A aprovação do uso de drones na pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará põe em xeque uma luta histórica encabeçada pelo agricultor e líder camponês José Maria Filho (1966-2010), morador da comunidade do Tomé, em Limoeiro do Norte.
Zé Maria do Tomé, como era conhecido, tinha 44 anos quando foi assassinado com mais de 20 tiros depois de mobilizar toda uma comunidade para denunciar os efeitos do uso indiscriminado dessas substâncias no Vale do Jaguaribe, maior agropolo fruticultor do Ceará desde a construção dos perímetros irrigados.
Na região jaguaribana, 21 de abril tornou-se uma data emblemática. O dia que costumava fazer alusão à morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, passou a ser conhecido como o dia em que calaram José Maria.
O assassinato do ambientalista aconteceu em uma estrada erma, entre bananais, perto da divisa entre Ceará e Rio Grande do Norte.
O crime bárbaro repercutiu internacionalmente e as denúncias do agricultor contra grandes empresas do agronegócio tomaram proporções.
Ele também era um dos principais defensores da redistribuição de terras do chamado Perímetro Irrigado do Jaguaribe-Apodi, uma área pertencente ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e disputada por produtores rurais da região.
A problemática descoberta por Zé Maria depois de uma doença que acometeu a filha mais velha com uma infecção de pele nas partes íntimas fez com que o agricultor investigasse e descobrisse que a piscina que abastecia a comunidade estava contaminada.
Para denunciar a situação, ele participava de programas de rádios, reuniões com comunidades e audiências com órgãos públicos.
Junto com organizações comunitárias, pastorais da igreja, movimentos populares, pesquisadores(as) e a sociedade civil, o comerciante conseguiu realizar pressão sobre a Câmara Municipal de Limoeiro do Norte e fez com que o plenário aprovasse a Lei n° 1.278/2009, que proibia a pulverização aérea de agrotóxicos no município.
Sem medo, ele citava nomes e apontava culpados. Em uma tarde de quarta-feira, quando retornava para casa em uma estrada deserta e com vasta vegetação, foi alvo de uma emboscada e cruelmente executado.
Um pendrive com material que ele teria colhido para mostrar em uma reunião no dia seguinte foi levado, o que ampliou os indícios de que o crime teria ligação com suas denúncias.
Testemunhas relataram que Zé Maria tinha avisado que “havia uma bomba para ser estourada na reunião” e que “poderia até não ganhar a questão, mas tinha muita coisa para mostrar”.
Apesar de seu fim trágico, as palavras de Zé Maria ainda ressoam. “Se me matarem, ressuscitarem na luta do meu povo”, prenunciava.
E aconteceu: comunidades camponesas germinam sob a voz do “Chico Mendes do sertão” — agora a data 21 de abril não é somente um dia de homenagens, é também um dia de luta.
As primaveras silenciadas do agricultor se conectam com o primeiro alerta mundial contra o uso de pesticidas: em 1962, a bióloga norte-americana Rachel Carson publicou Silent Spring (Primavera Silenciosa), um livro que denunciava os efeitos devastadores dos agrotóxicos sobre a natureza.
O aviso era claro: se a humanidade continuasse nessa guerra química contra a vida, os pássaros deixariam de cantar e as primaveras se tornariam silenciosas.
Décadas depois, no sertão cearense, a metáfora ganhou contornos trágicos e concretos.
Assim como Carson, que enfrentou a fúria da indústria química ao expor os danos dos agrotóxicos, Zé Maria incomodou interesses poderosos.
Mas se tentaram silenciá-lo, não conseguiram apagar sua luta. A proibição da pulverização aérea no Ceará, conquistada anos após sua morte, é prova de que a primavera ainda floresce.
A lei que leva seu nome na mira do agronegócio
A continuidade do legado de Zé Maria ainda se perpetuou em forma de mudança política com a proibição da pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará. De autoria do deputado Renato Roseno (Psol), a Lei Estadual Nº 16.820 entrou em vigor em 2019 e, desde então, os casos de câncer têm diminuído em municípios como Limoeiro do Norte.
A notícia da aprovação da lei que permite o uso de drones na pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará foi recebida com surpresa por Roseno. O governador Elmano de Freitas (PT), que era deputado em 2018, foi coautor da Lei Zé Maria do Tomé e, durante anos, teve ampla atuação junto a movimentos sociais como o MST.
O projeto, apresentado pelo deputado estadual Felipe Mota (União Brasil), tramitou em regime de urgência e, em menos de 15 dias, estava aprovado. Logo depois, o texto foi sancionado por Elmano, apesar do apelo de movimentos e instituições.
"O governador não permitiu que uma matéria tão complexa e delicada fosse discutida com a sociedade. E digo o governador porque foi ele, efetivamente, quem mobilizou sua base para atender, em tempo recorde, uma demanda que era unicamente do agronegócio", coloca Renato Roseno.
O deputado destaca que a Lei Zé Maria do Tomé foi pioneira no Brasil, referendada pela ciência e pelo mundo jurídico: "O agronegócio tentou a todo custo derrubar nossa lei, inclusive por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6137) ajuizada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Mas em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade da lei por unanimidade".
Para o autor da Lei Zé Maria do Tomé, "a tramitação em tempo recorde de uma matéria que representa um retrocesso tão grande do ponto de vista ambiental e sanitário só revela a força da pressão que o agronegócio exerceu sobre o governador. Mas revela, sobretudo, que o governador se curvou a esses interesses, traindo sua trajetória e seus companheiros de luta".
Em abril, o procurador-geral de Justiça do Ceará, Haley de Carvalho Filho, formalizou um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a mudança.
Segundo a Procuradoria Geral da Justiça (PGJ), lei é um "nítido retrocesso legislativo" e "incompatível" com os princípios da "prevenção, precaução, da proibição de proteção deficiente e vedação de retrocesso ambiental".
Em ação, a PGJ ainda destaca que "não há estudos suficientes que comprovem a efetiva segurança para o meio ambiente ou para a população circunvizinha de uma plantação que é submetida ao uso de agrotóxicos aplicados pelo uso dessa nova tecnologia".
A decisão da PGJ é resultado de uma representação de Roseno enviada ao Ministério Público do Estado Ceará (MPCE). (Com Mariana Lopes)
Leia mais em Política, página 7
"Ressuscitarei na luta do meu povo"
Quinze anos após o assassinato de Zé Maria, a juventude camponesa jaguaribana tem assumido as bandeiras de luta encampadas pelo agricultor.
Renato Pessoa é um desses jovens. Acampado no assentamento que leva o nome de Zé Maria, é membro da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e evidencia o quanto essa semente se espalhou através de movimentos locais, regionais e até nacionais.
"A questão aqui não se resume aos agrotóxicos. É muito mais que isso. É pelo direito à terra, direito à água, alimentação saudável, é pelo semiárido vivo. Zé Maria tinha noção de tudo isso", expõe o mouradouro acampamento, criado em 2014 dentro do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi.
Renato lembra que esses pontos "são sempre colocados em pauta durante o ano", mas principalmente na Semana Zé Maria do Tomé, que entrou no calendário do Estado em 2019 e começa no dia 21 de abril, data da morte dele.
Com debates, palestras, exibições artísticas e uma romaria em sua homenagem, o evento reúne pessoas de todo o Brasil, autoridades científicas, movimentos sociais e a igreja. A programação é organizada pelo Movimento 21 de Abril (M21), criado para preservar a memória de Zé Maria.
Um dos integrantes é o historiador Reginaldo Ferreira, que reforça a articulação do movimento com outras organizações populares para pressionar o Governo do Estado pela revogação da lei.
Se os interesses tentaram calar o agricultor, na avenida seu grito é retumbante. No Carnaval de 2025, Reginaldo narra que a bandeira pela revogação da aprovação do uso de drones esteve presente em agremiações, fantasias, canções e palavras de ordem de diversos municípios cearenses.
"Esses gritos chegam para nós de uma forma muito forte: no cheiro do veneno, na falta de água nos poços, na contaminação das pessoas", expõe Aline Maia, educadora popular na Cáritas Diocesana de Limoeiro.
"Zé Maria foi uma figura chave nesse processo. Ele começou a procurar a igreja depois do adoecimento da filha dele, a Márcia, e tomou a frente dessa articulação. A Cáritas se juntou a essa rede que ele estava formando", aponta.
O nome desse líder camponês também acompanha comunidades por meio da educação. É o caso da Escola Família Agrícola (EFA) Jaguaribana Zé Maria do Tomé, em Tabuleiro do Norte.
O educador Thiago Valentim é coordenador executivo da escola pública que se fundamenta na agroecologia e convivência com o semiárido para manter viva a cultura do campo.
"A EFA tem o nome de Zé Maria não simplesmente por uma homenagem, mas para dizer que a gente assume o mesmo projeto", garante.
A unidade está situada em Olhos D'Água dos Curraia, comunidade que, segundo ele, é diretamente impactada pela chegada do agronegócio "cercando os quintais e a frente das casas dessas famílias".
Thiago ressalta que é um desafio trabalhar com a juventude camponesa. "A medida em que o agronegócio vai avançando, vai expulsando as famílias. Além disso, há todo um projeto de educação profissional para que esses jovens saiam do campo e vão para a cidade", diz.