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Ingressos em graduações a distância cresceram 779% em dez anos no Ceará
Reportagem

Ingressos em graduações a distância cresceram 779% em dez anos no Ceará

| Censo da Educação Superior | Número de estudantes de graudação EAD no País chega a 3,1 milhões em 2022. Com a expansão rápida da modalidade, Ministério da Educação questiona critérios de qualidade
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Gledson Santos, 37, afirma que a graduação a distância lhe permite conciliar os estudos com o trabalho (Foto: Gledson Santos/Arquivo Pessoal)
Foto: Gledson Santos/Arquivo Pessoal Gledson Santos, 37, afirma que a graduação a distância lhe permite conciliar os estudos com o trabalho

Em 2012, 15,9% das pessoas que decidiram ingressar em uma graduação no Ceará escolheram o Ensino a Distância (EAD). Dez anos depois, essa modalidade é a preferência de 62% dos ingressos, conforme dados do Censo da Educação Superior de 2022. Isso representa um crescimento de 779% no Ceará. O Estado segue a tendência brasileira de expansão do EAD.

As graduações a distância conquistaram 3,1 milhões de alunos em 2022, no Brasil. A expansão ocorre principalmente no setor de educação privada, que é responsável por quase 90% de todos os estudantes de graduação do País. O Censo, divulgado no dia 10 de outubro, mostra que a cada dez alunos de bacharelados, licenciaturas ou tecnólogos, sete entraram em regime EAD nas instituições de ensino pagas.

Apesar de já estar em crescimento durante toda a década, a pandemia de Covid-19 deu um impulso ainda maior à modalidade. O primeiro ano de isolamento, em 2020, também foi o primeiro em que os ingressos em EAD superaram os presenciais.

“A procura aumentou significativamente. As pessoas tinham muito preconceito com a educação a distância. A pandemia quebrou esse paradigma”, opina Gledson Santos, 37, aluno de graduação a distância. Apesar de morar no Ceará, Gledson faz graduação em Letras/Libras na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (Uern) pela internet.

Para Gledson, a maior vantagem do EAD é conseguir estudar enquanto mantém o trabalho de professor e tradutor de Libras em diferentes cidades da Região Metropolitana de Fortaleza. O estudante já fez outras duas graduações a distância - Letras/Português e Pedagogia - e conta que seria “impossível” finalizar os cursos caso fossem presenciais.

Apesar das críticas ao que chama de “ensino remoto emergencial”, instaurado durante a pandemia, João Mattar, presidente da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed), acredita que o momento mostrou a potencialidade do EAD.

“Todo mundo viu que era possível estudar on-line. A gente não sabia muito bem se as pessoas iam voltar ao presencial depois da pandemia, mas os números do Censo mostram que realmente a migração [para o EAD] foi muito grande”, afirma o presidente.

Depois de não conseguir concluir graduações presenciais, Johnny Oliveira, 35, decidiu se matricular no curso de Marketing a distância, na Universidade de Fortaleza (Unifor). Por trabalhar o dia inteiro e ter filhos, o aluno acha “inviável” fazer um curso presencial.

Para ele, ter as aulas disponíveis a qualquer momento e conseguir assistir às gravações quantas vezes quiser é outra vantagem. “O material está a minha disposição toda hora para poder tirar uma dúvida. Na sala de aula tem o tempo cronometrado, pelo menos eu tenho dificuldade de memorizar as coisas”, afirma.

Tecnologias, acesso à internet e mudanças na legislação influenciaram na expansão

O avanço das tecnologias e do acesso à internet é outro fator que ajudou o EAD a se difundir. Em 2012, apenas cerca de 40% das casas tinham internet, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já em 2021, o acesso estava em pelo menos 90% das residências.

Além disso, o cenário de ampliação da modalidade está intrinsecamente ligado ao crescimento da educação superior privada, segundo a pesquisadora do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Rhoberta Santana de Araújo.

“Eles encontram na EAD uma modalidade para garantir a expansão do setor e também aumentar o número de matrículas. São custos muito mais baratos que os cursos presenciais. Você tem propagandas de algumas instituições anunciando cursos a partir de R$ 100, R$ 150, que os alunos podem fazer de forma 100% EAD. Ela se mostrou extremamente vantajosa para o setor privado”, afirma a professora.

A década ainda foi marcada pelo incremento de verbas para programas de financiamento de vagas em instituições privadas, como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni). “O que a gente viu nos últimos anos foi uma série de políticas de incentivo do Estado para que o setor privado ampliasse essa oferta de matrículas”, diz.

As leis que regulamentam a oferta de cursos a distância também tiveram mudanças. Em 2017, um marco regulatório do EAD foi lançado pelo Ministério da Educação (MEC). Segundo Rhoberta, a legislação estabeleceu “critérios muito mais flexíveis para a abertura de novos cursos na modalidade EAD”.

Uma das modificações permitiu que instituições se cadastrem para ofertar apenas cursos a distância. Anteriormente, era obrigatório também ter cursos presenciais. Outra alteração na lei possibilitou a criação de mais polos de EAD para instituições com maior conceito institucional, um indicador de qualidade calculado no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Empresas com classificação máxima (nota 5) passaram a poder criar até 250 polos por ano.

MEC questiona qualidade de graduações EAD; setor privado defende modelo

O Ministério da Educação (MEC) lançou uma consulta pública sobre propostas de mudanças de regras da Educação a Distância no ensino superior, disponível de 19 de outubro a 20 de novembro. As sugestões, segundo a pasta, têm o intuito de garantir a qualidade da modalidade de ensino, elevando critérios de avaliação das instituições e revendo a permissão para oferta de cursos com necessidade de atividades práticas.

Pela proposta, apenas cursos com carga horária presencial obrigatória inferior a 30% do total poderão ser ofertados em EAD. Caso implementada, essa regra inviabilizaria a oferta de 16 cursos.

São eles: Direito, Enfermagem, Odontologia, Psicologia, Biomedicina, Ciências da Religião, Educação Física (bacharelado), Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Geologia/Engenharia Geológica, Medicina, Nutrição, Oceanografia, Saúde Coletiva e Terapia Ocupacional. Alguns já não estão disponíveis em EAD, como Medicina, Odontologia, Psicologia e Direito.

Na lista estão dois cursos que ficaram entre as graduações a distância com maior número de matrículas, de acordo com o Censo da Educação Superior de 2022: Enfermagem e Educação Física, com 173.579 e 171.756 matrículas EAD, sendo o sexto e o sétimo cursos, respectivamente, no ranking.

As mudanças são baseadas em um relatório feito pelo Grupo de Trabalho de Educação a Distância, instaurado no início de 2023. O ministro Camilo Santana explicou, durante a divulgação dos resultados do Censo, que os dados acenderam um alerta na pasta.

“Estou bastante preocupado, primeiramente com a qualidade desses cursos. Claro que facilita muito a vida do trabalhador, que tem que trabalhar, se deslocar. Temos de avaliar qual tipo de curso ofertado para boa formação do profissional pode ser a distância. Não estamos aqui demonizando o ensino a distância, não. Ele é importante para facilitar a vida, mas quero prezar pela qualidade da oferta desses cursos”, disse.

Em outras ocasiões, como em entrevista ao programa Roda Viva, o ministro já havia mencionado a preocupação com a qualidade também de cursos de licenciatura em EAD. Como Pedagogia, graduação a distância com maior número de matrículas, com 650.164 alunos.

A preocupação é compartilhada pela pesquisadora docente do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Rhoberta Santana de Araújo. “Você tem uma realidade que a maioria dos professores hoje formados em licenciaturas foram formados em cursos na modalidade EAD. Isso compromete uma série de metodologias, práticas, vivências de estágio que um aluno de uma licenciatura realiza”, afirma.

Para João Mattar, presidente da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed), o crescimento do número de alunos em EAD não significa que todos os cursos são feitos adequadamente. “Existem instituições que têm cursos a distância que não têm qualidade, como também tem no presencial. Não é apenas uma questão de modalidade”, opina.

Segundo ele, o MEC não se preparou para o crescimento do EAD. “Ele não estava preparado para atuar no incentivo da qualidade e para fiscalizar, para a própria regulação. Então, agora, o MEC está propondo voltar atrás e rever todo o marco regulatório da educação a distância”, diz.

Outra questão levantada pela pesquisadora é a dinâmica de acompanhamento dos alunos na educação a distância. “Sai a figura do professor, do profissional formado, habilitado com os componentes dos fundamentos da educação, para entrar a figura do tutor. Tutor não é o mesmo que professor”, afirma Rhoberta.

João Mattar defende que a presença de outros profissionais não pode ser ignorada nas métricas do EAD. Ele explica que a modalidade utiliza o conceito de polidocência, tendo, além dos professores, designers, técnicos e autores que fazem o material didático e tutores para auxiliar os alunos. “Na educação a distância, nós não temos mais a figura do professor sozinho dando aula”, esclarece.

Graduações a distância encontram resistência no setor público

Apesar da expansão do ensino a distância no setor privado, a educação superior pública não seguiu o mesmo rumo. Em 2012, 48.527 pessoas ingressaram em graduações EAD na rede pública. Em 2022, o número subiu para 67.938 ingressantes, representando um aumento de 40% em dez anos.

No Ceará, as instituições públicas diminuíram a oferta de vagas a distância. Se em 2012 pelo menos 2.474 estudantes ingressaram na modalidade, em 2022 a quantidade foi de 1.660 ingressos.

Para João Mattar, presidente da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed), existe uma “resistência ideológica contra a educação a distância na educação pública”. “A gente costuma dizer que não conseguiu institucionalizar a educação a distância nas universidades públicas. Ela não passou a funcionar normalmente, mas sim meio separado, no cantinho. Ainda é vista com muito preconceito”, diz.

A pesquisadora docente do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Rhoberta Santana de Araújo, concorda que há uma resistência. No entanto, ela acredita que isso deriva de críticas ao modelo bem como do financiamento, que depende de matrículas presenciais.

Além disso, Rhoberta afirma que as universidades públicas desenvolvem de forma integrada o ensino, a pesquisa e a extensão. Para ela, isso se torna mais difícil no EAD. “Já dei aula EAD em um curso de Pedagogia que é ofertado pela universidade pública que eu trabalho. Você tem uma enorme dificuldade de fazer isso. A adesão dos alunos é baixa, o engajamento. Fazer pesquisa com alunos nessa modalidade é impensável”, atesta.

O incentivo do governo federal para universidades públicas implantarem EAD também foi restrito nos últimos anos. Depois do programa Universidade Aberta do Brasil (UAB) criado em 2006, com o intuito de expandir a modalidade, apenas em 2022 foi instaurado outro programa para esse objetivo.

O Reuni Digital, lançado em junho de 2022, previa a oferta de 5.020 novas matrículas em EAD por ano na rede pública, além de 152 novos cargos para docentes. No entanto, em meio a revisões na legislação do ensino a distância, quando questionado sobre a continuação do programa, o MEC afirma que ele está “em estudo”.

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