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Vale do Jaguaribe: do Novo Cangaço à guerra de facções
Reportagem

Vale do Jaguaribe: do Novo Cangaço à guerra de facções

|Segurança Pública| Entre 2009 e 2023, nenhuma região do Interior do Estado teve taxa de homicídios maior que o Vale do Jaguaribe, onde fica localizado o município mais violento do Ceará
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Foto de Gilberto Mingau, um dos foragidos mais procurados do Ceará (Foto: Reprodução / SSPDS)
Foto: Reprodução / SSPDS Foto de Gilberto Mingau, um dos foragidos mais procurados do Ceará

Há anos, o Vale do Jaguaribe, região do Estado que reúne 15 municípios, é uma das áreas de maior preocupação da Segurança Pública cearense. Marcado, primeiramente, pelo estigma dos crimes de pistolagem, o Vale viu a criminalidade na região migrar para o tráfico de drogas e para o roubo a instituições financeiras até achegar-se às facções criminosas.

Dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) mostram que, entre 2009 e 2023, os municípios do Vale do Jaguaribe registraram 2.736 assassinatos, uma média de 182,4 mortes por ano. Levando em conta os dados de população do Censo de 2022, o Vale do Jaguaribe aparece com a segunda maior taxa anual de assassinatos entre as 14 regiões nas quais o Estado é dividido.

A taxa do Vale do Jaguaribe é de 48,27 homicídios para cada 100 mil habitantes por ano, atrás apenas da Região Metropolitana de Fortaleza, que tem índice médio de 55,98.

Os números de homicídios são a face mais visível de uma violência ainda mais profusa. Investigações feitas pela Polícia Civil se depararam com relatos de envolvimentos de criminosos com políticos e impactos, até mesmo demográficos e econômicos. A criminalidade que extorque até R$ 100 mil de um único comerciante também teria relação com o êxodo populacional.

Mais recentemente, disputas internas em grupos criminosos ajudaram a piorar a situação. O rompimento do grupo chefiado por Gilberto de Oliveira Cazuza, o Gilberto Mingau, de 33 anos, com a facção criminosa Guardiões do Estado (GDE), está por trás, de acordo com a Polícia Civil, com a maioria dos homicídios registrados em 2023 em Morada Nova e em Ibicuitinga (município já do Sertão Central, mas vizinho a Morada Nova). Conforme o inquérito nº 504-79/2023, durante o ano passado, na Delegacia Regional de Morada Nova, foram instaurados 54 inquéritos para investigar 57 homicídios e 11 tentativas de homicídio. 

As investigações apontam que o conflito antagoniza os bandos de Gilberto Mingau e Bruno Gomes Castro Lima, de 26 anos, conhecido como Príncipe — este apontado pela Coordenadoria de Inteligência (Coin), da SSPDS, como chefe da GDE em Morada Nova. Bruno foi preso em dezembro passado em Santa Catarina.

Ainda segundo o inquérito nº 504-79/2023, “salve” que circulou nas redes sociais, assinado pelos “Cangaceiros” — que é como se denomina o bando de Gilberto —, dizia que quando “Dão” (provavelmente, Francisco Marcilieudo Mesquita da Silva, preso em 2020 como um dos principais chefes estaduais da GDE) estava em liberdade “sempre teve paz, união e harmonia entre a gente”.

“Depois que o Dão foi preso ficou esses laranja incapacitáveis para ta na frente da cidade” (sic), prossegue o salve, que também diz que Príncipe está “oprimindo vários criminoso, vem tirando a vida dos próprios irmãos de camisa dele para mostrar poder”.

Outro salve, este datado de 14 de novembro de 2023, afirma que, a partir daquela data, os Cangaceiros não iriam mais aceitar “droga do Príncipe dentro de Morada Nova”.

Um dos mais procurados do Estado, “Gilberto Mingau” é acusado de diversos homicídios

Somente entre novembro de 2022 e janeiro de 2023, Gilberto foi denunciado pelo MPCE como mandante de oito homicídios em São João do Jaguaribe

Gilberto de Oliveira Cazuza, o Gilberto Mingau, de 33 anos, um dos atores centrais da violência no Vale do Jaguaribe, consta entre os 16 Mais Procurados da SSPDS, sendo que é o terceiro há mais tempo na lista — está há menos tempo apenas que Jangledson de Oliveira, o “Nem da Gerusa” e Carlos Mateus da Silva Alencar, o “Skidum” ou “Fiel”. Gilberto está foragido desde, pelo menos, 2016, quando foi preso, ao lado de outros dois homens, portando duas pistolas.

Imagem de procurado de Gilberto Mingau, suspeito de liberar grupo criminoso no Vale do Jaguaribe(Foto: Reprodução / SSPDS)
Foto: Reprodução / SSPDS Imagem de procurado de Gilberto Mingau, suspeito de liberar grupo criminoso no Vale do Jaguaribe

Ele é apontado como chefe de um grupo criminoso que age há anos na região, sobretudo, no distrito de Uiraponga, em Morada Nova; e em São João do Jaguaribe, mas também em Tabuleiro do Norte e Alto Santo. O grupo de Gilberto é acusado de ataques a banco, extorsão de comerciantes, roubo de gado, tráfico de drogas, além de inúmeros homicídios.

Conforme a Polícia Civil, Mingau era integrante do grupo de Sílvio Leno Chaves Barbosa, um dos principais chefes do “Novo Cangaço” no Ceará, morto em 2019. Gilberto e Sílvio Leno foram réus em uma ação penal em que o Ministério Público Estadual (MPCE) os acusava de integrar o grupo que explodiu o cofre do Banco do Brasil de Piquet Carneiro (Sertão Central) em 10 de maio de 2018. Na ocasião, o bando subtraiu R$ 46.367.

Com a morte do chefe, Gilberto passou a liderar o seu próprio grupo, autodenominado “Cangaceiros”. Até meados de 2023, a quadrilha compunha a facção Guardiões do Estado (GDE), mas o chefe rompeu com a organização criminosa. Há rumores de que os Cangaceiros passaram a integrar a facção carioca Terceiro Comando Puro (TCP), que aportou no Estado já neste ano.

Levantamento feito pelo O POVO identificou que, somente entre novembro de 2022 e janeiro de 2023, Gilberto foi denunciado pelo MPCE por oito homicídios.

Entre os crimes ocorridos no período, está o assassinato de Maria Jaqueline Ramos Sousa, de 22 anos, em 15 de novembro de 2022. Conforme a investigação, a vítima integrou os “Cangaceiros” por cerca de três anos, chegando a se relacionar afetivamente com Guilherme de Oliveira Cazuza, irmão de Gilberto.

Entretanto, Maria Jaqueline foi acusada de se apropriar de R$ 100 mil que seriam fruto de uma extorsão praticada pelo bando contra um comerciante de São João do Jaguaribe. Além disso, contra ela, recaía a suspeita de ter delatado o próprio companheiro, que morreu em confronto com a PM.

Sete pessoas foram presas em março de 2023 por esse e outros crimes na região, quase todas parentes de Gilberto. Ele próprio teve a prisão decretada pelo crime, mas não foi localizado. À época, a Polícia Civil divulgou que empresários da carcinicultura eram as principais vítimas da extorsão realizada pelo bando, que era executada sob justificativa de oferta de “proteção” aos comerciantes.

No inquérito que investigava a morte de Maria Jaqueline, consta depoimento em que uma testemunha diz que os políticos da região “em regra” prestam apoio ao bando de Gilberto, o que já “vem de longa data”.

Outro crime pelo qual Gilberto foi denunciado enquanto mandante foi o assassinato de José Jaílson Lopes da Silva em 11 de janeiro de 2023, também em São João do Jaguaribe. Conforme o MPCE, a vítima havia comentado que o bando de Mingau seria responsável por roubar gado de sua propriedade, que passava a ser criado para Gilberto em Uiraponga.

Gilberto ainda consta como réu pelo duplo assassinato de Vanderson Lira Silva, de 14 anos, e Maria de Lourdes Estevão de Lira, de 39 anos, ocorrido em São João do Jaguaribe em 9 de novembro de 2022. Conforme a denúncia, o adolescente foi morto porque discutiu na escola com uma sobrinha de Gilberto, enquanto a mulher foi assassinada porque o chefe do grupo imaginou que ela estava comemorando a morte de Guilherme.

As investigações também mostraram que Gilberto vive em guerra com um ex-comparsa, José Micael Andrade Silva. “O rompimento de MICAEL com bando de MINGAU se deu em razão de GILBERTO ter ordenado a MICAEL que executasse a pessoa de (...), contudo MICAEL não cumpriu a ordem dada por GILBERTO, ocasionando a ruptura criminosa entre eles”, afirmou em denúncia o promotor João Marcelo e Silva Diniz.

São João do Jaguaribe, o município mais violento do Ceará

Município, que já chegou a ser apontado como o de maior taxa de assassinatos do País, voltou a liderar o ranking estadual em 2023

Em 2023, São João do Jaguaribe teve a maior taxa de assassinatos do Estado: foram 12 homicídios, conforme a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS), o que, para um município de 5.855 habitantes, representa uma taxa de 204,95 mortes para cada 100 mil habitantes.

Segundo o Censo do IBGE, a população de São João de Jaguaribe caiu quase um terço(Foto: Agência Brasil)
Foto: Agência Brasil Segundo o Censo do IBGE, a população de São João de Jaguaribe caiu quase um terço

São João do Jaguaribe já havia sido destaque negativo em duas pesquisas nacionais nos últimos anos. Em 2022, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou que o município teve a maior taxa de assassinatos do País. Entre 2019 e 2021, 50 assassinatos foram registrados em São João do Jaguaribe, de acordo com a SSPDS; como a população do município era estimada, até então, em 7.500 habitantes, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de homicídios ficava em 224 mortes por 100 mil habitantes.

Em 2023, os dados do Censo 2022 mostravam que São João do Jaguaribe havia perdido um quarto de sua população em relação ao último Censo, realizado em 2010: de 7,9 mil habitantes, o município passou a ter 5,8 mil moradores. Foi a segunda maior perda populacional do Estado no período, atrás apenas de Catarina (Região Centro-Sul).

Por ocasião da divulgação do Censo, o próprio prefeito do município, Raimundo Cesar (PSD), afirmou a O POVO que, ao lado de fatores econômicos e educacionais, a violência era uma das causas para o êxodo de moradores. Outro a perceber a relação entre a perda de habitantes e a violência no município foi o promotor João Marcelo e Silva Diniz.

Em denúncias de homicídios em São João do Jaguaribe, o promotor tem ressaltado a perda populacional, afirmando, ainda, que o município vive em “estado de guerra, situação em que grupos criminosos dominam a cidade há longos anos, disseminando violência e terror com a prática de crimes brutais contra vida, com único objetivo de impor o medo na população daquela cidade”.

Apesar de São João do Jaguaribe constar como o município de maior taxa de assassinatos no Ceará em 2023, o Vale do Jaguaribe não constou como a região com maior índice de homicídios do Estado no ano passado. Esse título ficou o Sertão de Canindé, que, com 88 homicídios, teve uma taxa de 46,64 homicídios por 100 mil habitantes. O Vale do Jaguaribe ficou em terceiro, com 160 assassinatos e taxa de 42,34 homicídios por 100 mil habitantes.

Em segundo, ficou o Litoral Oeste/Vale do Curu, que teve 174 assassinatos e 45,13 homicídios por 100 mil habitantes. A Grande Fortaleza, com 1.616 assassinatos e 41,37 crimes por 100 mil habitantes, foi a quarta região mais violenta do Estado em 2023. A região menos violenta foi o Sertão dos Inhamuns, com 15 homicídios para 134.390 habitantes — taxa de 11,16 homicídios por 100 mil habitantes.

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