato dos servidores federais, o sindicato dos docentes da UFC, todos eles eu ajudei, todos, todos, todos. Sintufce, Mova-se, Sindiute, o que você queira. Eu ajudei a criação desses sindicatos, a recomposição do movimento sindical. Nesse momento em que os sindicatos foram nascendo, as oposições foram ganhando os sindicatos, foram sendo levadas para o Tribunal do Trabalho as questões que não eram levadas antes. Quem leva as questões na época da ditadura? Pequenas coisinhas individuais, não tinham questões coletivas e grandes. Depois é que tiveram muitas grandes questões, inclusive de planos econômicos. Quem levou isso para o tribunal? Inocêncio Uchoa, que era advogado dos Bancários e passou a ser advogado de todos eles, que iam sendo retomados. Quem é que ia ser? Tinha que ser eu, eu e essa turma que estava sendo criada por mim. Eu acho, eu não tenho dúvida de que eu ajudei ao fortalecimento da própria Justiça do Trabalho, que passou a ter demandas de real significado, diferenciadas. Inclusive, o tribunal daqui passou a ter jurisprudências diferenciadas no Brasil todo. Por quê? Porque tinha questões grandes que estavam sendo levadas para ele. Quem conduzia isso? Era o Inocêncio Uchoa.

OP - O senhor atuou também numa questão de muita repercussão, dos mutuários da casa própria. Como é que foi essa atuação?

Inocêncio - A ditadura militar, em 1965, criou uma política habitacional. Criou o BNH, Banco Nacional da Habitação, e estabeleceu uma política habitacional para facilitar a aquisição da casa própria. Para a classe média tinha uma determinada política e para o pessoal de conjuntos habitacionais tinha uma política diferenciada, digamos, mais favorável, com taxas melhores. Como é que funciona isso? Você financiava pelo BNH, pela Caixa Econômica. O agente financeiro era a Caixa Econômica, do BNH., ou por algum outro banco particular. Tinham vários bancos que financiavam também, aqui o BEC (Banco do Estado do Ceará), o Bradesco, os outros também. Mas a maior parte era na Caixa Econômica Federal. Como se tratava de uma prestação, de valor elevado e de muito tempo de pagamento — 15 anos, 20 anos — se você não limitar o aumento da prestação ao que o sujeito tiver no salário, aquilo dá uma distorção no valor da prestação que pode acabar levando o sujeito à inadimplência.

OP - Ainda mais com um monte de planos econômicos no meio.

Inocêncio - O que aconteceu. Eu comprei minha casa também financiada pela Caixa Econômica Federal. Você assina aquele contrato, uma ruma de papel, e vai embora. Num certo momento, o que aconteceu? Acho que foi 1985, 1986 por aí. O aumento da prestação, então, era o seguinte, para a classe média, tinha o PES, Plano de Equivalência Salarial. A prestação se reajustava uma vez por ano pelo mesmo percentual de aumento do PES do salário do mutuário. Então, se o salário daquela categoria profissional teve 10% de aumento, a prestação só pode aumentar até 10%. Por quê? Porque se aumentar 30%, normalmente é uma prestação alta no orçamento familiar, então ela passa de 25% para 30%. Se tiver mais um aumento do outro ano, vai para 40%. Daqui a pouco não pode pagar, fica inadimplente. Aí vira uma política habitacional ao reverso. O agente financeiro ia acabar retomando o imóvel. Que política habitacional é essa? Só tem sentido acontecer se for para facilitar a aquisição da casa própria, ou então não faz.

Houve uma grita generalizada no Brasil sobre isso, porque isso era nacional. Todo mundo era mutuário, inclusive os jornalistas do jornal O POVO, do Diário, televisão, todo mundo era mutuário, classe média, tudo lá na Caixa Econômica. Um grupo começou a se reunir na Faculdade de Direito, primeira semana, segunda semana, todo mundo sem saber. O Horácio Frota, professor, me chamou, me levou lá. Resultado, sobrou para mim para estudar o problema, que ninguém sabia nem o era aquilo. Aí eu fui ler, fui estudar o processo. Eu vi o seguinte, este era o problema: o BNH, em lugar de mandar aplicar nesse caso, na prestação, o que o mutuário teve de ganho no salário, mandou colocar a inflação. Aí as prestações subiram demais e houve a grita. O que que eu fiz? Disse: aqui cabe uma ação judicial para a gente não pagar esse valor, pagar só aquilo que a gente teve no salário. E fiz ação, ação Inocêncio Rodrigues Uchôa e outros. Eu sabia que ia ser um começo de um grande processo de natureza social. Fiz uma ação na Justiça Federal. Os outros acho que eram umas 30 pessoas. Pedi ao juiz que suspendesse aquele percentual de aumento e permitisse à gente depositar na Justiça mesmo, todos os meses, o valor que a gente tinha tido de aumento salarial. A gente passou a depositar a prestação de acordo com o aumento do salário. O juiz deu uma liminar. Explodiu nessa cidade. Manchete para lá e todo dia eu falava na televisão, nos jornais No O POVO, apareci muito. Depois de um ano, nós fundamos a Associação de Mutuários. Eu não era nem advogado civilista, eu era advogado trabalhista. Estava naquilo como fiz com os sindicatos, porque eu era mutuário também e o interesse na organização. Depois a gente viu que em outros estados também estava acontecendo a mesma coisa. Criamos uma coordenação nacional e fomos tão importantes que o Tancredo Neves nos recebeu, ele como candidato a presidente da República. Ele colocou no programa dele coisas que a gente tinha discutido com ele, mas infelizmente o Tancredo morreu antes de assumir a Presidência.

Quando eu deixei a Associação dos Mutuários, eu fui presidente da associação também, eram 850 e tantos processos coletivos que eu ajudei as pessoas a manter o seu imóvel. Coletivos. Eram milhares, eu ajudei milhares de pessoas a ter o seu imóvel. Tudo de graça, sem nem um centavo.

OP - Qual sua participação na emancipação de Icapuí?

Inocêncio - Havia uma associação de estudantes universitários em Aracati, que eram universitários aqui em Fortaleza ou em Mossoró. Essa meninada aí, eles cresceram ouvindo falar do Inocêncio Uchoa, filho da dona Virginia Uchoa, do seu Uchoa, que ninguém sabe onde é que vive, que foi preso e tal. Aí de repente eu chego, eu era, digamos assim, uma referência para eles, esses meninos. Aí foi uma festa. Entre esses estava o Airton Cirilo, que é deputado federal do PT hoje, e o Evaldo Silva, que era um estudante de Medicina. Na eleição de 1982, esses dois se candidataram e foram eleitos vereadores em Aracati, nós ganhamos quatro vereadores lá, nessa eleição. Dois eram desses meninos. O Airton é de Icapuí, era um distrito de Aracati. Depois da eleição, o Airton começou uma luta para emancipar Icapuí. Essa coisa foi, cresceu, cresceu, e nós conseguimos emancipar Icapuí. Teve a eleição e o Airton ganhou a eleição para prefeito, do candidato da oligarquia, que era o Zé Rico.

OP - Ainda PMDB?

Inocêncio - Era PMDB. Depois foi que a gente passou para o PT. Airton eleito prefeito, e aí, o que você vai fazer? Onde é que você vai ficar? Em que local, com quem você vai trabalhar? E cadê o dinheiro para pagar? Não tem. Isso não aparece como uma vara de condão, não. Eles escolheram lá uma sala do colégio, tinha umas escolinhas municipais, tudo caindo aos pedaços. Escolheu lá uma sala de uma escola para ser a Prefeitura temporariamente. Porque quando vai aparecer dinheiro já com o orçamento do outro ano, é coisa de meses que vai começar a pintar dinheiro. Eu era que tinha de pensar essas coisas. Zé Airton era estudante de engenharia, recém-formado, não sabia nem engenharia, quanto mais direito (risos). Eu fiz uma portaria, o Airton me nomeando procurador do Município, para que eu pudesse ter as condições legais para praticar os atos da administração, para não tornar esses atos nulos. Preparei uma portaria assim: prefeito, portaria número 1/86: “O prefeito municipal de Icapuí, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, nomeia Dr. Inocêncio Rodrigues Uchoa procurador do Município de Icapuí”. E aí, vírgula, “sem ônus para a municipalidade”. Sem Ônus, escrevi na portaria. Nem pode, porque o trabalho não pode ser gratuito, nem o particular, muito menos o público. Eu sabia que não podia, mas como eu não queria receber dinheiro mesmo, porque ali era um processo de voluntarismo também. Tá lá. Primeiro documento do Município de Icapuí tem o meu nome lá. Passei três anos como advogado do Município sem receber um centavo e saí de lá do mesmo jeito.

OP - Como foi a passagem para juiz trabalhista?

Inocêncio - Passei no concurso para juiz, em 1994. Eu passei mais de dez anos na magistratura. Eu era advogado trabalhista, era certamente o mais importante daqui. Eu era advogado de todo mundo, inclusive dos juízes do Trabalho, da associação de magistrados, dos servidores do Trabalho, todo mundo, tudo corria para mim. Eu deixei e fui para a magistratura, fiz concurso. Procurei fazer a magistratura, digamos assim, serena, prestigiando os advogados. Todos, novos, antigos, e os servidores também. E, principalmente, procurando ser justo. Não era pelo fato de ter sido advogado que eu teria necessariamente de praticar injustiça contra as empresas. É porque as empresas realmente não pagam muito. Quando os caras vão para a Justiça, normalmente, pode até exagerar um pouco, mas normalmente tem alguma coisa realmente.

OP - Um caso de muita repercussão foi o do comércio aos domingos.

Inocêncio - Eu dei uma liminar suspendendo o comércio aos domingos em Fortaleza. Naquela época, os shoppings estavam crescendo aqui em Fortaleza, tinha chegado o Iguatemi, estava mudando essa lógica. As pessoas queriam comprar durante os domingos e os shoppings permitiam isso. E as lojas de rua, que tinha, uma concorrência desleal, acabavam querendo também abrir, e abriam concretamente. Isso era uma discussão que existia no meio jurídico e no Sindicato dos Comerciários, que eu tinha ajudado a diretoria a ser eleita, eu sou muito ligado aos comerciários. O Ministério Público do Trabalho entrou com ação pedindo a suspensão do comércio aos domingos. E eu dei essa suspensão. Foi forte aqui, teve manchete de jornal. Eu recebi depois, da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio, um ofício me parabenizando pela pela decisão. Representando 28 federações, mais de 900 sindicatos e 13 milhões e meio de trabalhadores do comércio. Isso vigeu durante um tempo. Depois a coisa se acomodou, mas naquela época tinha essa essa briga entre eles, essa instabilidade.

Celebração

A festa de aniversário de 80 anos de Inocêncio Uchôa, em dezembro, reuniu personalidades como José Dirceu, o governador Elmano de Freitas, a deputa Luizianne Lins, Maria da Penha e os jornalistas do O POVO Plínio Bortolotti e Guálter George

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