Em setembro de 2021, Caucaia se tornava o município do Brasil com maior número de habitantes a oferecer passe livre universal à população. A política, chamada de "Bora de Graça", foi instituída em meio ao colapso do sistema de transporte coletivo local, que perdia cada vez mais usuários em meio à pandemia de Covid e, consequentemente, tinha diminuição da receita. Dois anos depois, a média mensal é de 2,2 milhões de pessoas transportadas por mês gratuitamente.
Luís Guimarães, diretor executivo da Vitória — empresa responsável pelo transporte municipal e metropolitano de Caucaia há 67 anos —, conta que antes da pandemia o sistema tinha média diária de 35 mil usuários. O número baixou para 18 mil por dia. Em 2021, a média mensal ficou em torno de 16 mil usuários. Luís buscou a Prefeitura para explicar que precisaria deixar de ofertar algumas linhas se não houvesse subsídio. Foi quando os estudos para zerar a tarifa dos ônibus começaram.
Com o passe livre, a receita da empresa, que antes dependia totalmente dos usuários pagando passagem, agora é paga pela Prefeitura. Por mês, são R$ 3,7 milhões repassados por Caucaia para suprir totalmente demanda do sistema. O valor representa 2,06% do orçamento do município referente a 2023.
O cálculo para chegar à verba repassada leva em conta o custo para manter os ônibus, a garagem, os funcionários, a quantidade de quilômetros necessários para atender todo o território e o número de viagens requeridas.
“O fato da Prefeitura estar fazendo o pagamento por quilômetro, e não por passageiro, é uma referência importante”, afirma Daniel Santini, coordenador de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo e pesquisador vinculado da Universidade de São Paulo (USP) sobre políticas públicas de tarifa zero.
Daniel explica que o pagamento por passageiro cria uma distorção no sistema de transporte. “Para o empresário, não vai variar o custo de criar uma rede de ônibus que transporta 10 ou 60 pessoas. Vai custar a mesma coisa. Se eu condiciono o pagamento à quantidade de pessoas transportadas, estou incentivando a superlotação”, ressalta.
O pesquisador mantém um monitoramento de experiências de passe livre universal no País. Até novembro de 2023, 89 cidades ofereceram o serviço de transporte gratuito para a população. Mais da metade delas (56) iniciaram os projetos a partir de 2020. Daniel apresenta um fenômeno que já era identificado, mas foi agravado pela pandemia: o ciclo negativo da tarifa.
“Você tem um constante aumento de tarifa e uma redução do número de passageiros. O balanço financeiro quebra e você precisa aumentar a tarifa de novo. E aí você tem que reduzir de novo. Ou você reduz a frota, o que também implica na redução do número de passageiros, até o sistema não se sustentar mais”, explica.
O ciclo representou uma virada de chave para empresários que antes eram contra a tarifa zero universal, já defendida há mais de duas décadas por militantes do movimento. Luís Guimarães conta que foi um dos que mudaram de ideia. “Na hora que eu decido que é de graça, o que aquilo vai se tornar foge do meu controle. Porque se digo que é grátis e aparece dez vezes mais pessoas do que eu tinha programado, vou ter que dar conta”, diz.
Hoje, o empresário acredita no sucesso da política na cidade e percebe ganhos sociais promovidos pela tarifa zero. “As pessoas falam que não é bom tarifa zero porque fica um sobe e desce, porque o pessoal vai passear. O que na verdade a gente está vendo é que as pessoas começaram a se deslocar por ter o direito de se deslocar. A gente notou que a restrição ao deslocamento era absurda. Várias pessoas não se deslocavam porque não tinham condição”, afirma.
Mesmo após o período mais crítico da pandemia, não há planos para que a política seja revogada. A tendência é observada nacionalmente. “No Brasil, o índice de manutenção de políticas de tarifa zero é superior a 90%. A gente tem 2023 como o ano em que mais cidades adotaram a tarifa zero”, cita Santini.
“O 'Bora de Graça' é um patrimônio nosso e eu acredito que outros políticos que venham a assumir o cargo não vão tirar do coração das pessoas esse sentimento. É uma entrega direta para as pessoas que mais precisam”, afirma o secretário de Transportes de Caucaia, Sílvio Nascimento.
Daniel Santini, juntamente com uma delegação de membros da Fundação Rosa Luxemburgo (FRL), visitou a sede da empresa Vitória em novembro para conhecer a experiência e os resultados do "Bora de Graça". O POVO acompanhou a comitiva a convite da FRL.
A estudante Marjorie Lima de Sousa, 18, precisa ir todos os dias ao Centro de Caucaia para cursar a terceira série do ensino médio. Sem pagar pelo transporte devido ao passe livre, ela tem a chance de economizar no orçamento. “Se não fosse de graça, seria um peso muito grande para mim”, conta.
Marjorie reconhece que o modo de se deslocar pela cidade com tarifa zero não impacta somente os dias úteis, mas também o lazer. “Eu vou pro Icaraí direto de ônibus. Minhas tias que não andavam [de transporte público], agora andam”, diz, citando uma das praias do município.
Assim como ela, outros usuários dos ônibus municipais de Caucaia relatam aprovar a economia e praticidade de não precisar pagar pelos coletivos. José Amilton Rocha, 63, que trabalha há 23 anos em uma empresa do Centro da cidade, afirma que “o povo pode vir quando quiser” para a região. “Melhorou porque não precisa de muito dinheiro para vir para o Centro”, diz.
“Ajudou minha mãe, que trabalha e precisa se deslocar. Sem o passe livre seria muito dinheiro. Acho que está ajudando bastante os trabalhadores e os estudantes”, opina Antonia Tamires Freitas, 16.
Apesar de ser aprovado pela maioria dos usuários entrevistados pelo O POVO, o passe livre não acabou com os problemas do sistema de transporte de Caucaia. Moradores de localidades distantes do Dentro relatam demora e lotação nos veículos que os transportam.
Para a dona de casa Maria Paixão Oliveira Moura, 38, moradora do distrito de São Pedro, no limite com São Gonçalo do Amarante, uma mudança na oferta de linhas prejudicou o trajeto que precisa fazer até o Centro. “Depois que entrou de graça, tiraram o ônibus da Barra do Cauípe. Agora é um ônibus só para fazer as duas linhas. A gente vem espremido”, queixa-se.
A ambulante Camila da Silva Nascimento, 45, conta que são poucos os ônibus que vão para localidades mais distantes. Além disso, ela afirma que há coletivos que passam de “instante em instante e outros demoram o dia inteiro”.
Segundo a Prefeitura de Caucaia, em agosto de 2021, antes da implementação da tarifa zero, havia 48 ônibus realizando as viagens. Em outubro de 2023, existiam 70 ônibus ativos e sete de reserva para cumprir com a demanda de 20 rotas municipais. Pela grande extensão territorial da cidade, o ônibus que tem a maior rota passa apenas três vezes ao dia, pois tem de cumprir 123 km do início ao final da linha.
O secretário de Transporte de Caucaia, Sílvio Nascimento, afirma que a população pode entrar em contato com a Ouvidoria do município para pedir mais veículos, atendimentos em localidades específicas e fazer reclamações sobre o serviço.