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Flagelo, saques e mortes: histórias da última fome em massa nas secas do Ceará
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Flagelo, saques e mortes: histórias da última fome em massa nas secas do Ceará

Ainda no período da ditadura militar, a última grande fome do Estado causou êxodo, saqueamentos e fome. Estima-se que milhares de pessoas tenham morrido no Nordeste do Brasil em meio à seca, que chegou ao fim há pouco mais de 40 anos
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Abertura das comportas do Açude Castanhão em 12/5/2009 (Foto: Fco Fontenele)
Foto: Fco Fontenele Abertura das comportas do Açude Castanhão em 12/5/2009

"É a fome, é a fome", gritava em desespero uma mãe viúva, junto dos cinco filhos. Ela "mostrava para todo mundo três sacos de arroz, dois de farinha, dois sabonetes, e cinco pacotes de macarrão", obtidos ao participar de saque ao armazém da Cobal, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), conforme mostrou O POVO em abril de 1979.

Para conseguir os produtos, "dona Sara, além do vestido rasgado, levou um murro de um policial que tentava evitar a invasão do armazém, mas, duas horas depois, ela revelava que tinha assegurado alimentação para seus filhos", narrou Rodolfo Spínola, enviado especial a Quixeramobim.

O ano de 1979 começou com boas perspectivas, mas, após breve período de precipitações, a estiagem tomou conta. O ano anterior já não tinha sido o ideal, com chuvas ligeiramente abaixo do padrão histórico. Pelos cinco anos que se seguiram, de 1979, as precipitações ficaram sempre abauixo da média, na mais prolongada seca sobre a qual havia registro até então.

Aquela seca chegou ao fim com a quadra chuvosa de 1984. Em outra realidade social e de infraestrutura, o período há mais de quatro décadas marcou a última grande fome relacionada à seca no Ceará, amplamente documentada nas páginas do O POVO.

As estiagens eram recorrentes, mas a proporção e a duração não eram esperadas, o que ocasionou uma tragédia da fome, cujas estimativas apontam para milhares de mortes. "Com poucas exceções, não chove no Estado do Ceará. Em alguns municípios as primeiras chuvas vêm garantindo as plantações e a água para o gado, mas na sua maioria a estiagem já está gerando uma série de complicações, inclusive desidratação, como é o caso de Sobral, onde o sol causticante já levou várias crianças aos hospitais”, diz edição do O POVO de 17 de fevereiro de 1979.

A hipótese de uma seca total chegou a ser “afastada” pelo então governador do Ceará, Virgílio Távora, em encontro com jornalistas no gabinete, em março de 1979, convidados por ele para falar sobre o problema.

Para o chefe do Executivo estadual, mesmo com a estiagem alastrando-se por determinadas regiões do Ceará, o quadro não comportaria “descrição exagerada” porque, para ele, isso contribuiria para “estabelecer a inquietação no Estado”.

“Não foi a última grande seca, mas foi, talvez, a última que houve grande impacto social de aumento de fome, mendicância, migrações”, explica Frederico de Castro Neves, professor titular aposentado do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Conforme o livro Genocídio do Nordeste 1979-1983, publicado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), foram recolhidos nomes de quase cinco mil mortos na região, a maioria crianças. O livro reúne artigos de diversos autores sobre o assunto, em levantamento realizado de 1984 e 1985, com apoio de entidades e setores de movimentos populares.

O governador reconheceu, na ocasião, que existia, de fato, uma faixa crítica no Estado, compreendida por Inhamuns, Iguatu e o Médio Jaguaribe. Porém, a situação verificada foi mais severa que o esperado e desencadeou movimentos de êxodo, saques e mortes devido à fome.

O prenúncio de tempos difíceis ocorreu em 19 de março de 1979, Dia de São José, padroeiro do Ceará. A crença sertaneja aponta que, se não chover até esta data, é sinal de que o ano será de seca. O dia do padroeiro ocorre na véspera do equinócio de outono, o que favorece chuvas até esse período. Naquele ano, não choveu como esperado. 

A movimentação dos flagelados viria a acontecer diversas vezes na última grande fome. Durante essa seca, “foi um grande momento de mobilização da população pobre tentando obter os seus direitos, vamos dizer assim, direito à vida, direito à comida, pela via direta”, explica o professor Frederico de Castro Neves.

Era ainda regime militar e o Exército assumiu o papel de organização e controle dessa população assolada pela fome, para que ela, no auge da necessidade, não tomasse para si a decisão de obter o alimento com a própria força.

Em 1979, após meses de seca, os saques passaram a ocorrer com frequência. Em abril do mesmo ano, no município de Quixeramobim, uma súbita presença de cerca de 800 pessoas fugindo da estiagem surpreendeu a cidade.

As sedes da Cobal, iniciativa criada no governo do ex-presidente João Goulart, faziam parte de uma série de programas sociais de abastecimento e comercialização de alimentos para a população de baixa renda.

Ao mesmo tempo em que Quixeramobim recebia os castigados pela seca, também chegaram soldados do Exército, armados com metralhadoras e revólveres. Alegando medida de segurança, o tenente Soares, responsável pela equipe de militares, informou que o efetivo estava nas ruas para “qualquer eventualidade”.

Ainda no Município, os militares, que estavam em prontidão para controlar possíveis saques e perturbação da ordem, na verdade só registraram as condições miseráveis em que os retirantes estavam.

As pessoas que estavam se amontoando nos arredores da Cobal de Quixeramobim eram revistadas. Nem as sacolas das crianças eram dispensadas da vistoria, mas os militares não encontraram nenhum tipo de arma. Eram apenas pessoas, sem rumo, com fome, e esperando, talvez, um milagre.

Mais de 500 pessoas ocuparam o centro de Apuiarés em abril de 1979, em busca de alimento e trabalho. Nos primeiros três dias desde o início da situação, a Prefeitura distribuiu farinha, bolacha e feijão para amenizar a situação. Mas a medida apenas aliviava a situação por um curto momento e, no outro dia, eles retornavam ao local.

Saques ocorreram também em Iguatu. Cerca de 300 pessoas invadiram a sede da Cobal na cidade e saquearam o armazenamento no primeiro ano da última grande fome. “O saque foi rápido e os flagelados levaram, além de grande quantidade de cereais, uísque e cigarros”, descreveu o correspondente Julio Braga. 

Além dos saques, a fuga em busca de meios para sobreviver marca muitos episódios de seca no Ceará. “Se não chover, eu acho que a Guilherme Rocha (rua no Centro de Fortaleza) vai se encher de retirante, pois eu sou do Interior e sei como é seca. O pessoal só fala em vir ganhar a vida na Capital. Quando chega aqui, não encontra emprego”, disse José Silveira, que estava em situação de rua e falou ao O POVO em 1979.

O ápice da seca ocorreu em 1983, ano em que a média anual de chuvas marcou 361,4 milímetros, muito abaixo da média de 809,1 mm, conforme dados da Funceme. De lá para cá, nunca mais o registro histórico apontou ano com tão poucas chuvas.

JATI, CE, BRASIL, 08-02.2022: Barragem de Jati, com passagem das aguas do rio São Francisco. em epoca de COVID-19. (Foto:Aurelio Alves/ Jornal O POVO)
JATI, CE, BRASIL, 08-02.2022: Barragem de Jati, com passagem das aguas do rio São Francisco. em epoca de COVID-19. (Foto:Aurelio Alves/ Jornal O POVO)

O Governo e as políticas públicas

Quando a última fome em massa assolou o Ceará, e grande parte do Nordeste, já haviam sido criados órgãos do Governo que atuam para amenizar e combater os efeitos das secas, como a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), desde 1959, e o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), fundado em 1909, sob o nome de Inspetoria de Obras Contra as Secas (Iocs).

A edição do O POVO de 17 de abril de 1979 informou haver 180 municípios em situação crítica, distribuídos nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Eram e quase 2,5 milhões de pessoas atingidas.

Além das contribuições do Governo Federal, o Ceará tomou atitudes próprias também. Uma das iniciativas empregadas pelo Governo do Estado para amenizar a situação era usar "o avião da chuva", que realizava operações de nucleação artificial, quando nuvens já existentes são bombardeadas com substâncias químicas aglutinadoras capazes de formar gotas de água.

Em 1979, as operações de nucleação começaram em janeiro, "quando se começou a sentir a estiagem em todo o sertão cearense", relatou o repórter Carvalho Nogueira. Coordenada pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), a ação, em abril de 1979, ocorreu em Sobral, Santa Quitéria, Tamboril, Monsenhor Tabosa e Crateús.

Além da zona jaguaribana, Boa Viagem, Pedra Branca, Independência, Quixeramobim, Mombaça, Acopiara e o município de Tauá, na região dos Inhamuns.

Uma das iniciativas, ainda em 1979, foi a criação do Programa de Emergência, plano de assistência aos trabalhadores rurais nos municípios atingidos pela seca. O governo repassava verba para proprietários cujas terras empregavam mão de obra. Pequenos produtores rurais também estavam incluídos no benefício. Os escritórios de emergência recebiam alistamento de trabalhadores, mas não conseguiam incorporar todos.

A perfuração de poços profundos foi um dos procedimentos mais empregados. Em 1979, um convênio entre o Governo do Estado e a Conesp, empresa subsidiária da Sudene, recebeu Cr$ 12 milhões para realizar 100 escavações nas cidades que decretaram emergência. O valor, corrigido pelo INPC, equivale a R$ 5.785.346,75 atuais.

Embora o Programa de Emergência tenha sido importante para abrandar os sintomas da longa estiagem, a iniciativa foi desativada pelo Governo Federal em março de 1980. Conforme informou O POVO em edição do mesmo ano, o balanço foi o seguinte: 227 mil cearenses foram inscritos, açudes, poços e cacimbas foram construídos em propriedades, além de 79 municípios terem sido atendidos.

Em 1980, com a permanência da difícil situação, a Sudene lançou outra vez o plano de assistência aos municípios atingidos, ainda, pela estiagem.

Outra ação apresentada para amenizar a fome, naquele quadro emergencial, era a liberação, por parte do Dnocs, dos açudes para que a população pudesse pescar. Essa era uma das formas que o governo utilizava para atender aos famintos.

O plano de emergência do Governo Federal chegou a ser questionado algumas vezes por gestores cearenses. "Não faz sentido um homem solteiro ganhar a mesma quantia que um pai de família com cinco filhos", criticou Kleber Gondim, à época prefeito de Aracati e presidente da, na época, Associação dos Prefeitos do Estado do Ceará (Aprece).

Após o fim do Plano de Emergência, em maio de 1983, o Governo Federal criou os "Bolsões da Seca", em meados de julho do mesmo ano. O programa foi implantado pela Sudene, no então governo do presidente João Figueiredo.

Na gestão do então governador cearense Manoel Castro Filho, o programa tinha orientação um pouco diferente, e a prioridade, de acordo com o governador, era o aproveitamento de recursos hídricos, da açudagem e da perfuração de poços. Segundo ele, a diferença para o plano anterior era que os moradores ficariam concentrados onde já moravam. O programa era colocado em prática ao mesmo tempo que novos saques e movimentos migratórios continuavam intensos.

"As frentes de emergência eram normalmente obras públicas organizadas, precariamente, pelo Estado ou pelo Governo Federal, normalmente construção de açudes ou pequenas barragens, construção de estradas, construção, às vezes, de prédios públicos, para tentar dar uma ocupação a essas pessoas que estavam circulando pelo pelo território", explica o professor Frederico de Castro Neves.

O professor expõe que essas frentes "eram suspensas assim que havia possibilidade ou expectativa de volta da chuva. Em alguns momentos se chamou de Bolsões da Seca, em outro momento assistência de emergência. E normalmente era um salário irrisório que era pago em troca de um pequeno serviço. Como eu falei, muitas vezes eram feitos açudes, barragens. Ficou até uma expressão curiosa aqui, que o pessoal chamava de 'açude Sonrisal'".

O programa dos Bolsões também foi alvo de denúncias de irregularidades. No governo de Gonzaga Mota (1983-1987), ex-chefe do Executivo estadual, parlamentares da oposição visitaram algumas das frentes de serviço. Os principais problemas denunciados foram alistamentos realizados para beneficiar "correligionários desse ou daquele prefeito, de deputados e 'coronéis'", noticiou O POVO em edição de 1983. (Rogeslane Nunes)

Depois da seca, as enchentes

Após cinco anos de seca severa, o Ceará enfrentou uma temporada com chuvas intensas. No ano de 1984, o Calendário de Chuvas da Funceme indica que choveu 1.037,8 milímetros. Muito mais que a média, de 809,1 milímetros, e quase o triplo do registrado no ano anterior, quando choveu 361,4 milímetros. Novos transtornos ocorreram, como enchentes e, ainda, a falta de alimentos.

O início do ano foi marcado pela continuidade da estiagem, mas as precipitações vieram a ocorrer com abundância em abril. O Baixo Jaguaribe recebeu 137 toneladas de alimentos para atender a população que sofria com as enchentes na região, conforme registrou O POVO.

Municípios como Iguatu, Limoeiro do Norte, Aracati, Morada Nova e Tabuleiro receberam comida do Governo. Entre os itens, feijão, arroz, farinha, açúcar, charque, óleo, sal e café. Os produtos seriam para atender 22.700 pessoas no espaço de duas semanas.

A situação foi grave o bastante para que os "Bolsões da Seca" continuassem nas áreas atingidas, assegurou o superintendente da Sudene na época, Valfrido Salmito. (Rogeslane Nunes)

Mortes pela fome depois da grande seca

A grande seca de 1979 a 1983 foi a última a registrar fome em massa, mas isso não significa que, em menor escala, a calamidade não continuasse a atingir o sertão.

Em 1993, anos após o ápice da última grande fome relacionada à seca no Estado, a morte visitou, mais uma vez, famílias do Ceará e por esse mesmo motivo. A edição do O POVO de 7 de janeiro daquele ano noticiou: "Criança filha de retirantes morre de fome". A reportagem mostrou o drama de mais de 400 famílias que viviam em condições precárias às margens da BR-020, no município de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).

"Como grande parte da comunidade está sem emprego ou veio do Interior fugindo da seca, a situação se agrava a cada dia que passa", dizia o texto do O POVO. Sem água, luz e, principalmente, alimento, essas eram as circunstâncias em que sobreviviam os retirantes.

"A minha irmã morreu porque a gente não tinha nada para cozinhar. Quando a 'mãinha' conseguiu um pouco de arroz para fazer, a Marciana já não estava aguentando mais e logo depois ela faleceu", contou Francisca Dilma, então com apenas 10 anos de idade.

A irmã dela, de um ano e meio, padeceu de fome após uma longa jornada de fuga da seca, em 1993. Com origem em Campos Sales, distante 546 km de Fortaleza, a família passou "um mês de viagem sob as piores condições possíveis", diz a edição da época.

Ao chegar a Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), a comunidade se instalou em construções de barro e madeira, outros tinham somente "uma frágil estrutura de folha de carnaúba", conta no texto, que trouxe, ainda, a descrição de abrigos cobertos com papelão. (Rogeslane Nunes)

Abertura das comportas do Açude Castanhão em 12/5/2009
Abertura das comportas do Açude Castanhão em 12/5/2009

O que mudou com a tragédia da fome e da seca

Em 1979, "não foi a última grande seca, mas foi, talvez, a última que houve grande impacto social de aumento de fome", explicou o professor Frederico Neves.

Desde 1910, em apenas dois momentos o Ceará experimentou uma estiagem tão prolongada, a de 1979 a 1983, superada em duração pela que se estendeu de 2012 a 2017. Mas, devido às condições de vulnerabilidade no sertão, a que terminou há pouco mais de 40 anos foi mais sentida pela população.

De lá para cá, inúmeros investimentos de governos nas esferas estadual e federal foram feitos em segurança hídrica da população. Os programas contribuíram para amenizar fortes estiagens que o Estado viria a passar desde a última grande fome.

No Ceará, projetos como a construção do maior açude do Brasil, o Castanhão, obra que começou efetivamente em 1995, surgiu em meio a polêmicas e expectativa de grandes planos. Ele foi entregue em 2002, no Vale do Jaguaribe, no então governo de Fernando Henrique Cardoso. A barragem tem a capacidade de armazenar 6,7 bilhões de metros cúbicos (m³) e atende aproximadamente 5 milhões de pessoas, segundo o Dnocs.

Nos governos de Tasso Jereissati, outro importante avanço para a segurança hídrica implementado foram os canais de integração, que conectam bacias e permitem o deslocamento das águas de açudes, o que possibilitou o acesso ao recurso por lugares antes não abastecidos.

Um marco importante foi a transposição do Rio São Francisco para o Ceará, obra que atravessou os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Ao chegar ao Ceará, a água é distribuída por meio do Cinturão das Águas, que tem 145,3 km de caminhamento, compreendendo segmentos de canal a céu aberto, túneis e sifões. A obra está dividida em cinco lotes com cerca de 80,5% de execução, segundo informações de novembro de 2024. A previsão de conclusão é para junho de 2026.

Além disso, há o Eixão das Águas, conjunto de obras que conecta o açude Castanhão à Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). É composto por uma estação de bombeamento, canais, adutoras, sifões e túnel, que reforça o abastecimento em diversas regiões do Estado.

Na esfera federal, os programas de assistência e sociais são destaque no combate à fome e no auxílio à sobrevivência em meio à estiagem, como o Bolsa Família. Para o futuro, a Usina de Dessalinização (Dessal) deve funcionar como reserva de emergência para o abastecimento. A dessalinização, em caso de seca extrema, entraria como um recurso complementar. (Rogeslane Nunes)

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