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A quem cabe cuidar dos documentos cartoriais no Ceará?
Reportagem

A quem cabe cuidar dos documentos cartoriais no Ceará?

Em janeiro, o Ministério Público do Ceará expediu recomendação para que os cartórios se reponsabilizem por seus documentos particulares. Mas a decisão gerou desconforto em pesquisadores, que defendem que os documentos permaneçam no local
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Arquivo Público guarda documentos históricos do Ceará
 (Foto: fotos AURÉLIO ALVES)
Foto: fotos AURÉLIO ALVES Arquivo Público guarda documentos históricos do Ceará

Em um prédio de estrutura neoclássica, os documentos históricos que preservam a memória do Ceará estão resguardados no Arquivo Público (Apec), localizado no cruzamento das ruas Senador Alencar e Senador Pompeu. O local é fonte de pesquisa para historiadores, pesquisadores independentes, a comunidade acadêmica e para o público interessado em conhecer o que está escrito nas entrelinhas dos papeis estão guardados desde 1600 e as memórias que se foram.  

Fundado em setembro de 1916, no governo de Benjamin Liberato Barroso, o Apec inicialmente era vinculado a Biblioteca Pública Estadual. O equipamento tem valor cultural, social e político e mantém viva as memórias daqueles que ajudaram a construir o Ceará dos dias atuais e tem acesso livre ao público. Em 12 janeiro de 2024 , o Arquivo Público recebeu uma recomendação do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) e iniciou processo de devolução de alguns documentos cartoriais para seus cartórios de origem. 

A decisão não foi bem recebida por parte da comunidade acadêmica e alguns pesquisadores independentes que utilizavam estes documentos em seus estudos. Uma dessas representações foi da Associação Nacional de História (Anpuh-CE), que emitiu nota de protesto contra a retirada dos documentos do Arquivo.

O comunicado expressa que a situação do Apec é delicada e não é algo recente e que os problemas se agravaram quando a atual gestão da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE) assumiu a pasta.

“O que se tem verificado é verdadeiro desmonte do Arquivo, inclusive com a implementação de uma política de devolução dos documentos cartoriais ali resguardados, para seus cartórios de origem. A medida, além de ter sido tomada à revelia da sociedade cearense, ainda promove a privatização de fontes e dificulta a pesquisa histórico-historiográfica”, expressa a nota.

Conforme o professor Tito Barros Leal, presidente da Anpuh-CE, o Arquivo Público informou que as documentações cartoriais não deveriam estar sob guarda do órgão — principalmente os documentos com data anterior à 100 anos . Portanto, registos com um século de existência ou mais são reponsabilidade e aqueles com menos estão sendo devolvidos aos cartórios de origem e que há firmamento na legislação para explicar o fato.

“O fato é que os documentos já estão no Apec e a questão não é se eles podem ou não, se a legislação pertinente informa que há uma barreira de 100 anos ou não, não se trata disso. O que se trata é que há uma documentação dentro do Arquivo Público do Estado do Ceará e que esta documentação que está dentro do Arquivo Público do Estado do Ceará, está sendo retirada de lá e retornada para os cartórios. Isso é o fato. Como isso está acontecendo, nós não entendemos ", relatou Barros.

O professor expõe ainda que, durante reunião com representantes do poder público na terça-feira, 26 de março, não houve uma explicação clara do motivo do ocorrido. Ele diz que o que foi externalizado foi que “há um grupo de pessoas que definem o que é que fica, o que é que volta para os cartórios e a baliza para definir o que volta é 100 anos”.

“O grande problema nisso é que o Arquivo Público interpretou ao pé da letra a recomendação do Ministério Público que diz que essa documentação deve voltar para os cartórios de origem. Só que não estão levando em conta que o documento pede que seja ressaltada a importância social da documentação, o que não está acontecendo" aponta Barros.

O historiador comenta ainda que não há uma equipe para estudar os documentos e definir os critérios que indicarão quais documentos serão considerados de interesse público e/ou social e que não existem critérios para identificar o material que será devolvido aos cartórios.

“Entendemos que seria necessário, no mínimo, a criação de um índice dessa documentação. Esse documento deveria aclarar: a) quais documentos que estão saindo; b) para quais cartórios estão indo; c) quais as condições físicas de guarda que esses cartórios oferecem; d) como os documentos poderão ser acessados por pesquisadores eventualmente interessados nesse material”, expressa.

O dever do Arquivo Público e a resposta da Secretaria de Cultura

Conforme a Lei 13.087 de 2000 artigo 5º, compete ao Arquivo Público do Ceará "a gestão, o recolhimento e a preservação produzidos e recebidos pelo Poder Executivo Estadual, bem como facilitar o acesso aos documentos sob sua guarda".

Procurada pelo O POVO, a Secretaria de Cultura do Estado (Secult) disse em nota que a sua atuação tem como objetivo garantir que o Apec cumpra a sua finalidade.

Informou ainda que o Arquivo Público pode guardar documentos cartoriais que possuam relevância para a pesquisa, e que está atuando nesta frente de acordo com a legislação vigente e com rito próprio.

A diretora do Apec, Janaína Ilara Ferreira, disse que "os documentos cartoriais sob a custódia do Apec que estão sendo retirados, seguindo as recomendações do MP, possuem levantamento do acervo, tipo documental e período. O material é conferido juntamente com o representante do cartório que vai receber essa documentação".

O POVO foi visitou o Arquivo Público no início do mês. Um dos funcionários do prédio, Ricardo Augusto, apontou que todos os documentos estão catalogados com seus municípios de origem e o ano de suas produções.

"Ao todo, dez cartórios de Fortaleza foram notificados pelo MPCE para retirar os documentos daqui, mas, até o momento, só vieram quatro. Inicialmente foi nos dado um prazo de 15 dias, mas é impossível conseguir responder a esta demanda em pouco tempo", pontuou.

Questionada se há uma comissão para analisar os documentos, a Secult enviou nota dizendo que faz o inventário e que este trabalho identifica o cartório, a tipologia documental e o período a que se refere. "Portanto, inexiste a necessidade de uma comissão, uma vez que o inventário apresenta aos cartórios, que conforme a legislação federal são responsáveis pela guarda permanente destes documentos particulares, estas informações".

O comunicado informa ainda que o Apec possui o levantamento da quantidade dos documentos particulares que pertencem aos cartórios e que durante a visita dos escritórios ao prédio público, os dados são verificados em conjunto.

Sobre os critérios, a Secult informou que "a recomendação do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) define que a retirada destes documentos cartoriais particulares é sob a responsabilidade e expensas próprias de cada cartório".

“É um órgão público, não houve transparência”

Usufruindo do Arquivo Público há quase cinco anos, a arquiteta Tânia Harada conta que suas pesquisas utilizam estes documentos cartoriais — inventários, livros de registros etc — para seus estudos genealógicos. Ela conta que soube da saída dos arquivos por coincidência.

“Foi em um período que eu ia toda semana lá no Arquivo, ninguém lá dentro estava falando absolutamente nada. Eu soube porque uma pessoa, através de um grupo de genealogia, me enviou um artigo do professor Márcio Porto publicado no O POVO. Então essa foi a primeira informação que eu tive com relação a isso”, relata. 

Depois disso, Tânia afirma que foi feito um abaixo-assinado — hoje com 82 assinaturas de pessoas envolvidas com pesquisas. “É um órgão público, não houve nenhuma transparência, nem para quem tá lá. A gente vai lá e é difícil você saber quem retirou, quem não retirou e quais critérios foram utilizados”, explica.

O advogado Cleber Pontes explica que é compreensiva a questão da falta de espaço e a necessidade da retirada de alguns documentos do prédio. "A gente entende o problema da falta de espaço no Arquivo Público, mas o que a gente defende é que haja um marco temporal objetivo para a manutenção dos documentos no acervo, e é isso que falta hoje", explica.

Pontes pontua também que os  documentos que estão lá no Arquivo Público foram incorporados ao patrimônio histórico do Estado do Ceará, pois a legislação estadual (Lei Estadual nº. 10.746/1982) - que vigorou até o final do ano 2000 - determinava que os documentos, inclusive os oriundos de cartórios, com mais de 50 de produzidos deveriam ser encaminhados para guarda no Arquivo Público e tinham seu valor histórico reconhecido.

"A própria Corregedoria do Tribunal de Justiça cobrava e fiscalizava o cumprimento dessa medida.Assim, por causa da segurança jurídica, apesar de uma superveniente alteração, seja legal ou administrativa, não poderia haver retroatividade e esses documentos, que são hoje patrimônio histórico do Estado do Ceará, serem desconsiderados e devolvidos", informa.

Harada complementa por houve um tempo que era obrigatória a permanência de documentos dos cartórios do Ceará no Arquivo Público. Os que hoje estão no prédio são possíveis de acesso e os que não foram enviados, pode acontecer o que está acontecendo hoje: ninguém sabe o paradeiro da documentação, quem recebeu e o que recebeu. 

“A própria Promotoria, em uma das determinações do processo, disse que deveria ser formada uma comissão para definir os critérios (de saída dos documentos) e essa comissão não foi formada. Inclusive me aconselharam a entrar em contato com a gestão do Arquivo, disse que me interessava fazer parte, e até hoje não recebi nenhuma resposta”, relatou.

“Então a gente defende que haja um marco temporal legal como critério objetivo, defendemos que a documentação não saia de lá até que isso esteja definido, e a gente defende transparência, é pouco o que a gente pede”, completou.

Mas afinal, o que diz a determinação do Ministério Público do Ceará?

O POVO procurou o Ministério Público do Estado do Ceará para entender como se sucedia a liminar e quais as recomendações do órgão no dia 4 de abril. Na sexta-feira, 5, por meio de nota, o órgão informa que em 12 de janeiro de 2024, foi expedida a recomendação para o Governo do Estado e para a Secretaria de Cultura adotassem as providências necessárias para a retirada dos documentos. 

A orientação é que "adotem providências necessárias, junto ao Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) e aos tabeliães, para que os cartórios da capital e do interior se responsabilizem pelo armazenamento e a conservação de seus documentos particulares, ou seja, que não sejam considerados de interesse público, histórico e/ou social e estejam guardados nos prédios dos Arquivos Públicos (Arquivo Público do Estado do Ceará e Arquivo Intermediário da Secult)".

Conforme o MP, o texto considerou as vistorias realizadas nos prédios dos Arquivos Públicos, que constataram a péssima infraestrutura do Arquivo Intermediário. "No prédio, de responsabilidade da Secult, havia documentos históricos a serem transferidos para o Arquivo Público que, no entanto, estava sem espaço para receber os documentos", diz o comunicado.

A partir disso, viu-se que uma parte dos documentos resguardados no Arquivo Público pertence aos cartórios de Fortaleza e interior do Estado, que enviam seus documentos particulares para serem guardados e conservados sob a responsabilidade do Estado do Ceará, sem nenhum custo para os tabeliães.

A nota finaliza informando que o processo segue no Ministério Público e que em 16 de abril aconteceu uma audiência pública com a presença de representantes do Governo e da Associação dos Notários e Registradores do Ceará (Anoreg-CE) a fim de debater o imbróglio e seguir com o encaminhamento.

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