Aposentado desde 2005, Henrique Viana Cavalcante, 70, tem o hábito de consultar os extratos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ele gosta de acompanhar qualquer transação que envolva o seu dinheiro. Em dezembro de 2022, no entanto, notou um desconto inesperado no valor de R$ 44,46.
“Isso é um costume antigo meu. Quando foi dia 21 daquele mês, percebi o desconto desse valor, referente a uma associação que eu não havia autorizado. Naveguei pelo aplicativo e vi que poderia solicitar a suspensão”, conta.
O servidor público fez então dois requerimentos no aplicativo Meu INSS: um solicitando a devolução do dinheiro e outro pedindo o bloqueio de novos débitos provenientes de associações e entidades não autorizadas por ele. Temendo demora na resolução, Henrique registrou uma queixa no portal Reclame Aqui. Pouco tempo depois, recebeu uma ligação da associação, cujo nome ele não recorda.
“Era janeiro de 2023 quando surgiu outro desconto. Por telefone, prometeram devolver uma parcela naquele mês e outra em fevereiro, além de garantirem que não haveria mais descontos. Porém, também pediram para que eu retirasse a reclamação, mas recusei. Daria baixa apenas quando me ressarcissem integralmente”.
Após esse episódio, as duas parcelas foram devolvidas ainda naquele janeiro. Henrique é uma das cerca de seis bilhões de vítimas da fraude relevada no último dia 23 de abril no âmbito da Operação Sem Desconto, deflagrada pela Polícia Federal (PF) e a Controladoria-Geral da União (CGU), cujo impacto financeiro é estimado em R$ 6,3 bilhões. O esquema derrubou o ministro da Previdência, Carlos Lupi (PDT), que anunciou ter deixado o cargo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) convidou o número dois da pasta para o cargo.
Com ações no Ceará e em mais 13 estados, a operação visa combater um esquema nacional de descontos associativos ilegais em aposentadorias e pensões. Situação que expõe mais uma vez a fragilidade do INSS, muito visado como alvo de fraudes e irregularidades.
"Essa operação gera um impacto grande à medida que coloca em xeque a própria credibilidade do sistema previdenciário", resume o procurador de Justiça Roberto Livianu, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac).
Diante de um histórico de corrupção que remonta à criação do INSS, em 1990, especialistas apontam que o órgão é alvo constante de golpes justamente por lidar com um grande volume de recursos. "Conjugadas as dimensões individuais e coletivas, sabe-se que o sistema previdenciário brasileiro lida com muito dinheiro. Neste espaço, há inúmeras possibilidades de desvios", observa o sociólogo Rodrigo Prando, professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
Mas o principal fator indicado para explicar a facilidade do INSS em estar envolvido em casos de corrupção já havia sido percebido pelo senhor Henrique. “A resolução dessa minha questão veio primeiro pela condição que eu tinha de saber utilizar o aplicativo. Cenário que acredito não ser o da maioria dos beneficiários”.
Paula Vieira, cientista política e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia, vinculado à Universidade Federal do Ceará (Lepem-UFC), nota que, além de o INSS ter uma verba grande, os descontos indevidos eram em parcelas inferiores a R$ 100, ou seja, podiam passar despercebidos. A investigação aponta que as mensalidades estipuladas pelas entidades associativas chegaram ao valor de R$ 81,57.
“Como é uma população mais idosa, que tende a não se adaptar às novas tecnologias, elas ficam mais suscetíveis a golpes. Essa perspectiva, no entanto, acaba jogando a responsabilidade muito mais sobre as vítimas do que aos fraudadores. Entramos numa grande discussão moral de interesses; e ainda não se tem muita clareza de como esse mecanismo foi montado”, pondera.
O relatório da CGU sobre esse esquema revela que dos 72,4% dos beneficiários entrevistados desconheciam a existência do desconto associativo. Para ter ciência da situação, é necessário acessar o extrato, "o qual não é mais enviado ao beneficiário", podendo ser requerido em uma Agência da Previdência Social ou pelo aplicativo Meu INSS.
Conforme o documento, 42,4% informaram desconheceram o aplicativo, enquanto 25,1% conheciam, mas nunca tinham utilizado, e 32,4% já haviam usado. Dos 351 beneficiários que relataram conhecer
o desconto, 35% não solicitaram o cancelamento, "sinalizando eventuais dificuldades ou desconhecimento sobre como realizar tal requerimento".
"A utilização de ferramentas digitais por uma minoria dos beneficiários do INSS limita a capacidade de o cidadão identificar possíveis descontos realizados sem sua autorização, situação agravada em função das fragilidades de controle relacionadas à inclusão desses descontos na folha de pagamento do INSS", relata a CGU.
É neste cenário que o ex-servidor do INSS e advogado previdenciarista Renan Félix compreende a deficiência do órgão federal em cumprir o papel de não apenas fiscalizar, mas coibir práticas fraudulentas.
“O escalonamento dos descontos aliado aos inúmeros pedidos de cancelamento, com as denúncias por parte dos segurados, startou essa investigação, que a todo momento revela a participação de servidores, lobistas e dirigentes sindicais. Tudo isso expõe a fragilidade do INSS em fiscalizar o Acordo de Cooperação Técnica (ACT), mecanismo legal que tenta encurtar caminhos. O sistema previdenciário precisa reprimir esse tipo de prática, identificando possíveis erros operacionais”, considera.
A CGU, por sua vez, ressalta que "a própria fragilidade inerente ao perfil dos beneficiários, na grande maioria formada por idosos, com maior dificuldade de acesso a canais digitais, associada à deficiência
dos instrumentos de controle do INSS, tornam esses beneficiários suscetíveis à atuação de terceiros, agindo com o objetivo de obter, sem o devido esclarecimento aos beneficiários, a documentação relativa à filiação e à autorização para o desconto associativo".
Para Renan Félix, se o INSS concede "um certo poder" a essas entidades associativas e não o fiscaliza, o órgão federal é "conveniente" a esse tipo de prática. Já para o senhor Henrique, a situação ratificou a necessidade de estar atento às movimentações no sistema previdenciário.
“Me considero até privilegiado, porque a minha condição é de saber analisar essas coisas. Primeiro, tenho o costume de usar informática e gosto de acompanhar meus extratos”, reforça. Mesmo depois de ter bloqueado empréstimos e descontos associativos não autorizados, o servidor público se mantém atualizado sobre qualquer transação financeira relativa à aposentadoria.
De quem é a culpa?
Em meio ao escândalo mais recente do INSS, apoiadores do presidente Lula (PT) e do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) disputam narrativas sobre quem, afinal, é culpado pelo esquema fraudulento.
Enquanto defensores do petista acentuam que os descontos indevidos ocorreram há anos, quando o ex-mandatário do PL estava na chefia do Executivo, bolsonaristas lembram que o ex-presidente da instituição foi nomeado no governo do PT.
No relatório da CGU é possível verificar débitos em aposentadorias e pensões datados entre janeiro de 2016 e maio de 2024. Períodos que incluem parte do governo Dilma Rousseff e de Michel Temer (então PMDB).
Das 11 associações investigadas na Operação Sem Desconto, seis firmaram convênio com o INSS no governo Bolsonaro.
Embora o órgão de fiscalização do governo federal tenha apoiado o trabalho da PF e a operação tenha se desenrolado no governo Lula, o relatório da CGU mostra que os débitos indevidos permaneceram na gestão petista, com pico em 2024, quando somou R$ 2,6 bilhões de descontos.
"As narrativas políticas de lulistas e bolsonaristas vão respingar para essas duas lideranças. Isso atrapalha demais a própria condição do Lula, que tem sistematicamente sido mal avaliado nas pesquisas; mas também caem sobre Bolsonaro, porque ambos são atores políticos presentes", considera o sociólogo Rodrigo Prando, pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
Essa disputa reverbera sob um aspecto de dominação do cenário político, mas também pesa sobre a confiança nas instituições políticas de modo geral. Isso é o que entende a cientista política Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia, da Universidade Federal do Ceará (Lepem-UFC).
"Esse é o maior imbróglio, porque, se a gente já tem uma parte da população que é antissistema, que questiona as instituições políticas, então, há um adensamento dessa rejeição", sinaliza.
A CGU, por sua vez, explica que, ante as fragilidades de controle identificadas, os resultados indicam que "os beneficiários encontram mais dificuldades para bloquear os descontos do que as entidades para implementá-los", indicando vulnerabilidade na proteção dos direitos de aposentados e pensionistas. (TMS)