Até o último momento, arrependimento e culpa não passaram pela mente do iminente suicida Adolf Hitler no dia 30 de abril de 1945. O líder da Alemanha nazista tomou uma pílula de veneno e atirou contra a própria têmpora há exatos 80 anos, ato de admissão de derrota da Segunda Guerra Mundial, mas nunca de rendição.
"Morro com o coração feliz, consciente dos feitos e conquistas incomensuráveis dos nossos soldados na frente, das nossas mulheres em casa, das conquistas dos nossos agricultores e trabalhadores e do trabalho, único na história, dos nossos jovens que levam o meu nome", declarou um Hitler orgulhoso da barbárie, mas receoso que o Exército Vermelho da União Soviética o capturasse vivo ou morto e expusesse o corpo inerte.
Seu império começou a ruir após a Alemanha quebrar o pacto de não agressão e invadir a União Soviética, em junho de 1941. A professora da Faculdade de Ciências e Humanidades e de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC, Ana Maria Dietrich, destaca que o exército alemão tinha certa apreensão de serem invadidos pelo exército soviético. No fim, foi o que aconteceu.
"Quem invadiu Berlim foram as tropas da União Soviética, de quem os alemães tinham muito medo. Eles já estavam prevendo o final da guerra. Mas torciam para que fossem os franceses ou os ingleses, porque eles sabiam que se fossem os russos, eles viriam com sangue nos olhos por tudo que a Alemanha tinha 'aprontado' no território da União Soviética", diz Ana Maria.
Hitler era orgulhoso e megalomaníaco. Ele ordenou que, após sua morte, os soldados incinerassem seu corpo e fizessem o mesmo com sua esposa Eva Braun, que seguiu o destino do nazista. Não houve recuo das tropas até o fim do comando do chanceler alemão. Ana Maria explica que, mesmo com a queda iminente de Berlim, o ditador continuou enviando soldados para a luta.
Embora muitos alemães alegassem desconhecer a extensão do Holocausto, a política antissemita era presente e visível em toda a sociedade. Segundo a professora, a conquista de territórios e a "higiene racial" alcançavam o mesmo patamar de importância para o nazismo.
"Por que um país que está perdendo, gastando muito recurso com uma guerra externa, tira recurso para uma guerra interna, que é chamada de solução final, o Holocausto? Porque, para a ideologia nazista, era tão importante a guerra, para se conquistar o Lebensraum (Espaço Vital) quanto fazer a chamada higiene racial, promovendo o genocídio dos judeus e demais minorias", explica Ana Maria.
A história do Brasil na Segunda Guerra é de neutralidade até 1942. O país vivia o Estado Novo de Getúlio Vargas, que mantinha relações amigáveis com Adolf Hitler. Ana Maria, que escreveu a dissertação de doutorado "Nazismo tropical? O partido Nazista no Brasil", explica que a neutralidade perante a guerra favoreceu a disseminação do Partido Nazista no Brasil, que chegou a ser a maior célula nazista fora da Alemanha.
Ana Maria destaca que os alemães no Brasil, durante a Segunda Guerra, não tinham ações concretas de antissemitismo. "O que tinha era essa exaltação, ufanismo, nacionalismo exacerbado com relação a serem alemães", diz. Ao fim do conflito, o mundo descobriu os campos de concentração e contabilizou seis milhões de judeus, entre homens, mulheres, idosos e crianças assassinados pelos nazistas.
Com a morte de Hitler, a invasão de Berlim pelo Exército Vermelho soviético e as informações divulgadas, os alemães engajaram-se em sua Erinnerungskultur, ou "Cultura da Lembrança", com monumentos, museus e efemérides para garantir que os horrores da guerra jamais fossem esquecidos.
Porém, em 2024, as peças do jogo mudaram quando o partido de extrema direita Alternativa para Alemanha (AfD) conseguiu 152 assentos no parlamento, do total de 630, representando o melhor resultado para legenda no país desde a ascensão do nazismo, há 90 anos. A líder do AfD, Alice Weidel, defende o fechamento de fronteiras e a deportação em massa de imigrantes, embora seja casada com uma imigrante e neta de um juiz nazista. No país vizinho, a extrema direita ganhou espaço com o avanço do partido de Marine Le Pen, do partido Reunião Nacional, na França.
O crescimento da extrema direita tem se repetido em diversas partes do mundo, impulsionando líderes como Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro no Brasil, Javier Milei na Argentina, Benjamin Netanyahu em Israel e Giorgia Meloni na Itália. No território nacional, o avanço dessa corrente política nos últimos anos coincidiu com um aumento expressivo de manifestações neonazistas.
O avanço da extrema direita no Brasil nos últimos anos coincidiu com o crescimento expressivo de manifestações neonazistas em todo o país. Segundo pesquisas feitas pela antropóloga e doutora pela Unicamp Adriana Dias, o número de células neonazistas passou de 72 em 2015 para 1.117 em 2022.
Segundo Ana Maria, existem paralelos específicos entre o nazismo e a extrema-direita atual, com são evidentes no ódio às minorias, embora os alvos possam variar.
"Pode ser o imigrante nordestino, pode ser aqueles chamados petralhas. Por exemplo, a gente vê nas manifestações de 2013, alguns registros de fotos que mostram Lula e Dilma sendo enforcados. Então, esse discurso absurdamente extremo de violência, de desumano, de tudo mais. Isso tudo é resquício, uma herança, dessas ideologias extremas", destaca.
Mundo vem naturalizando a extrema direita
No contexto da ascensão do nazismo na década de 1930, minorias como comunistas, judeus e outras minorias étnicas foram culpabilizadas pela crise econômica que a Alemanha enfrentava, e paralelos podem ser observados nas pautas da extrema direita moderna.
Atualmente, a bandeira da extrema direita mundial é culpar o imigrante. A professora de Filosofia Ana Beatriz Gomes, especialista em geopolítica, relações internacionais e direitos humanos, expõe a relação dos governos de extrema direita com a pauta da imigração.
"No caso da Europa, o imigrante muçulmano. A gente tem uma questão muito forte de preconceito e desumanização do mundo muçulmano. E no caso dos Estados Unidos, essa desumanização acontece na perseguição do imigrante latino, que é o perseguido. Não tem um avião de deportados franceses. Então tem um trabalho de culpabilização dessas minorias sociais para que elas sejam responsáveis pelo colapso econômico", explica a professora.
Ela destaca a estratégia da extrema direita de capitalizar a desesperança da população oferecendo soluções rápidas e populistas. Ela afirma que os grupos autoritários tendem a dar respostas rápidas, "extremamente populistas", o que atrai o público mais jovem.
Estudos feitos pelo Pew Research Center mostraram um crescimento da aceitação a regimes de extrema direita. Em fevereiro de 2024, uma pesquisa do instituto mostrou que, em média, 31% dos 24 países apoiam sistemas autoritários. O estudo também mostrou que, na Europa, pessoas com opiniões favoráveis a partidos populistas de direita também são especialmente propensas a apoiar o autoritarismo.
Na Alemanha, por exemplo, 37% dos que têm uma opinião favorável ao partido Alternativa para a Alemanha (AfD) apoiam formas não democráticas de governar.
O mesmo estudo do Pew Research Center detalha que jovens norte-americanos vem apoiando as pautas da extrema direita. Por exemplo, 38% dos americanos com menos de 30 anos apoiam essas alternativas não democráticas, em comparação com 29% daqueles com idades entre 50 e 64 anos e 26% daqueles com 65 anos ou mais.
A professora exemplifica o que acontece no Brasil, "principalmente alguns setores da mídia, que tendem a dizer que alguns candidatos que são extrema direita são candidatos de direita. Isso cria um problema para a população, porque a população não consegue compreender exatamente em que está votando", argumenta a professora. "E também existe um perigo maior. Porque você naturaliza, por exemplo, falas como o fim dos direitos humanos, como se fosse uma fala politicamente correta, como se fosse politicamente admissível dentro do jogo democrático". (ML)