A relação entre os poderes da República enfrenta série de turbulências nos últimos anos. A mais recente crise envolve um mecanismo essencial para atores políticos do Legislativo: As emendas parlamentares. Dispositivo crucial para a manutenção do capital político de deputados federais e senadores, as emendas são a forma de os congressistas indicarem envio de verbas para obras e projetos nas bases eleitorais.
Questões de falta de transparência e de rastreabilidade pesaram contra as emendas, fazendo com que o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendesse os repasses temporariamente no ano passado. A decisão desencadeou uma crise com o Legislativo e respingou no Executivo, que só teve o Orçamento de 2025 aprovado no Congresso no último dia 20 de março. Para este ano estão previstos pouco mais de R$ 50 bilhões em emendas parlamentares, sendo R$ 39 bilhões para emendas impositivas (obrigatórias).
As emendas permitem que os congressistas indiquem cifras milionárias para suas bases, por meio de emendas individuais, às quais cada parlamentar tem direito; de bancada, que são definidas pelo conjunto das bancadas federais de cada estado, além de outros tipos (ver quadro).
Em 2025 a previsão é de que mais de R$ 500 milhões sejam destinados à bancada federal cearense e que cada deputado tenha à disposição R$ 37 milhões em emendas; enquanto os três senadores devem ter acesso a R$ 68,5 milhões, cada.
As emendas também têm sido alvo de suspeitas de corrupção, o que fez com que o STF interviesse para garantir mais transparência nos repasses. Em março deste ano, o Supremo tornou réus dois deputados do PL suspeitos de desvios de verbas relacionadas às emendas. O deputado federal cearense Júnior Mano (PSB) é alvo de inquérito da Polícia Federal que tramita no Supremo, por acusação de usar verba das emendas para interferir em eleições de diversos municípios. Inclusive Choró, a 168 quilômetros de Fortaleza, onde o prefeito eleito Bebeto Queiroz está foragido da Polícia.
A suspensão do pagamento das emendas pelo STF fez com que representantes dos Poderes se reunissem ao longo dos últimos meses para encontrar uma solução. Um plano de trabalho foi formado, mudanças foram aprovadas no Congresso e sancionadas. Apesar disso, já há questionamentos quanto à efetividade das mudanças para garantir mais transparência.
Rodrigo Prando, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), atribui a crise entre os poderes a uma hipertrofia exacerbada do Legislativo.
“Isso ocorreu, de forma mais acelerada, no governo Bolsonaro. O Legislativo passou a ter fatias cada vez maiores do Orçamento, por meio das emendas, o que fez com que o Executivo ficasse sem o mesmo poder de barganha (...) A crise se dá porque o Executivo perde essas fatias e, de certo modo, o Judiciário cobra do Legislativo um fundamento da moralidade pública que é a transparência na aplicação destes recursos”, explica.
A crise envolvendo as emendas afeta — e muito — o Executivo. A gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrenta cenário de desgaste de imagem, com avaliação negativa superando a positiva. Nesse contexto, acabou pressionada pelo Congresso que, sem a garantia das emendas, não votou o Orçamento; atrasando pautas do governo.
“O governo Lula não teve, em nenhum momento nesse terceiro mandato, uma base de apoio consolidada. Cada situação e projeto foram negociados pontualmente. Isso também nos mostra como a correlação de forças mudou e mudou em prol do Legislativo, que pode, quando bem entender, atrapalhar a governabilidade”, destaca Prando.
Especialistas ouvidos pelo O POVO entendem que não houve invasão de atribuições por parte do Judiciário, que apenas agiu ao ser provocado sobre o tema. A cientista política Juliana Fratini, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, é categórica sobre o tema. “O STF é uma instância que trata do cumprimento de acordos passados (leis), ainda que estas mudem devido à flexibilidade do Legislativo. Não existe interferência. É o Legislativo que não pode ser tão inconstante e mudar de acordo com a conveniência do momento”.
Fratini reforça o papel dos congressistas, que devem prezar pela transparência acima de interesses. “Eles têm a obrigação com a sociedade em prestar contas. Querem emendas sem lastro e que ninguém sabe o que acontecerá com os recursos dos contribuintes se não houver as prestações de contas. Os parlamentares não estão autorizados pela lei a fazer o que quiserem com o dinheiro sem prestar contas. O STF está correto”, defende.
Já Prando fala que o Judiciário apenas agiu ao ser provocado sobre o tema. “Se cada poder cumpre suas funções, o outro não tem porque intervir. O Judiciário faz uma intervenção quando provocado e essa provocação é por transparência, não entendo que o Judiciário esteja invadindo a seara do Legislativo, mas que o Legislativo. Vale ressaltar que a emenda não é ilegal, não é eivada de vicios e corrupção, mas tem que ter uma destinação republicana onde o segredo é a exceção e a transparência a regra”, comenta.
O peso para o Legislativo
O imbróglio das emendas é bastante custoso para os parlamentares. Isso porque elas são fundamentais para deputados federais e senadores, na dinâmica de um ecossistema político em que os recursos chegam a determinados municípios via indicação de um parlamentar. No caso dos deputados, é comum ver conexões com prefeitos e vereadores aliados de seus respectivos redutos eleitorais.
Especialistas explicam que esse ecossistema se retroalimenta a cada dois anos, nas eleições. Isso se dá em forma de capital político, obras nas localidades e outros elementos de poder simbólico que são conquistados a partir do que se concretiza nos redutos.
Após o STF suspender o pagamento de emendas, a Câmara, o Senado e o Executivo firmaram um plano de trabalho para garantir mais transparência às emendas e atender às exigências do Supremo, indicando o fim da divergência entre Legislativo e Judiciário.
Entretanto, a proposta teria brechas, questionadas na Justiça por parlamentares do Psol, além de entidades de transparência. A brecha se refere à possibilidade de suprimir nomes de quem indicaria emendas de comissão. A sinalização é de que líderes partidários poderiam assinar indicações, mas sem identificar os autores dos pedidos de recursos. A questão foi trazida à tona pela Folha de S.Paulo. O ministro Flávio Dino, então, intimou governo e Congresso para que explicassem. O prazo para a resposta está em curso.
Rodrigo Pando, professor da Universidade Mackenzie-SP, considera que a melhor forma de superar a questão é um Congresso que garanta o respeito aos princípios fundamentais da administração pública e eleitores atentos aos mandatos de seus respectivos representantes.
"Com uma atuação mais transparente, pautada na legalidade, na moralidade e impessoalidade, elementos fundamentais da administração. Quando se tem o segredo como regra acaba dando-se espaço para a corrupção. A liderança política tem que ter a transparência dentro do mandato e além de tudo a possibilidade da sociedade civil compreender e acompanhar esses mandatos e ações", destaca o professor.
Sobre a brecha apontada após a reformulação do processo de indicação de emendas, Prando foi categórico ao afirmar que é um traço cultural do país. "O 'jeitinho brasileiro' é a coisa mais bem distribuída na sociedade. Da pessoa mais simples ao megaempreendedor. Em qualquer situação ou grupo, o 'jeitinho' está presente", diz.
Para o professor, a questão do Congresso é que eles estariam tentando "burlar a decisão" do STF e o próprio tribunal deve analisar se isso fere a determinação anterior. "Não tenho dúvidas que, por meio da criatividade, os políticos vão tentar criar subterfúgios para burlar decisões que pautam-se na transparência desses recursos. Cabe aos eleitores acompanharem os mandatos dos candidatos e entenderem o que está acontecendo".
Emendas e transparência
O que são
As emendas são uma parte do Orçamento de cada ano cuja forma de ser usada é definida por parlamentares (deputados federais e senadores). O mecanismo representa uma parte importante do Orçamento da União. Em 2025, a previsão é de que sejam indicados R$ 50 bilhões em emendas. Destes, R$ 39 bilhões são impositivos, portanto, de pagamento obrigatório pelo Executivo. As emendas são divididas em algumas categorias, cada uma com dinâmica e regras específicas. O tema tornou-se fonte de crise, com o STF cobrando mais transparência sobre o repasse de recursos que são indicados por parlamentares. Os valores geralmente são destinados aos redutos eleitorais dos políticos para a execução de obras e projetos. Há, ainda, casos de suspeita de corrupção envolvendo desvios dessas verbas ao longo dos anos.
Emendas individuais e emendas pix
São emendas impositivas, portanto de pagamento obrigatório pelo governo. Nesta modalidade, cada parlamentar tem acesso a um valor pré-determinado e pode indicá-lo individualmente dentro do Orçamento aprovado. Essas emendas poderão chegar a até 2% da Receita Corrente Líquida (RCL) do ano anterior. No caso das transferências especiais, conhecidas como "emendas Pix", a nova resolução aponta que elas devem ser destinadas "preferencialmente para a conclusão de obras inacabadas". As emendas Pix são repasses feitos diretamente para os caixas de estados ou municípios, sem a necessidade de convênios. A nova resolução aponta que elas precisarão apontar, de forma clara, os locais onde serão utilizadas.
Emendas de bancada
São emendas de execução obrigatória. A indicação cabe às bancadas estaduais (deputados e senadores) de cada estado e do Distrito Federal. Após adequações, deverão ser apresentadas junto de ata da reunião e aprovada por uma quantidade mínima de deputados e senadores do respectivo ente. A nova regra aprovada, estima que cada estado terá direito a até 11 emendas, sendo que ao menos três devem ser destinadas exclusivamente para obras em andamento.
O texto aponta que as emendas têm que informar o local de destinação e que a bancada não poderá enviar recursos a outro estado, salvo em casos onde ocorram projetos de amplitude nacional. Apesar de atender a critérios de transparência numa primeira ata, também é possível suprimir o nome de quem indicou a emenda, pois uma segunda ata, válida para fins de execução orçamentária, não traria o campo para preenchimento com nome do parlamentar solicitante.
Emendas de comissão
Recurso indicado por colegiados temáticos dentro das casas legislativas (Câmara e Senado). Esse tipo de emenda não tem o pagamento obrigatório. A modalidade foi inflada pelo Legislativo após o STF declarar a inconstitucionalidade e derrubar as antigas emendas de relator, que ficaram conhecidas como 'Orçamento Secreto'. Os valores para as emendas de comissão subiram de R$ 329 milhões em 2022, para cerca de R$ 15 bilhões no ano passado. Em 2025, o valor deve superar os R$ 11 bilhões.
Também foram apontadas possíveis brechas de transparência nessa modalidade. A nova resolução permite que cada parlamentar indique individualmente emendas às comissões, mas os líderes partidários também continuam indicando. Um documento prevê local para indicar autor do pedido de emenda; mas não fica claro se deverá constar nome de quem, de fato, solicitou ou do líder partidário que encaminhou.